sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Garotas de Ipanema: os homens e o "me-too movement"

Há um episódio muito besta/engraçado, como muitos outros, do (Jerry) Seinfeld, onde ele leva um date a um restaurante cujo dono é seu amigo. O dono, muito calorosamente, o recebe dizendo que vai preparar uma pizza pro Jerry e seu date ele mesmo. Aí acontece o seguinte:


[Wash your hands, Seinfeld]

Isso: eles se encontram no banheiro, e o dono do restaurante sai do mesmo sem lavar as mãos. Sempre lembro dessa estória quando vejo alguém sair do banheiro sem lavar as mãos. Se for algum colega de trabalho então, ou alguém que conheço, seja de vista ou oque, aí não tem como: passo a ter um pé atrás enorme com aquela pessoa. 

É mais curioso ainda pensar que, mesmo em situações extremas a gente vê esse comportamento: a exemplo, quando vou em alguma "balada", casa noturna ou coisa assim, aquela fila enoooorme de homens bêbados urinando, vejo um ou outro que sai direto pra noite, pra conversar com amigos, dar em cima de alguém ou sabe-se lá oque. Penso imediatamente:

"-pqp... se as pessoas soubessem quem esse sujeito é...".

Bom... termina aqui essa parte aparentemenre desconexa do post. Onde quero chegar é realmente o seguinte:  e se as pessoas realmente soubessem quem somos? Ou, mais na linha do que gostaria de propor hoje: e se as mulheres soubessem o que os homens realmente são, pensam...e dizem?

Sabe...  umas das poucas coisas que vim a entender de budismo é que quanto mais consistente você consegue ser, menos dor você traz ao mundo. Não há como você ser um misógino, fazer piadas sobre gays, ser racista por um lado, e por outro advogar pelas causas de minorias, ser o amigo de todos. Por muito tempo, ainda mais por conta da cultura permissiva onde cresci, achei isso ruim, mas dentro de certos limites aceitável ouvir calado. Mas a medida que fui ficando mais velho, vendo palavras,  pecados, e dores sendo causadas desmesuradamente e descuidadamente por todos os lados, fui crescento cada vez mais hostil a este tipo de pessoas. Isso, como um outro lado da moeda, também acabou gerando dor: me afastei de alguns familiares, e perdi alguns amigos.

E veja: tudo isso não tem  a ver com simplesmente "lavar uma mão"1,  falarmos tudo oque pensamos, ou oque quer que seja. E certamente não saímos das barrigas de nossas mães assim, prontos pra respeitarmos o espaço e limites sociais uns dos outros: há muito, muito a ser dilapidado ao longo do tempo, enquanto crescemos.

Mas, se todos somos expostos a todas essas questões, aos embates que o mundo nos apresenta, porque reagimos diferentemente? 

Realmente não sei... talvez nessa equação entre a personalidade de cada um? É... realmente não faço idéia... vejo a dificuldade de alguns amigos (em especial os mais velhos) em entender um movimento como o me too como algo legítimo, e mesmo mulheres entenderem do que se trata (amigas muito próximas, que pintam qualquer movimento de minorias sob o viés de "coitadismo", segundo elas..). E me é claro que nada disso tem a ver com escolaridade: os amigos dos quais falei vão desde PhDs a pessoas com menos escolaridade (em ambos os gêneros)... 

A diferença no entendimento/percepção mora onde então?

Ouvi esse podcast há algumas semanas. Também fiquei me perguntando oque ele queria dizer... oque era e oque não era consentimento, oque era arrependimento, oque era oque


[Dear Sugars: "Episodes we love: consent part one"]

achei interessante. Pensei na discussão. Pensei na quantidade enorme de discussões que tinha na casa onde morava no Rio, com duas mulheres maravilhosas e mais um rapaz (gay): eu, hetero, aprendendo humilde diante das besteiras que falava, das palavras ditas sem pensar. Sair de São Paulo (cidade de montanha), ir ao Rio (cidade de praia) onde o corpo é só mais um corpo que vai à praia..... que mudança... o Rio foi uma lição de vida na qual aprendi muito. E interessante, porque anos depois eu conseguia ver, nas palavras e atos dessas mesmas mulheres com as quais morava, algumas atitudes da minha mãe e irmã, com as quais cresci. Vai ver com elas, por já termos uma relação com certos moldes, com certos "triggers" de impaciência, de tipos de conversa, certos assuntos não chegavam a ser abordados... Educação vem de casa? Nem sempre: educação é dialogar e ouvir o outro lado (que muitas vezes é o mesmo lado), seja lá onde for e com quem for.

