domingo, 26 de abril de 2020

O pior dos monstros, aquele que vive nas nossas sombras

Por estes dias conversava com minha mãe ao telefone. Tenho ligado pra ela todas as manhãs (brasileiras), e feito um pouco de companhia pra ela que está sozinha e quarentenizada por estas semanas. Proseamos versando um pouco sobre tudo mas de quando em vez o assunto cai em política, onde sei que minha mãe é muito mais direitista e conservadora que a maioria das pessoas que tenho nos meus círculos. Num desses dias,  enquanto falávamos sobre covid,  ela me conta sobre os assaltos que estão acontecendo no Brasil: sob a desculpa de vacinar as pessoas ou esclarecer a população sobre a quarentena, pessoas batem à casa delas e tiram vantagem da situação para assaltá-las. Minha mãe, indignada, solta um "aí vem esse pessoal dos direitos humanos pra defender essas pessoas".

Na hora fiquei um pouco perplexo, tentando entender a lógica que faz com que ela ligue coisas que pra mim são totalmente díspares, ou ao menos não diretamente associadas. Fico me perguntando um pouco triste como pode alguém ser levado a processar emoções e julgamentos de maneira tão rápida e inpensada, em como alguém pode ser extremizado por meio de notícias falsas (que circulam a torto e a direito pelo Brasil e pelo mundo). Fiquei calmo, pois ainda tenho paciênci;  mas chamei a atenção. A conversa terminou alguns minutos depois, mas saí com a a mente cheia de pensamentos confusos, e com um estranho desconforto pesando a alma, do qual só fui me dar conta depois. 

Me lembrei do que nos distingue das pessoas que julgamos. Como podemos nos dizer melhor que os outros se, quando nos é dado a chance de fazer diferente e mostrarmos oque é correto nós simplesmente agimos iguais àqueles que recriminamos? Fiquei pensando em Guantánamo (da qual havia lido mais uma vez sobre poucos dias antes), e me recordei de uma coisa curiosa de vários filmes, algo que só fui me dar conta agora: em diversos filmes sobre monstros, ou "anomalias" que nos visitam, no final são os humanos que perseguem o "monstro", monstrando assim suas facetas mais hostis e selvagens.  Em resumo: no fim das contas, aquele a quem nos referimos como monstro na verdade é o maior alvo da monstruosidade que existe dentro de nós. 

No meio desse pensamento-nevoeiro, me veio à cabeça uma cena do Edward - mãos de tesoura:

[Edward- scissorhands, Tim burton]


[Na verdade, era a cena das pessoas caminhando em direção ao castelo, querendo a cabeça dele]

E há outra, de um filme muito bonito do David Lynch

[The Elephant Man, por David Lynch  (Train Station Scene)]


E pra finalizar, umas das que talvez toque de maneira mais próxima neste assunto. Uma cena que me marcou muito quando vi, de um dos meus filmes favoritos, do Fritz Lang. O Peter Lorre está genial nela.


[M , por Fritz Lang (final scene)]


[Oque mais me marca nessa cena é que as pessoas sentadas são assassinos, ladrões, estelionatários...tudo oque você possa de imaginar nesse submundo]
[Enquanto o cara que está sendo julgado por eles (o Peter Lorre, no caso) é um serial killer, assassino de crianças]

Fiquei meio perplexo, num momento de epifania: "como pode.... eu nunca havia percebido que os monstros ali eram, no fundo, os humanos".

Seguiu-se a isso alguns segundos em que fiquei olhando meu café esfriando, e uma tristeza meio desesperançosa. Minha mente ficou andando em círculos procurando alguma coisa para poder pegar, para se agarrar em busca de esperança de que não, de que esses não somos nós. Mas sim, se não o somos, podemos ser "empurrados" a sê-los. 

