terça-feira, 19 de novembro de 2013

A outra metade?

Separações  ( Antônio Prata - Folha de São Paulo, 17 de Novembro de 2013)

Ele era engenheiro, gostava de filmes de ação e corria na esteira três vezes por semana. Encarava o sexo como uma necessidade fisiológica, uma exigência corporal que surgia mais intensa quanto mais descansado estivesse: ao acordar. À noite, exausto, só queria tomar uma cerveja e dormir.
Ela era pintora, detestava "filme de carro explodindo" e praticava hatha yoga. O sexo, para ela, era "cosa mentale": o desejo ia crescendo durante o dia, a fantasia se desenhando nas cochias do pensamento e só ao se deitar na cama, antes de dormir, começava o espetáculo.
Quando se conheceram, não atinaram para o problema de fuso horário --no jet lag da paixão, toda hora era hora--, mas, assim que o fogo abaixou e o sexo teve de encontrar seu escaninho no armário da rotina, as diferenças apareceram.
Separaram-se faz um mês. Ironicamente, ele sente mais falta dela à noite, enquanto toma sua cerveja e espera o sono; ela sofre mais ao acordar, só, de manhãzinha.
*
Da primeira vez que ela foi à casa dele, viu na cama desarrumada, nos vinis espalhados pelo chão e na geladeira vazia --meia garrafa de vinho e três sachês de ketchup (vencidos)-- uma postura rock'n'roll, um desprendimento libertador, uma superioridade quase beática.
Da primeira vez que ele foi à casa dela, viu nos tupperwares etiquetados, nas flores da jardineira e no mural do escritório sua possível salvação: sonhou com um futuro de refeições balanceadas, vinis em ordem alfabética e contas no débito automático.
Por seis meses, ela resistiu às toalhas molhadas na cama, aos discos espalhados pela casa e às caixas de pizza no sofá; "A única coisa que eu pedia era pra ele botar o telefone na base. Se você ama mesmo uma pessoa, é capaz de fazer esse mínimo esforço, não é?". Separaram-se faz uma semana. Ontem de madrugada, a caminho do banheiro, ela viu a luzinha verde da bateria, na base do sem fio, e caiu no choro.
*
Eles gostavam dos mesmos filmes, dos mesmos livros, das mesmas bandas, dos mesmos pratos nos mesmos restaurantes, riam das mesmas piadas, queriam conhecer os mesmos países e ter um filho chamado Frederico. Depois de cinco anos, contudo, se cansaram daquela mesmice. Ela disse que estava pensando em se separar, ele disse que vinha pensando o mesmo. Ontem, ao partir, ela o fez prometer que jamais teria um filho chamado Frederico. Ele prometeu --e pediu o mesmo.
*
Por dez anos, ele foi absolutamente fiel. Não transou, não beijou nem flertou com nenhuma outra mulher. Nos últimos meses, a retidão começou a pesar em seus ombros. Anda por aí olhando bundas com a voracidade de um remador das galés, deu pra implicar com pequenos atrasos da esposa e pra discordar de seus comentários durante o jornal.
Já ela, nesses dez anos, não foi absolutamente fiel. Transou com um colega de trabalho e com um ex-namorado de adolescência, que encontrou por acaso em Salvador. Nada sério, só desejo: ela tem certeza absoluta de estar ao lado do homem que ama e jamais cogitou trocá-lo por alguém.
Agora, ele chega na sala, senta ao lado dela, olha pra parede e diz que precisam conversar.

Li esse texto do Antônio Prata na folha de São Paulo do último domingo e, dentre as muitas coisas que me lembrei, uma delas foi esse curta.




domingo, 17 de novembro de 2013

Fa-Tal


LUZ ATLÂNTICA EMBALO 71

     Aumento para
     as terríveis novas
     ( qualidades do personagem, recepção, exortação, exaltação)

1

     Jovem tonto, torto com
     Nenhuma nostorgia.
     Meta-promessa mantida: não voltar as vistas pra trás.