Namoros são outros lugares também que servem muito para um homem ouvir e ver sobre quais privilégios pisa enquanto anda pelo mundo. Nessas horas lembro do dia em que fiz uma piada besta em inglês, na qual finalizei me referindo à minha namorada como "bitch", sem me dar conta do peso daquela palavra em inglês... me dói até hoje na alma os olhos dela enchendo de lágrimas, meu chão se abrindo como se fosse um buraco negro...

[Um pouco como naquela cena do "transpotting",]
[ onde o chão afunda enquanto ele tem uam overdose]


[Trainspotting: "just a perfect day"]

Fiquei ali, envergonhado e arrependido... queria ser um avestruz, me esconder do que havia dito. Por segundos me veio o medo de ter rompido tudo aquilo que estavamos tentando construir juntos, tudo aquilo que eu gostaria de ser pra ela, pro mundo. "Como pode, logo eu que ..." é.. a gente sempre se acha acima de tudo, sem "blind spots", mas errar... quem nunca? Pedi desculpas, disse a verdade, não mensurei bem a palavra numa lingua que falo, mas na qual não sou nativo...  parei pra me reentender, refletir sobre uma atitude infantil e impulsiva de falar sem pensar no real significado das coisas e suas consequências.

Todo mundo erra? Sim, todos erramos.
Todo mundo aprende com seus erros? ... hummmm não exatamente (infelizmente).

Entendermos uns aos outros, seja um homem compreender ou ouvir oque uma mulher quer e busca em questão de direitos, igualdade etc, ou oque é respeitar uma outra pessoa. Este processo é evolutivo e nunca há de acabar: dificilmente hei de pendurar um quadro na parede dizendo que acabou, que tenho um diploma nisso (se é que alguém tem). Em 10 anos é bem provável que olhemos pra traz e nos vejamos como ruínas, nos visitemos como escafandristas que visitam um navio em ruínas no fundo do mar, ou um templo no meio de uma selva pra pensar "como é que eles conseguiam viver assim, pensando dessa forma? Como ninguém falava pra eles?"

Assim então, cercado de pontos cegos, a gente tenta crescer, embora de tempos em tempos, se nos mantivermos de olhos abertos, conseguimos vislumbrar um pouco do que é ter percepção do outro, oque é ter dimensão que alguém mais está ali conosco, buscando espaço, atenção, igualdade. Numa das primeiras vezes que saí na mini-apple, logo que havia mudado pra lá e ainda habitava o sofá do meu anfitrião (mesmo sofá do post anterior!), saímos com uns amigos dele para um restaurante que em breve fecharia as portas: despedida!! Achei que todos os finais de semana na mini-apple seriam daquele jeito: só festa, como na foto debaxo da qual o sofá onde eu morava estava....festa, festa, festa2. Mas voltemos à realidade:  havia um karaoke no dia, ao que fui interpelado (para não dizer "forçado") a cantar "garota de ipanema", que eu nem gosto muito: uma música de homens velhos olhando como abutres as moças novinhas na praia de Ipanema.... sem falar que é o feijão com arroz de todo brasileiro, que já a ouviu 30 milhões de vezes.


[Frank Sinatra & Tom Jobim, Girl from Ipanema]


Não... não dá... 

Mesmo assim, havia um cara que cantava muito bem no local...a voz do Frank Sinatra mesmo, sabe? 

E quem não quer cantar com o Frank Sinatra?  