Nessa estória toda, não fiquei triste exatamente pela minha mãe em si: ela no fim das contas é uma vítima desse fogo cruzado de notícias falsas que acontece a todo segundo debaixo dos nossos olhos. Me peguei triste por vê-la tão indefesa, presa não só na sua quarentena, mas cercada pelas paredes da cegueira, que não a deixam mais ter percepção do que acontece com ela, ou ao redor dela. Me aflige imaginar que ela é só uma nesse mundo enorme de casos e pessoas que desconheço, igualmente vítimas dessas mesmas coisas.... a má intenção das pessoas, que descobriram que a melhor forma de exercer influência numa sociedade é fragmentá-la com discursos divisivos.




sábado, 25 de abril de 2020

Apego

Essa estória tem umas semanas já, de uma amigona que mora em Portugal com o namorado, estudante de doutorado. Depois de  passado um dia inteiro escrevendo sua tese, trabalhando, redigindo, reescrevendo, desfazendo, unindo, control+c pra lá, apagando, control+v pra lá, ela vai pra cama. Acorda no dia seguinte, liga o notebook e.....

.... nada: todos os arquivos no seu hd estavam apagados.

TODOS!!!

Ela entrou em pânico: e a tese, como assim?! 

Minha amiga entrou em  desespero. Começou a pensar nas fotos que tinha, no último vídeo que fizera com a recém falecida avó, nos anos e anos de arquivos e outras coisas que estavam ali. Caiu no choro, inconsolável.

Essa estória até que terminou bem, com um backup que ela havia feito num hd do namorado umas semanas antes. Mas o mais interessante de tudo (além da lição de hoje: FAÇA BACKUPS!!!) foi essa sensação que ela dividiu comigo: a de que somos apegados demais àquilo que temos e fazemos. 

Fiquei pensando sobre o trabalho que agora escrevo. E sobre minhas coisas.... sobre minhas anotações de aulas, cartas que recebi, fotos de infância... e me vêm à mente a vaga lembrança de leituras que citam os traumas de pessoas que perdem tudo em catástrofes ou incêndios. Será que realmente somos aquilo que já produzimos? Ou aquilo que carregamos com a gente? Mesmo que seja nessa "virtualidade" dos bits, zeros e uns que - mesmo com/apesar do tempo - insistem em se alinhar para nós, mantendo  o significado que algum esculpimos neles.

É muito estranho se sentir tão apegado a coisas... por que percebemos a difusa fronteira que nos separa daquilo que é material, daquilo que é vaidade, daquilo que parecemos não precisar, mas que parece ser tão parte do que somos que sua perda é como uma amputação, uma parte de nós que deixa de existir.

Não pude deixar de olhar pros meus livros e coisas de outra forma depois disso. Claro, corri pra fazer um backup das minhas coisas (e recomendo que você faça o mesmo!), mas... fiquei pensando se fiz isso por apego, ou pura e simplesmente por responsabilidade e prudência. Sim: oque fizemos é parte de nós na medida que demonstra como dispendemos nosso tempo. Mas por outro lado... somos muito mais que isso(!). Somos Michelangelos moldando  bits por este mundo, e tão importantes quanto os Davids e Pietás binários que criamos. No entanto... são essas esculturas que os outros, de fora, podem ver: nós, como criadores, somos só matéria que perece, vida que perece e decai. 

Bom... pegue o seu lencinho por que o post tá tomando um rumo choroso hahaha Brincadeira :P Só foi mesmo um momento reflexivo que tive ao ouvir isso tudo. Torço pra que tenham ficado lições.

Direto da Terra do Sol Nascente # 89: o domador de leões

Senhoras e senhores!!

[Um público afoito grita e berra]

Esta noite teremos um participante de incríveis habilidade. 
[pausa estilo Obama fazendo discurso] 
Um homem que cruzou um rio cheio de crocodilos.
Que,  coberto em chagas, entrou num barril cheio de piranhas....
.... e neste mesmo barril desceu uma catarata de 50 metros.
Um homem que possui nada menos que 5 phds em diversas áreas das ciências dessa humanidade - leitura de cartas de tarot, um phd bíblico (como a ministra Damares), um phd em rádio, tv, e outros eletrodomésticos, jornalismo fakenewsiano doutrinatório, e finalmente um menos relevante em matemática aplicada. 
Que já escalou os montes mais altos desse planeta terra.
Que já encarou a solidão de dias sombrios no nosso ocidente e no oriente.
...e que já sentiu a tortura do ostracismo e da saudade.
E mais ainda, acreditem meus ouvintes: saiu ileso de diversos relacionamentos sem sequer um anelzinho ou filho.

