sexta-feira, 1 de maio de 2020

Direto da Terra do Sol Nascente # 90: covidifíceis humores

Estou com a garganta doendo. Sei lá como, sei lá quando começou: só sei que me parece estranho. Procuros sinais outros de que um vírus esteve aqui... ou a alguns metros de mim: meu pé doi, meu coração bate mais rápido... palpitações, febre? Me traz à lembrança o dia em que, ao notar a estranheza sutil dos móveis da minha casa, "milimetricamente fora do lugar", pude perceber que alguém estivera ali (em 1984 + estudo em vermelho para um monstro que vive no espelho).

É só a garganta? 

Foda...acabo de tossir também. Aiii...caraleo... só faltava essa. A saúde indo pelo ralo, e o humor, do qual pretendia inicialmente falar,  indo pras cucúias também. O digo porque ontem enviei uma mensagem upra um amigo, pra quem eu falei no começo da semana que finalmente descobri o disco "kind of blue", do Miles Davis.



["Kind of blue" (1959),  Miles Davis]

Ao que meu amigo falou "sei que você não gosta de John Coltrane, mas ele tem muita coisa boa também". Aí fiquei meio puto, e quis retificar a situação. "Como assim, não gosto de Coltrane?!" 

Me senti ofendido. O Coltrane é tão matemático quanto músico... ouvir essa heresia meio que me deixou...sei lá...impaciente? Seria essa a palavra? 

Imediatemente percebi que me senti mal... com a situação, e comigo mesmo: será que sou tão vaidoso assim, a ponto de não conseguir me calar, e deixar meu amigo assumir isso? Me lembrei da última visita ao Brasil, quando um tio de uns 80 e tantos anos veio me "catequizar" falando de  deus e eu só fiquei no "arrãm...arrãm..." com a cabeça... sem me dar ao trabalho de discordar abertamente. Por que não aqui? Seria pela idade? Impaciência? 


Me envergonhei... deve ser vaidade... "sou tão vaidoso assim?" Fiquei meio chateado comigo mesmo. Como uma confissão a mim mesmo "você tem a vaidade de não deixar os outros assumirem que você..." Rafaello, sob o controle da imagem que fazem dele? Seria isso? Ou seria da ordem intelectual das coisas, emocional, ou musico-matematico-emocional-coltraniana? Fiquei pensando depois que diferença faria eu "defender minha honra" em desgostar de Coltrane, em não apreciar a matemática que brota por de trás das notas de Giant Steps, nesse ciclo que se repete infinitamente entre subir, descer e reaproximar as notas de novo... me senti besta. "Será que foi a presunção de desconhecência que me incomodou?" Penso na lei dos direitos humanos, tão esquecida em dias como esses... "todo homem tem o direito de desconhecer, de ignorar, e de se calar ate mesmo diante do que já conhece"... reinvento minhas leis, leis de um homem que vive longe dos seus, num apartamente com vista só pra um rio e pássaros. 

Será que foi o meu amigo ter assumido que eu não gostava? Será que foi o tom professoral da conversa?...  


["Giant Steps", John Coltrane]

Fiquei me perguntando em loops... como no solo acima: sobre, desce, repete, dobra... chega-se ao mesmo ponto, diverge-se. Não tive coragem de reler a conversa ainda. Acho que... não, tenho a certeza que essa distânciamente está me fazendo mal. De alguma maneira fazendo mal. "-Volta!!! Eu sei que fui hostil, mas na verdade te queria perto! Queria meus amigos próximos. Abraço. Coxinha. Tapioca..." Me sinto um homem das cavernas, tentando aproximar, enquanto na verdade acabo enviando pra mais longe aqueles que quero próximos. 

Faz alguma diferença eu gostar?  Me machuca ver os outros assumindo coisas?

Não sei.... só sei que tenho sido um boicotador de tudo: de correntes (porque as pessoas começaram com correntes de tudo por estes tempos?...bom, isso é papo pra outro post; já adiando que tenho sido o mais grumpy dos grumpies, e extinguido todas que a mim chegam), de palavras que descem tortas, de suposições descabidas (grandes ou pequenas)... o covid me torna difícil.... covidifícil, não co(n)vidativo. 

Hoje recebi uma ligação de uma amiga que perdeu um tio médico na pandemia. A avó dela, ainda vida, não pode nem ir no enterro, nem receber o filhos para um consolo. A resposta de todos os irmãos (outros tios) e da avó foi matar o tio de outras formas: "ahhh mas ele teria morrido de acidente, com certeza... ele tinha aquela moto lá, tava pegando estrada muito.... ahh mas ele teria morrido de acidente cirúrgico: um bisturi revoltado pularia da mesa de instrumentação e se alojaria no seu peito, furando uma artéria..." Em tempos de crise nos brutalizamos.... nem as perdas podemos sentir mais... oque é perder, em dias como esse, em que já estamos de luto por um mundo que deixamos pra trás, e pro qual não voltaremos mais.

Você sabe oque é abraço? Posso presumir que você se lembra disso? 

Você sabe oque é ouvir um sax ao vivo? Ou posso dizer com quase-certeza que você odeia?

Você sabe oque é perder? Sabe oque é sentir? Sabe oque é a dor de não ter pra onde fugir ou nos braços de quem chorar?

Me emaranho em pequenezas... as notas de Miles, Coltrane, afloram minha alma e tentam me aimentar de novo de uma poesia de mundo que, temo, pareço não conseguir sentir. "-Por que se impacientar por tão pouco?".. me pergunto.

Sei lá... vou dormir e torcer pra acordar num outro mundo, em que minha garganta esteja melhor.

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