Bom... eu quero. Mas naquela dia não  queria muito: "Frank, let's call it a day... let's sing in another opportunity"... Eu, meio tímido, meio sem graça... mas ainda assim, empurrado ladeira abaixo, dei uma idéia/fagulha, e chegamos juntos à uma conclusão: façamos um dueto, eu em português, ele em inglês. Meus amigos (eu solteiro à época) me diziam "man, you gonna sing in English, all the girls will fall for you". Dei de ombros: o máximo de atenção que recebi de uma mulher ao dizer que era brasileiro foi um "so what language do do you speak... spanish?" 

Não.... nada mudaria. 

Mas lá fui eu.
Convidei o cara pra cantar comigo.
"-Yes, sure. I love garota dipanema"
Cantei.
Cantamos.
Tentamos cantar.
Eu não ouvia o músico.
Cantamos errado.
Fora do tom.
Um cantando em inglês sobre a voz do outro que cantava em português.
E vice versa 

Em resumo: foi horrível.

Meu amigo me recebeu na mesa depois do fracasso:

"man... let's go home... it was so horrible that nobody will even talk to you at this point"  Foi realmente engraçado: fomos do high-expectation às profundezas da fria realidade. Mas oque se passou depois foi mais curioso ainda. Eu, no limbo, olhei uma moça que achei interessante e, sem nada a perder, me aproximei e comecei a conversar. Ela, que não estava sozinha, começou a prosear... mas aí eu parei e disse "wait.. let's invite your friend too, so she doesn't stay on her own". Na sequência, meu amigo chegou e começou a conversar com a amiga (que ele havia achado interessante há tempos, mas não tinah tido coragem de chegar pra conversar com ela). "-Well... can I sit here then?", perguntei , ao que recebi permissão. Sentei ao lado dela, enquanto meu amigo conversava com a outra amiga. 

A primeira pergunta que ouvi foi "-Do you have a sister?" Aí eu ri: que pergunta inusitada. Pensei na minha irmã, nas minhas roommates do Rio, que também me são como irmãs. "-Yes.. I do... why?" A moça depois me explicou que é raro ver todo esse cuidado com alguém que não tenha consciência do outro lado, do que é ser uma mulher na noite, num bar, sendo "abordada" por um homem: do meu cuidado em não separá-la da amiga etc. Acabou que virou mais uma conversa sobre psicologia que qualquer coisa: meu amigo arrumou um date, e eu, que no fim tentei arrumar o telefone da moça (que nesse ponto já me parecia interessante) não consegui nada. Que que vem abaixo do limbo mesmo?... Voltamos pra casa.  Eu , no caso, pro meu sofá. 

Essa estória terminou em nada: meu amigo arrumou um date (e me deixou em casa, no sofá), a moça da conversa, apesar dos meus pedidos, nem me passou o número dela (e nem insisti): foi uma curiosidade que valeu pela conversa. E, acima de tudo, valeu por me "acordar" pra todas essas variáveis pras quais eu nem dava muita atenção até ali: sim, as pessoas notam, as mulheres notam, e lêem cada detalhezinho, nossos pequenos delitos de desrespeito uns com os outros... 3 

A conversa ficou enraizada: refleti por muito tempo sobre, me perguntando sobre o tema. A partir dali permaneci de ohos abertos não só para me observar, mas pra observar outros homens. E muitas vezes, quando os ouço, eu penso: "-ahhhh se o resto do mundo soubesse oque esse cabra pensa..."





1  Sim, há gente que só lava uma.
2  Preciso dizer que me enganei? hahaha. 
3  Será que elas conseguiriam acertar quem lava as mãos no banheiro na balada ou não? Isso daria um ótimo estudo científico, acho... estilo ignobel prize, mas daria um estudo interessante.





domingo, 24 de novembro de 2019

Direto da Terra do Sol Nascente # 77: "só mais cinco minutinhos" (parte 1)


[Jorge Ben, Cinco Minutos]