[Camera focaliza rostos jovens e bonitos na platéia]
[Pessoas descrentes, incapazes de acreditar no que ouvem, trocando olhares escandalizados]

Sim senhores, este participante estará conosco esta noite, e enfrentará uma tarefa mais árdua e tenebrosa do que qualquer coisa que possa ter:
ele ficará preso numa casa em quarentena... um casa com quase tudo, exceto por algo crucial meus queridos: nenhuma barra de chocolate.....

... que tarefa árdua, não? Ééééé...todos estão curiosos para conhecer o ousado participante desta noite.

 Vamos chamar então ao palco... Raffaello!!!

[As cortinas se abrem... nada do outro lado]
[Um burburinho percorre a platéia]
[...o apresentador dá um sorriso enorme, tentando se manter o controle da situação]
[Um auxiliar corre em sua direção, dizendo algo em voz baixa... ]
[O apresentador reage "Co....co'mo assim, desistiu?..."]
[Um comercial toma conta da tela, e o programa termina]



sábado, 18 de abril de 2020

Direto da Terra do Sol Nascente # 88: um por vez

Há poucos dias recebi uma mensagem de áudio de uns amigos me falando das condições de vida por onde moram: filas para se entrar em supermercados, prateleiras vazias, filas com lugares marcados no chão para delimitar pessoas.   Ouvi a mensagem, mas não acredito ter depreendido muito do conteúdo ou da imagem que queriam me passar. Talvez só tenha tido mesmo uma real percepção do que me diziam na semana passada, ao ver marcas no chão do supermercado visando distanciar pessoas na fila; isso sem falar  numa espécie de "bolha" de plástico separando os caixas de supermercado dos clientes. A vida parece ter mudado a forma de processar as coisas: um por vez, bem longe; nada simultâneo, concomitante, nem tudo-junto-ao-mesmo-tempo ou mesmo em paralelo. Se antes vivíamos um "live together, die alone" sinto viver num "live together, relatively apart, and die alone". Distância deixou de ser medida pra virar simplesmente um verbo que permeia nossas relações sociais: "we should all practice social distancing".

Pensei bastante sobre o assunto, sobre o nosso desespero em querer fazer tudo ao mesmo tempo: em amar pensando em prazer, em ver pensando em postar no instagram, em postar no instagram pensando em trabalhar, em trabalhar pensando em não trabalhar, em não trabalhar pensando em dinheiro, em estar longe quando estamos perto, em fazermos tudo agora quando se há tempo no nosso horizonte. Me senti vivendo uma vida de dubiedades, onde nada parece ter o valor que, por si mesmo, deveria ter.

Dentro dos meandros da minha alma e existência recente, esse assunto se perdeu na correnteza e acabou desaguando em outros. Fiquei refletindo sobre o errar, sobre anteciparmos erros em algo que fazemos pela primeira vez, na sua insuficiência, como se nunca nos fosse o bastante aprendermos com  experiências anteriores. Será que toda dificuldade terá seu próprio sabor de dificuldade nova? Ou será que, sem nos darmos conta, aprendemos algo com os erros, algum resquício de partículaprendizado, que nos fica inserida na alma-chapa-de-chumbo, como um raio-X, ou como um anticorpo/antierro,  pronto pra pular na frente do trem e nos defender de qualquer dificuldade patogênica mundo a fora. Lembrei um pouco daquela cena da borboleta no Memórias Póstumas de Bras Cubas, onde o narrador encontra uma borboleta brincando no quarto:
" 
No dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para descer, entrou no meu quarto uma borboleta, tão negra como a outra, e muito maior do que ela. Lembrou-me o caso da véspera, e ri-me; entrei logo a pensar na filha de Dona Eusébia, no susto que tivera, e na dignidade que, apesar dele, soube conservar. A borboleta, depois de esvoaçar muito em torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ela foi pousar na vidraça; e, porque eu sacudisse de novo, saiu dali e veio parar em cima de um velho retrato de meu pai. Era negra como a noite. O gesto brando com que, uma vez posta, começou a mover as asas, tinha um certo ar escarninho, que me aborreceu muito. Dei de ombros, saí do quarto; mas tornando lá, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo logar, senti um repelão dos nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.

Não caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça. Apiedei-me; tomei-a na palma da mão e fui depô-la no peitoril da janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.

-- Também por que diabo não era ela azul? disse eu comigo.