     Sou eu quem            durmo tarde
                  quem           acordo cedo
                  quem           realço tudo
                  quem           não tenho medo... causas aque destinei meus dias

     Qualidade do personagem quando desacorrentado: ESTAR ACESO.
     Que herança herege me trouxe desanimação e me arrebatou  arrebentou a esperança?
     Os apesares obrigam: volta ao primeiro verso:
     Nenhuma nostorgia.
     Sou índia sou virgem sou bela sou forte sou jovem sou sadia sou pura.
     Sou pura - tenho que atrair capitais com meu papo minha figura,

     Triste figura de rei dos fracos: desempenhar uma atividade lucrativa: escrever carta circular pros amigos pedindo dinheiro:
     Não ser funcionário: ter sempre um ponto de vista louco sobre ESTA realidade.

2

Abutre aponta o bico pro meu fígado/ desce pra bicar abalar arrancar meu fígado de acorrentado.

3

     Pensamento político. o poeta - um dos meus personagens - fala: outro dia pensei em me suicidar não pratiquei não relatei a ninguém pra não influenciar mal meus amigos. ter amigos, os meus. ser merecedor do amor de minha mãe. confiar nos outros.
     Fingir praticar literatura de expressão pessoal:
     Vir a ser campeão nacional de piadas e trocadilhos.


     VIVA A RAPAZIADA

(Waly Salomão, 1971 - do livro  "Me segura qu'eu vou  dar um troço")

sábado, 9 de novembro de 2013

Universo multiculturalista numa casca de banana (ou "Êsopidianas")

Essas cidades universitárias ao redor do mundo têm uma coisa que é legal e ruim ao mesmo tempo: o multi-culturalismo. Vc saí à noite e conversa com gente de Angola, da Turquia, Islândia, Hungria... e de quando em vez tropeça nas diferenças culturais entre elas. Esbarro nisso quase toda vez que vou ao lounge do departamento de matemática pra almoçar: as vezes vejo umas reuniões de estudantes de um país Z, sentados todos comendo umas comidas com cheiros esquisitos e comendo de boca aberta; no país deles isso é normal. 

[me pergunto oque eles acham dos meus hábitos ]

Há poucos dias eu estava nesse mesmo lounge, mas dessa vez sozinho. Esperava o microondas esquentar meu almoço quando, passando o olhar pelos arredores me deparo com uma estante cheia de livros velhos, folhas/rascunhos/rabiscos, uns potes velhos, um tabuleiro de go etc. No meio dessa bagunça, uma embalagem de macarrão feito de cartolina, com um plástico em cima, no qual havia uma banana cortada ao meio, já escurecida, aparentando algo não muito apetitoso. "-Isso deve estar aqui há dias", pensei. Já tendo visto o descuido de alguns estudantes com essas e outras coisas, resolvo jogar a dita embalagem com a banana cortada ao meio no lixo.

Livre de tais inconvenientes, devorei o meu almoço, escovei meus dentes e subi para minha sala. Não muito mais tarde, me chega este email 

[este é o email que eu recebi]

"
Did you throw a  macaroni paper carton on the lounge shelf into the trash bin today?
If no, sorry for disturbing you.
If yes, please note that I contained my banana into it and temporarily put the carton there at 12:17pm and picked it back at 2:28pm. There are plenty of space on the shelf. Please don't throw stuff that is not yours away. It gives an impression to the others that you think the shelf is your own shelf!"

Me senti meio mal pelo garoto  e envergonhado pelo que fiz. Fiquei pensando no que havia feito. Achei esquisito isso: pra mim aquilo era uma comida intragável, um resto não digerível de algo. Me pôs a pensar na quantidade de desentendimento que há nesse mundo por acharmos que nossa visão de mundo é imparcial e imbuída de respeito por tudo e todos. Não, não é.... 