Tenho um grande amigo, que é como um irmão mais velho pra mim, que me recebeu na mini-apple quando mudei pra lá. Foi minha primeira casa naquela cidade: um sofá cinza, debaixo de um quadro enorme que era uma foto do "beco do rato", no Rio de Janeiro. Sabe-se lá o porque de nos darmos tão bem. Mas imagino que, pelo fato dele ter morado no Brasil por uns anos explique. Mas digo isso só pra introduzí-lo no post: oque queria dizer dele é que várias vezes ele me dizia que se sentia super americano no BRasil na hora de dar tchau em festas ou eventos; enquanto a namorada queria dar tchau pra todo mundo, dar abraço em todo mundo da mesa etc, ele queria virar as coisas e ...tchum, desaparecer! Eu como brasileiro entendia o lado dela. Como uma pessoa um pouco anti-social (às vezes, não sempre!) eu entendia o lado dele.

Dar tchau é difícil. Principalmente quando se deixa algo pra trás. Eu só dei dos tchaus deixando algo pra trás na vida: quando mudei pros EUA, e quando mudei pro Japão. É sempre difícil. 

Agora é quase hora de se dar outro tchau: o sayonara a todos os projetos, idéias, planejamento de projetos que partem de mim mesmo, coisas do tipo. Já disse a mim mesmo diversas vezes "agora não vou fazer mais porra nenhuma, só estudar", ou "a partir de agora vou só procurar emprego", ou ainda " a partir de agora vou parar de ter idéias e só focar em ler"...

...engano, engano engano. Acabo fazendo um pouco dos 3 acima, e nenhum dos 3 acima ao mesmo tempo.

Mas como assim, como é que pode, você fazer e não fazer algo? É...nem eu sei. tentei colocar um limite, parar de querer produzir, de ter idéias... mas elas vêm,  chegam como uma coceirinha, aí você vai, experimenta, tenta algo, vê que faz sentido... aí dá um tempo pra "ler, estudar um pouco pra não emburrecer", mas se pega preso nessa incrível balança que a vida de cientista apresenta: 

  • você pode ser um magnânimo conhecedor do trabalho dos outros somente;
  •  um excelente conhecedor do seu próprio trabalho somente, no qual você se deleita tentando produzir algo;
  • ou um pouco dos dois acima.
O primeiro caso não é muito incomum: há muita, muita gente fenomenal em ciência que é extremamente literada sobre o trabalho dos outros, ou de uma área, mas que nunca produziu nada muito significativo. A pessoa no entanto tem uma qualidade enorme de "organizar o meio campo", de sintetizar e explicar as idéias dos outros. Acaba escrevendo um livro, que vira referência na área.

Tem o pessoal que se deleita tentando produzir coisas novas. Talvez eu caia nesse grupo: o que coloca as mãos em algo, tenta criar alguma coisa. Claro, há diferenças nesse grupo também, como diz um estudo de 2018 (Changing demographics of scientific careers: The rise of the temporary workforce), que nos diz que mais de 60% das pessoas que produzem ciência o fazem como colaboradores não principais, como suporte... os "sidekicks". E que hão de permanecer nessa posição ao longo de boa parte da carreira (se não durante toda a carreira!!). Nesse aspecto eu saio do grupo: felizmente eu rapidinho saí de baixo do guarda-chuva do meu orientador pra procurar meu próprio caminho. Oque é bom, mas também ruim: você está na chuva sozinho, brigando por uma marquize que o proteja. Você não tem mais o abrigo que outros que vieram antes de você construiram, e pode muito bem ficar abandonado/relegado ao esquecimento.

Qual é o caminho mais prático ou correto?