E esta reflexão, -- uma das mais profundas que se tem feito, desde a invenção das borboletas,-- me consolou do malefício, e me reconciliou comigo mesmo. Deixei-me estar a contemplar o cadáver, com alguma simpatia, confesso. Imaginei que ela saíra do mato, almoçada e feliz. A manhã era linda. Veio por ali fora, modesta e negra, espairecendo as suas borboletices, sob a vasta cúpula de um céu azul, que é sempre azul, para todas as asas. Passa pela minha janela, entra e dá comigo. Suponho que nunca teria visto um homem; não sabia, portanto, o que era o homem; descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu que me movia, que tinha olhos, braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal. Então disse consigo: «Este é provavelmente o inventor das borboletas». A idéa subjugou-a, aterrou-a; mas o medo, que é também sugestivo, insinuou-lhe que o melhor modo de agradar ao seu creador era beijá-lo na testa, e beijou-me na testa. Quando enxotada por mim, foi pousar na vidraça, viu dali o retrato de meu pai, e não é impossível que descobrisse meia verdade, a saber, que estava ali o pai do inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe misericórdia. 
[Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Capítulo XXXI A borboleta preta]
Seríamos nós essa borboleta, voando pela vida e pousando em cada problema, tentando reconhecer neles o pouco de mundo que já conhecemos/carregamos às costas (ou melhor, debaixo das nas nossas asas)? Borboleteamos, pousamos, fazeos de tudo o possível, mas somos repelidos e  não sabemos o porque: antes fossemos azuis? Fiquei divagando-viajando, pensando em mim...  refletindo  sobre os meus perrengues e entraves escrevendo, criando. Pouso num problema e me pergunto: "seria esse a causa maior de tantos empecilhos"?  Simplesmente não sei. 

O criar, desfazer, melhorar, refazer, aprimorar... toda dificuldade a olhos virgens é como um novo abismo. Pondero sobre o meu esforço em descrever a  complexidade do que faço agora e  se, por tentar resolver todos os problemas ao mesmo tempo, em todos os capítulos, acabo incorrendo em tantos tropeços: "pouso na testa, ou pouso no retrato? Onde está o senhor das borboletas?"". Não seria melhor ir sanando os problemas  um por vez, consertando-os pacientemente? Me pergunto se nos dois processos de criação e elaboração de algo novo se existe uma  maneira mais fácil de se "evoluir", de se chegar a um processo final: um-por-vez, todos-de-uma vez? 

Mas claro, uma borboleta nunca pode pousar em dois lugares ao mesmo tempo..


quarta-feira, 15 de abril de 2020

Direto da Terra do Sol Nascente # 87: essencialmente desimportante

Ontem, sabe-se lá por que, comecei a refletir um pouco no que tenho visto pelo mundo: médicos, enfermeiros, entregadores, lixeiros, varredores... todas essas pessoas que estão expostas pelo mundo agora, correndo risco. Me vi aqui, dentro de casa, notebooks na mesa, livros etc.... me pareceu estranho perceber isso, e me senti como que tomado de uma reflexão besta mas meio catártica:  percebi que todas essas profissões das quais falei são essenciais, e a minha não. Ou seja, se caísse um meteoro  no mundo (nem precisa tanto, vide a situação de agora), poderiam me jogar pra debaixo do tapete que não faria diferença ...

well, well... isso não siginifica  que oque faço, ou oque tantas outras pessoas que estão trabalhando em casa por estes dias, não seja importante. Pode ser importante, mas não é essencial. 

E que coisa estranha essa, não é mesmo? FIquei pensando numa das minha sprmeiras terapias há anos atrás, onde eu e a terapeuta ficamos praticamente uma boa parte de uma sessão discutindo os conceitos de "urgente" e  "importante", nume debate meio filosófico, meio sessão de terapia ("oque-simplesmente-era"), e que, agora vejo, negligenciou brutalmente essa palavra: o essencial. 

Essencialmente ignorada, essencialmente esquecida, nunca desprezada, nem mesmo esquecida. A vida segue por aqui, entre o urgente, o importante, e a insustentável percepção de que o essencial, mesmo, é oque muita coisa do que eu não faço.