Me fez lembrar de duas histórias, uma pessoal:  quando eu era criança minha família ia visitar um tio no interior do Paraná. A pobreza nos arredores existia, mas era difícil de detectar a meu ver: eu brincava com as outras crianças, elas brincavam entre elas e ninguém se importava com nada. Então teve um dia que eu voltei pra casa com um sorvete. Na rua da casa do meu tio estava o vizinho, que a gente chamava "Adaltinho": um menino magriiinho, que sempre só andava descalço e sem camiseta, que se aproximou e me pediu um pedaço. Não quis dividir, e nem mesmo pensei no caso. Aconteceu de eu tropeçar e deixar o sorvete cair no asfalto. O Adaltinho olhou pra mim, olhou pro asfalto -meio cinza meio marrom do barro dos pastos e arredores - e sem pestanejar, se jogou no chão e começou a lamber o sorvete que ali derretia, tentando desfrutar daquilo que, para mim, já não era um sorvete. 

[Não me lembro do que pensei dessa história na época... mas sempre me lembrei dela]


A outra história é um conto que ouvi; talvez da minha mãe, quando eu era criança. Será que era uma fábula de Êsopo? Não sei... mas creio que sim :

[Na verdade, nem sei se os animais eram esses mesmos... whatever]

Uma coruja, com medo de que sua prole seja devorada por uma águia que sempre voa nos arredores atacando os ninhos, chega para a águia e diz

"- Dona águia, dona águia... por obséquio, não devore meus filhotinhos como vc fez com os da minha última ninhada. Não posso ficar com eles a tarde toda pois preciso sair à caça para que eles tenham oque comer. Sem falar que trabalho meio expediente... não há como: eles passam a noite desprotegidos"

A águia, misericordiosa, virou para a coruja e disse: 

" -Certamente não os devorarei. Mas como hei de saber que são seus os filhotes? Para mim são todos iguais.... são todos comida."

Nessa hora e a coruja se viu às voltas com um grande problema: pior do que Copacabana e sua numeração de casas e nomes de ruas, era a numeração das árvores... ou melhor, a não numeração delas: deprovida de gps, de endereço ou de qualquer outra forma de localização, a coruja percebeu que sua casa era muito menos que um ponto no espaço euclidiano, mas sim uma poeira-quase-ponto num universo que só pertencia a ela que, não sabendo como,  sempre para lá voltava. 

" dona águia... não sei onde moro... mas sei como lhe descrever meus filhotinhos: são 3 pequenas corujinhas, doces e lindas. "

A águia disse que lhe bastava a informação,  reiterando que não haveria mais problemas ou mal- entendidos. A coruja deu-se por satisfeita e voou para casa mais tranquila.

Alguns dias depois aparece a coruja na casa/ninho da águia, chorosa, desolada:

"- Dona águia...como você pode!!??? Eu lhe disse quem meus filhotinhos eram!! E mesmo assim de nada bastou: cheguei ao meu ninho agora à noite e eles não estavam mais lá, só suas penas, para todos os lados"

A águia vira pra coruja e diz: 

" - Me desculpe... me desculpe. Sinto muito pelo acontecido. Saiba que me esforcei muito, mas todos os filhotinhos dos quais me alimento me parecem iguais."

[Pedi desculpas pro garoto do país X e lhe ofereci uma banana "nova".]
[Ele a recusou]
[No dia seguinte, de qualquer maneira,  eu levei uma outra pra ele.]

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

Après une lecture de ma thèse



[ Acabo de encontrar um amigo pianista num café ] 
[Ele começou a me falar dessa peça que está preparando pra um recital]
["-Conheço pouco de Liszt ... nada muito além dos estudos transcendentais", falei]
[Ele falou ( no imperativo quase) pra eu ouví-la...]
[... oque estou fazendo agora,]
[ enquanto digito/reviso minha tese,]
[meio que impressionado]