Não sei... talvez seja simplesmente uma escolha pessoal. Mas voltemos, por que digredi! Recentemente, nessas buscas por uma alternativa de vida não acadêmica, me deparei com essas questões de "onde focar por agora". Acontece que, infelizmente (ou não) idéias não param de nos visitar... a gente tenta, é gostoso ficar lendo o trabalho dos outros, aprendendo coisas, mas criar algo.... não sei, há alguma coisa aí... como cair de amores por alguém ou lugar, ou cruzar uma rua da qual se gosta ("alguma coisa acontece no meu coração.." como diria Caetano)


[Caetano Veloso, Sampa]


Me lembro até hoje de uma conversa que tive com um dos cientistas que mais admiro, um professor super carrancudo de onde estudei, um cara de uma clareza tão, mas tão grande, que dificilmente se encontrava alguma brecha no que ele dizia: dificil adicionar ou tirar uma palavra, ou mudar a ordem dentro de qualquer coisa que falava. Um cara meio zen, no que tange à matemática, super old school, mas muito, muito gente boa. Sentei com ele, falando sobre os próximos passos que poderia dar na minha carreira, e ele me disse: 

".... - agora você tem uma tese... imagina que  oque a gente sabe é esse círculo, e oque não sabe é oque está fora. Você agora chegou na fronteira desse círculo, e começou a se deslocar pra fora, mas ainda tangente ao círculo.... Teu orientador, por exemplo, está indo pra fora desse círculo.... e é esta direção que você quer ir também".

Nunca me esqueci disso. Por que, de certa forma se alinha a um mantra que sempre trouxe comigo desde que saí do Brasil: "não siga o passo dos que vieram antes de você, mas sim procure oque eles procuravam", de Matsuo Bashô (do qual falei sobre algumas vezes... mesmo há quase 10 anos atrás, em 2010!!!). Na hora que ele falou eu não me dei conta (ou talvez seja assim que me lembre da conversa, agora não sei mais), mas ele não me disse para ir na mesma direção do meu orientador, mas sim para ir pra fora desse círculo. E ... para ali adiante, o desconhecido, é onde me pego às vezes olhando, como alguém que olha o mar e, só vendo a praia e as ondas, se pergunta oque há mais ao fundo, mais pra além do horizonte. Dificilmente uma cabeça consegue parar de fazer isso... porque, no fim das contas, uma coisa move a outra: a nossa sede de conhecer mais e descobrir mais é oque nos move a entender melhor cada engrenagem daquilo com oqual lidamos. 

Curioso, por que esse processo de descobrir (ou tentar), desvendar (ou tentar), me trouxe consciência das minhas virtudes (das poucas que tenho, talvez haha) e defeitos (dentre os muitos que tenho), e diante disso saber perceber oque posso trazer de útil numa discussão: se sento na mesa com alguém, oque poderia dizer de relevante, que acrescente? Hoje, mesmo que não saiba a resposta por completo, e talvez nunca saiba, consigo vislumbrar um pouco melhor como responder essa indagação.

Bom... divaguei, divaguei e não muito sobre oque queria falar. Fica  pra parte 2.



terça-feira, 19 de novembro de 2019

Direto da Terra do Sol Nascente # 76: eles e nós

É interessante pensar que, quando escrevemos, adotamos um pronome.

Você notou? Você viu ali em cima "escrevemos". Nós, terceira pessoa do plural. Embora quem tenha escrito tenha sido um "eu", Rafaello, no alto do meu barquinho aqui de longe, remando e remando: "eu", um único ponto, escrivinhando pelos 4 mares como se fosse uma multitude de pontos, "nós", ou mesmo uma reta! 

Megalomaniaco? Não, não... linguagem mesmo.

Enquanto em literatura inventou-se a figura do narrador, em ciência temos uma situação meio estranha: o narrador ali está para narrar toda a aventura lógica do descobrimento: "numa certa manhã de segunda eu entrei no escritório, quando o segundo autor do paper me disse..." É... ciência "infelizmente" ainda não deu romance científico ou desandou em prosa com narradores e tudo de maneira não subjetiva.... aconteceu então de, em algum momento da História,  os cientistas matarem o narrador: abre-se qualquer artigo hoje em dia (veja o site da Nature, por exemplo, onde muitos artigos são open source) e dificilmente se lê uma estorinha fofa. Lê-se, em contraste, coisas como "as amostras foram preparadas com 5% de fosfatolipidiônicoproteico, 4% de manganêzionosfosforito..." ou "the singularity in the equation allows for the formation of a black-hole, an effect that had in fact been discovered by [1-5,23, 34]", etc. 