E oque se pode tirar dessa situação, agora que me conscientizei sobre isso? Não sei... talvez eu passe a dar mais valor pra outros tipos de trabalho...? Claro, todo mundo se acha importante e tal, mas essencial...(!!!)... realmente, passei a ter mais respeito por diversos outros tipos de trabalho. Com o trabalho de biólogos principalmente (admito); oque me traz à lembrança o "two cultures", aquele livrinho do C. P. Snow sobre as diferentes áreas do conhecimento que não conversam entre elas. De fato, não só não se conversam como mantém preconceitos enooooormes umas com as outras! Mas essa é uma outra estória, da qual falei um pouco sobre em Direto da Terra do Sol Nascente #69: Endurance II (colaboradores)

[Curiosamente, este post tem uma foto do "endurance", do Shackleton,  uma estória da qual me lembrei hoje]
[Então, como homenagem, o post termina com uma linda cena dos dias em que eles estavam presos no gelo, com o Endurance ao fundo]




quarta-feira, 8 de abril de 2020

Direto da Terra do Sol Nascente # 86: o mais próximo que dois podem estar agora

 
" No man is an island, entire of itself; every man is a piece of the continent, a part of the main; if a clod be washed away by the sea, Europe is the less, as well as if a promontory were, as well as if a manor of thy friend's or of thine own were; any man's death diminishes me, because I am involved in mankind, and therefore never send to know for whom the bell tolls; it tolls for thee."
[John Donne, em Meditation XVII] 


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Metros? Pessoas? Nesse exato momento a única recomendação que corre o mundo é de praticar distância social. Como um mindfulness ao avesso, que te joga pra longe da sua humanidade, ou um jogo de squash que se joga sozinho, distanciar-mo-nos socialmente só parece fácil no Japão, onde o distânciamento social parece ter existido desde sempre (será que é por isso que o número de vítimas do covid-19 é tão baixo aqui?).

Ontem li John Donne de novo, depois de muitos anos. Não conhecia este texto, e tive a sorte de ouvir falar dele por acaso, lendo um texto muito bem escrito da ex-senadora Marina Silva na Folha de São Paulo. 

Acaso este por sinal que nos trouxe onde estamos hoje.... por evolução, ou por tentarmos lutar contra ela(?). Oque é ser consciente do mal que adentra suas fronteiras, como os índios que viam os espanhóis desenbarcando na costa sul-americana? Ou aborígenes vendo homens brancos dizimando uma terra tão intrinsecamente parte do que eram, que se viam violados pela "posse" da mesma (que lhes era tomada) e pela vida dos seus irmãos sendo mortos por peste, bala, e outros infortúnios?  Penso em tudo isso... penso na distância social, na distância que me separa de tanta gente agora: Brasil, Japão, EUA, Europa.... Oque é praticar distanciamento social, se a única forma como sabemos viver é perto uns dos outros? 

Falei com meu pai estes dias. Enviei dinheiro pra ele, pra compensar as perdas que ele teve ao não poder trabalhar por estes dias. Mas... cabeça dura que é, voltou a trabalhar: quando falei com ele, me atendia do trabalho.

"-...desculpa, filho: me interromperam por aqui!", me disse ao telefone.

Uma interrupção por corona na vida do mundo, das pessoas. "Causa mortis: vida interrompida por um diminuto vírus". 

Fiquei pensando nas mil maneiras que ele, ou que minha mãe (à qual sou mais apegado) podem pegar essa doença. Reflito mais uma vez sobre a distância, e ainda sobre a vulnerabilidade de, longe ou perto, não poder fazer nada. Algo que vem pra buscar pulmões, e que segue ininterrupto mesmo diante das nossas queixas. Me aflijo diante da distância, diante do medo que sinto na voz da minha mãe, que olha pro mundo da sua janela, e tenta encontrar um pouco de sol que peneira pelas janelas pra tentar caber num apartamento pequeno. 

Apartamento
Apertamento
Apartamundo
Apertamundo

O mundo lá fora parece tão grande e, mesmo assim, já não cabemos mais nele. Luto? Sim, de imaginar que podemos voltar pra um lugar que não existe mais. Ou melhor, que existe, mas de uma outra forma. 

Há alguns dias olhei minhas ações na bolsa. Isso logo num dia em que o presidente brasileiro bradava pra todos os cantos que "o Brasil não pode parar, temos que voltar a produzir", e outros impropérios como "meia dúzia vão morrer"... sinto-me machucado, ferido na minha humanidade ao ouvir isso. Mas voltando: diante do burburinho de que o ministro da saúde (que é a favor da quarentena) poderia ser demitido, o mercado dispara, mostrando sinais de melhoraç vejo minhas ações subindo, horrorizado. Acho que já falei sobre isso antes (em Diagnóstico: descolamento do mundo) ... de como investir me traz um sentimento de hostilidade, algo que comecei a chamar "descolamento de mundo"... ou mais precisamente, de como o interesse dos especuladores, dos grandes investidores, é diametralmente oposto aos interesses de um povo, dos mais fracos. Me envergonhei... mas dessa vez consegui traçar uma linha mais clara no chão: meus valores difícilmente seriam levados a isso, a esse individualismo. E não que não seja corruptível, muito pelo contrário: quem não é, não? Mas sinto que não me corromperia de maneira tão baixa, conscientemente violando a humanidade dos outros deliberadamente da mesma forma que essas pessoas fazem ao defender suas "riquezas", bens e propriedades.

E sigo me envergonhando, mais uma vez, ao ler a  Marina Silva no texto que citei acima, dizendo que essa pandemia  já lhe era conhecida, da época de adolescente: perdeu duas irmãs, a mãe, e mais uns parentes numa epidemia de sarampo. DE SARAMPO! ACREDITA?! Me envergonho de saber que viramos as costas para essas pessoas. Pra quem tinha menos. O "grande brasil para todos", dos militares que tanto zelavam pelo bem de todos e desenvolveram o Brasil-ame-ou-deixe-o- levando à uma potência, virando as costas a quem tinha menos, pessoas que acabaram abatidas, extinguidas, por um simples e contornável sarampo. 

John Donne tinha total razão em dizer que cada morte é um pouco da nossa humanidade que se acaba. 

domingo, 5 de abril de 2020

A hora de parar, e a hora de melhorar

Por estes dias uma amiga que mora com o namorado em Portugal me falava dos infortúnios de se escrever uma tese de doutorado. Não sabia muito oque dizer, mas no tempo que tive pra pensar (já que a conversa se passou por mensagens de áudio no whatsapp, ou seja, como mensagens jogada ao mar em garrafas), disse a ela o seguinte: 

"-Escrever pode ser cansativo, leva tempo, demanda paciência. Mas você vai poupar muitos esforços se você souber parar na hora em que você não estiver mais melhorando oque escreveu, e sim reescrevendo a mesma coisa, só que com outras palavras"

Acho que fez tanto sentido que tomei isso como um mantra próprio: saber parar quando não se há mais nada a dizer, ou para melhorar. E isso não vale só pra escritas, mas tambémem contextos como discussões, onde se deve reconhecer que o outro precisa de um tempo para processar uma conversa, ou onde insitistir em obter um "você está certo(a)" pode ser mais prejudicial à relação do que qualquer coisa. Saber parar e respeitar o tempo das coisas é um grande virtude. Que, devo frisar, estou longe de possuior em abundância, mas que certamente guia minhas relações com as pessoas e comigo mesmo.

Hoje, no entanto, comecei a pensar numa outra questão que, embora tangencial, é próxima: quando é que você melhora algo? 

Deixa eu esclarecer o contexto: você tem um time ganhando, tudo funciona, tudo corre bem. Mas você sabe que pode fazer ainda melhor (mas que há de levar um tempo, e um certo esforço). Em outras palavras: melhorar, "otimizar", tem um custo. E então? Por que melhorar nesse caso?

Fiquei me perguntando, e buscando exemplos que já vivi. Há umas 3 semanas, por exemplo, eu coloquei um programa pra rodar num supercomputador e, mesmo com toda a matemática do mundo, o negócio levaria dias pra ficar pronto. O programa estava lá, correto, mas eu me desesperava em vê-lo demorando tanto pra me dar oque eu queria (o resultado). Aí parei, pensei um pouco, e vi que poderia diminuir o tempo de espera caso mudasse algumas coisas que, infelizmente, me tomariam tempo de reescrever tudo oque havia feito. 

Sim, lá fui eu me degladiar com a tarefa.... que, ao final de dois longos dias, foi coroada com o mesmo problema rodando no mesmo supercomputador e me dando a resposta em 10 minutos.