Não muito tempo atrás a coisa era outra. Veja o "Dialogue Concerning the Two Chief World Systems", de Galileu Galilei, por exemplo: dois caras1 conversam sobre opiniões distintas que têm sobre o universo, e um tenta convencer o outro com argumentos. Em resumo: um artigo científico que acontece numa mesa de bar, onde dois cientistas chegam a um ponto em comum sobre uma querela. A ciência ao alcance de todos! A ciência-novela, a ciência-poesia!

Hà também, e acho até que falei sobre anos atrás, a ciência sobre os olhos de filósofos: aí a coisa realmente muda de figura, e pode ser super abstrata (como Espinoza, que provava as coisas como teoremas, lemas etc), ou onde o filósofo chuta o pau da barraca e escreve borbulhas de loucura ininteligíveis2 , deixando o leitor dividido entre a esperança e a razão, onde o leitor busca passar as noites em claro, lendo, lendo, lendo, saciando sua curiosidade e loucura dentro daquelas páginas... Sim, o filósofo ludibria e enche o coração de leitor de amargura por não lhe oferecer explicação alguma, mas sim, ... aff... ouvi a música e me embananei todo 🙈 Em resumo: o filósofo proseia e dá voltas, tantas, tantas e mais tantas, que a cabeça do leitor dá um nó: tão forte que o mesmo acha que entendeu algo, quando na verdade ele já nem sabe mais oque é: um donuts, um quadro surrealista, ou mesmo um peixe que busca mergulhar num aquário límpido a fazer borbulhas ainda menos lógicas do que aquelas que leu!

Há, ainda, casos como o dos matemáticos que, em sendo um, somente um, ou poucos, a trabalhar fazendo doodles pelas lousas do mundo, escrevem tudo como se fossem todos: "nós provamos", " nosso resultado"... é um pouco como a estória do "all at one point", do Italo Calvino nas cosmicomics: os autores são aqueles ali na primeira página, gente que mal te conhece, mas que, de certa forma, fala de "nós" como se você estivesse ali, escrevendo o artigo com eles, escrevendo o paper lado a lado, ou segurando a tua mão para que você os acompanhe naquela trajetória racional pelo universo científico: tudo, vocês-eu-eles-nós, no mesmo ponto.


Enfim... ciência é um pouco isso. E há casos não raros de uns cientistas lerem o trabalho de outros e falarem
"
1:"we". this is inappropriate in scientific journal as i mentioned before.
2: Related to "we", you use "we would like to".
This totally makes sense, however, this is more like "chatting" or "blog" like term.
"
[isso veio de um email que recebi recentemente]

Ou seja: nem mesmo cientistas entendem um aos outros, e se tratam com condescendência. "Eu sou genérico, sempre uso minhas proposições pela manhã, após meu english-tea, e só uso 'nós' quando acompanhado por um adulto"...

É pessoal... a vida de cientista é dura...especialmente quando você tenta transgredir a barreira da intedisciplinaridade (tão preconizada nos dias de hoje!!) pra descobrir que no fundo, bem no fundo, ciência é uma lingua cheia de dialetos. :)


ps: vale à pena ler o interessante "The two cultures", do C.P. Snow, especificamente sobre a falta de diálogo entre humas e exatas, do qual eu ouvi falar depois de ler um interessante artigo do Tim Gowers, um matemático britânico ganhador da Fields medal anos atrás


1 Pelo que me lembre são dois... li um pouquinho desse livro há anos, mas não dei conta =P

2 Lembrei da maravilhosa  💙💙💙💙💙💙 


quinta-feira, 14 de novembro de 2019

"Herrar é umano"

Enquanto estivermos sobre essa terra, incorreremos em erros. Em enganos. Machucaremos os outros.

É muito difícil no entanto, quando você é a parte que sai ferida na estória. Mais ainda, quando a dor que te causaram lhe foi afligida de maneira intencional. Nessas horas a gente se pergunta: por que? Será que mereci, será que fiz algo de errado?

Recentemente algo do tipo aconteceu comigo, sendo eu a parte "açoitada" sem compreender porque. A conclusão que cheguei, depois de não ver razão alguma pro acontecido, é: não me cabe entender os porquês de algumas pessoas, mas sim tomar decisões que me protejam. E, no caso, minha decisão foi a de não guardar mágoa ou rancor, perdoar oque tiver que ser perdoado, mas me manter distante. 

Talvez seja melhor assim. Talvez não: será melhor assim! 

De alguma maneira, essa estória me lembrou de uma animação do Koji Yamamura.

[Koji Yamamura - The Old Crocodile (2005)]


Nela, por sua natureza, o crocodilo vai "matando" aqueles que estão perto dele, e não se dá conta do mesmo. No fim das contas, o crocodilo acaba como um deus de uma tribo. Quando assisti esse vídeo pela primeira vez eu me perguntei o porque desse final: seria a sociedade nos louvando pelo nosso egoísmo, pela nossa capacidade de nos desvincularmos, de nos alimentarmos a custa do sofrimento alheio? Seria isso uma ode ao nosso egocentrismo, onde não importa a dor que causamos aos outros: estarmos bem (no caso, nutridos) está acima de tudo e de todos?

Não sei. Só sei que minha interação acabou na triste decisão de, ao menos por agora, querer me afastar. Mas o que me deixa triste nessa situação não é dor nem nada (isso passa): me dói ver que a história em conjunto (com o agressor(a)) fica maculada. E talvez seja um pouco oque pessoas que vivem relacionamentos abusivos sintam: como olhar pra tras? Com que cores pintar as memórias, mesmos as boas? Como uma memória atual pode borra ruma foto antiga? 

Sim, a pior parte de ser agredido por alguém que se ama ou ja foi parte da sua vida é você não saber muito bem como processar oque já passou com aquela pessoa. "Será mesmo que aqueles picnics foram bons? Será que o outro lado também estava gostando? Será qeu havia mesmo respeito?... " Você não sabe... ou fica na dúvida, se equilibrando numa tênue e trêmula linha de certeza....

Mas sabe... todos nós cometemos erros, e não são eles que nos definem como pessoas. Eu já cometi os meus, e vou continuar os cometendo aos montes. Mas, acima de tudo, me permito errar porque também me permito admitir erros e me desculpar quando sinto que me enganei, que agredi, ou que machuquei. Meu orgulho, minha vontade de estar correto, nunca-em-momento-algum se encontra acima de qualquer outra pessoa: quando sinto que errei não hesito em pedir desculpas. 

Talvez seja isso que distingua as pessoas uma das outras: a maneira que elas escolhem se relacionar com outras é um pouco a maneira que elas escolhem crescer (ou não crescer, que também é possível).

[Bom, essa é a reflexão da semana:]
[tá tudo corrido por aqui porque as entrevistas de emprego]
[acreditem ou não]
[estão chegando e chegando =)]

domingo, 3 de novembro de 2019

Meandering rivers


[Alice in Wonderland - Dave Brubeck & Paul Desmond]

Adoro como essa música começa: o Dave Brubeck começa levando-a em uma direção, como que seguindo um coelho pro rabbit hole... aí totalmente muda de curso quando o Paul Desmond entra com o sax. Sempre que ouço é como se eu prendesse a respiração quando chega nessa parte, esperando esse clímax. Depois disso a música parece pular de um estado pra outro, como um vôo de borboleta, seguindo tanto um curso próprio quanto o curso do vento: a melodia e a harmonia se expandem como um delta de rio, indo do melancólico ao alegre/nada melancólico. 

Na semana passada, numa dessas idas para o trabalho, caminhava pelo parque ao lado de casa. Olhei para o rio que, desde o tufão do qual falei há alguns dias, teve sua forma um pouco alterada: os bancos de pedras mudaram de lugar, a água flui e escoa de outra forma, como se fosse um outro rio aos meus olhos... embora ainda seja o mesmo rio.