Simples? Lição pra vida? Rafaello, fazendo discursos motivacionais em universidades e feiras de carreira com palavras chave "otimize!", "melhore seus ganhos"?

Nope... não sei... e olha: tudo isso que estou escrevendo aqui me passou pela cabeça em 5 minutos, enquanto me questionava se devo ou não melhorar um outro problema cujo resultado me é dado com certa "dor" (o que se traduz aqui em tempo: coisa de umas horas num supercomputador rodando com uns 40-50 cores), mas pelo qual posso esperar. E nesse contexto: meu discurso "motivacional" é totalmente diferente aqui.... não rola. É outra coisa, é outro problema, um "quase-diferente" contexto... e não sei: quero sentar e melhorar, adoraria ver a coisa toda numa forma mais limpa e clara.... mas não sei....

Olha... já adianto: virou um post sobre a poesia de se programar rsrs Mas vamos lá: juntem-se comigo (dois metros de distância, por favor... corona tá complicado) e vamos adiante nor perder em ifs,  whiles e breaks.... há uma poesia intrínseca por trás de cada algoritmo porque há (em geral) um humano que o fez. 

Logo que voltei da minha viagem pra América este ano, me vi diante de um código/programa monstruoso de umas 1000 linhas (isso é realmente bastante, acredite). Cheio de energia das férias, de tanto papaya na américa do sul e do carinhos de muita gente que amo na mala, resolvi encará-lo e.... depois de uma semana ele se reduziu a 600 linhas: mais rápido, mais esbelto, perfumado, e com dinheiro no banco. Sim: era o melhor dos sonhos. Só que agora é este mesmo ser que eu questiono se deve ser ainda mais "mimado" pra chegar mais longe.... 

.... será que você merece tanto do meu tempo assim?

sexta-feira, 3 de abril de 2020

A insustentável leveza de se perder em teoremas

Linha de chegada, ali adiante.

Você já vê tudo: o sol, a praia, o descanso (bom...ignorando corona-times)...

Aí você vai, e prova um teorema: que te diz que você poderia ter feito melhor.

Que merda.... volto atrás e refaço tudo? Tento colocar dias de simulações computacionais no contexto certo? 

Foi tudo perdido? Perdido?!!

Bom... depois de dias em que nadei em papéis, jogados pela minha sala-casa-escritório-shelter-from-the-storm, me acalmei: se é esse o caminho...que seja, façamos de novo, adicionemos mais linhas a complexa monstro-serpente de mil cabeças.

Pra acrescentar à minha recente quebra de protocolos ao ficar apurrinhando os outros com coisas nonsenses, vou contar brevemente sobre um sonho que tive (não, não vá embora!!! É rápido!!) Por estes dias sonhei com uma onça dando o bote numa girafa, cujo pescoço se mexia como uma serpente. Eu ali, em desespero, testemunhando aquele duelo e torcendo para não ser notado (seria eu, a próxima isca). A onça se descolocando e fugindo dos botes da girafa/serpente, dando nós no seu pescoço... até que a batalha parece finda...e a onça parece levar o troféus às costas ...quando, pra minha surpresa, é o contrário: a onça que vai às costas da girafa serpente, abatida... 

É foda... acho que é justamente isso....

[Tô brincando hahaha o sonho não me disse porra nenhuma, mas foi uma imagem linda de dois seres monstruosamente fortes se degladiando]

Talvez eu tenha que me conformar e agradecer... por que há tempo de se refazer, há tempo de se melhorar. Sem falar que deveria ser no mínimo grato por ter encontrado uma forma mais clara pra entender a questão. Oque me chateia é ...sei lá...meu orgulho? Como uma namorada que tem sempre razão, a matemática entrou na minha casa, bagunçou meus rascunhos, tirou meus livros de ordem (e emprestou alguns a conhecidos)...e no final, ela ainda estava certa: é a porra de um teorema, não tem como discutir!! E isso que me pega... por dias fiquei mordido com o resultado, meio apreensivo.. "talvez não seja verdade"... ou "talvez não queira realmente dizer oque diz"... e ainda "talvez dê pra ser estendido pros parametros que considerei...."  Não, não, não.... você vai fazer de novo.

É ... dei o braço a torcer, engoli meu orgulho, e admiti que não há oque fazer: vocẽ está certa... e se é o certo que deve ser feito eu vou lá e faço de novo