Penso na tartaruga que vi algumas vezes, nadando curiosa, saindo mansa e duvidosa pras pequenas ilhas que parecem flutuar na correnteza: como uma monja durante um "walking meditation", a pequena adentra em passinhos diminutos o mato alto, até se perder dentro dele e fugir da minha vista. "Será que ela tem uma casa de campo ali?", penso comigo mesmo. Nunca fui lá pra averiguar; nem acho que deveria: em casa de tartaruga ser humano algum deveria pôr os pés.

Ao longo do dia fiquei com essa imagem na cabeça, do rio que muda sua forma ao longo do tempo, que segue por meandros, se emaranha em outros e em si mesmo. Olho pra mim mesmo, penso no porque nunca pude seguir em linha reta. Penso no final do livro "wizard of oz" (que, não sei porque, li recentemente), quando dizem para a Dorothy que  a passagem para voltar pra casa estava ao dispor dela a todo o instante: bastava ela bater os sapatos mágicos que você estaria de volta ao Kansas. Logo em seguida, ouve-se o protesto do espantalho:

-Mas se você tivesse ido logo cedo eu nunca teria um cérebro.
- E eu nunca teria coragem, diz o leão.
- E eu nunca teria um coração, acrescenta o homem de lata.

É... a vida, mesmo por sofrimento e linhas tortas, no final parece fazer sentido. Mais ainda quando, adiante, podemos ver que sim, as respostas estavam ali, diante dos nossos olhos desde o princípio.

Essa semana que vem é aniversário da minha ex. Pela primeira vez em quase um ano entrei em contato, para dizer que gostaria de falar com ela, de ligar para dar parabéns ou algo assim. Estranho isso: entrar em contato para saber se posso entrar em contato... como um algoritmo que entra em loop, ou uma contradição que já existe na sua raíz. Pensei nisso por um tempo, mas não me apeguei a tais contradições: de tantas que vivo e vejo, seria das menores. Enviei a mensagem, embora no fundo, não saiba muito bem oque dizer. "- Happy birthday, I wish you all the ..." não sei o quão casual consigo ser... mesmo pra enviar uma mensagem já foi difícil, meu coração parecia querer se jogar pra fora de mim, que o diga numa ligação, falando-falado mesmo.

Esse deve ser oque... o terceiro relacionamento no estilo começo-meio-fim com este blog como diário de bordo? É curioso.. a gente nunca acha que vai passar, e nunca acha que vai gostar de novo de alguém, que vai deixar alguém se adentrar nas nossas vidas de novo, que vai ver esse rio de idéias, vontades, sentimentos e sonhos tomar outro curso, pra ir encontrar outro rio que, sabe-se lá de onde, apareceu para nos dizer que ali adiante há uma nascente, ou nos encantar com convites pra mergulhar e observar peixes. Sabe, ao longo desse pós relacionamento eu pensei e desejei, muito muito mesmo, poder ter deixado essa estória pra traz: estar em outro estado de espírito num bater de calcanhares, pronto pra outra. Mas... um rio não muda de curso assim tão rápido... quem sabe mais adiante me venha um "ahhh fez todo o sentido!" Não, até aqui não fez muito. Talvez para ela tenha, e seja bom pra mim ver, ouvir, e sentir alguma indiferença da parte dela em mensagens, se perceber como uma simples casualidade na vida do outro, ou mesmo na ligação que não rolou ainda. Talvez aí eu consiga colocar uma pedra nisso: "- por aqui não passa mais rio algum, bradou um gigante em protesto, ao colocar uma pedra no meio de um rio." Well... diferentemente das estórias gregas, poemas, contos, a vida tropeça nas suas próprias não linearidades. Às vezes, na verdade, a vida parece um teatro do absurdo, em que me pego com medo de falar oque sinto pra uma pessoa que, até pouco tempo atrás, era um rio emaranhado no meu, querendo desaguar no mesmo mar. Hoje nem sei pra que lado esse rio corre, em que nascente bebe, onde se emaranha. Que o diga eu, do meu próprio caminho.



ps: esse tópico me remete a uma outra música que adoro



[Can't We Be Friends? - Ella Fitzgerald & Louis Armstrong]