domingo, 28 de julho de 2019

Direto da Terra do Sol Nascente #58: do orgulho, abismos com o mundo, e da arrogância

Antonio Porchia, em Voces

Semmelweis foi um médico Húngaro que trabalhava num hospital em Viena, Áustria, onde, à época, a mortalidade de mães era absurdamente alta: por volta de uma a cada dez morria. Notando que muitos médicos tinham uma prática higiênica deplorável (por exemplo, ir fazer autópsias e, com a mesma roupa e sem lavar as mãos, voltar para ver as pacientes na maternidade) ele simplesmente sugeriu que os médicos Vienenses lavassem as mãos antes de entrar na maternidade. 


Pra que: isso deslanchou uma salva de críticas a ele.

 "- como assim, um médico, um ser magnânimo e nobre, que trata das pessoas, que só pensa no bem dos seus pacientes, ter que lavar as mãos?!" Foi alvo de duras críticas, várias piadas e coisas do tipo. Mesmo assim, a medida foi implementada e, para a surpresa de muitos, a mortalidade de mães caiu muito (pelo que li, baixou a 1%). Mesmo sem saberem o porque do resultado¹, as críticas - pessoais e profissionais- a  ele continuaram. Até que ele não aguentou mais e teve um "nervous breakdown": foi colocado num hospício, onde morreu duas semanas depois². 

Mas pra que estou dizendo isso?

Recentemente estava lendo "o cavaleiro inexistente", do Italo Calvino. Nele, ele descreve esse cavaleiro medieval que é incrivelmente habilidoso, de uma erudição ímpar, um exemplo de virtude, coragem e honra. MAS... por dentro da sua armadura, não há nada: ele é simplesmente oco. O livro é muito interessante e engraçado em alguns pedaços. Ele simplesmente mostra o quão inábil este cavaleiro (Agilulfo) é em lidar com o humano, com fraquezas e viéses que nos são intrínsecos, parte da nossa natureza. De certa forma, ele representa o intangível, o inalcançável. Outro fato: por mais admirável e "modelo de comportamento" que Agilulfo seja, ele afasta as pessoas ao seu redor. No alto de sua arrogância em ver o mundo, em saber de tudo e estar certo em tudo, Agilulfo segue pelo mundo sem aliados e, mais que tudo, sozinho.

Mais uma vez, pra que estou dizendo isso?

Inicialmente porque li este livro no ano passado, e não pude deixar de pensar na minha situação de "abismo com o mundo" (da qual falei no post anterior) aqui no Japão, onde essa separação me fez pensar sobre o lado em que estava nessa estória. Estaria eu agindo com o Agilulfo, me afastando de tudo e todos? Me perguntei muito se estava sendo arrogante ao longo do caminho, e se a dificuldade estava em mim. No fim das contas, cheguei à conclusão que não: acho que em nenhum momento deixei de me abrir pro lugar em que estou. Mas, nesse instante, acredito que meu tempo neste local se esvaiu de propósito, de significado. E não existe arrogância nisso: é simplesmente uma escolha.  

O orgulho, a arrogância, nos cega. Ele pode ser como essa armadura do cavaleiro inexistente, que o mantêm em pé e o "protege" do que é mundano, dos males dos homens comuns. E, a medida que nos entrincheiramos no universo limitado em que vivemos, ao acreditarmos que somente aquilo que trazemos na nossa bagagem é bom e correto, nos afastamos do mundo e daqueles que nos cercam. Refutarmos sugestões e recomendações daqueles que nos amam e se preocupam conosco, simplesmente por serem elas diferentes de tudo aquilo que vimos e vivemos, ou simplesmente por conta de quem as diz. Esse processo de "refutar por ser diferente" amplifica os vícios e defeitos que temos (inerente às nossas vontades), e cria um enorme abismo entre nós e o mundo (ou, ainda, uma armadura, que se sustenta em si mesma mas que, por dentro, é oca).

Essa semana foi muito curiosa: uma, diante de uma conversa com um "sensei" japonês, super arrogante, cuja atitude diante da elucidação de um problema foi de pura e simples indiferença (algo que eu levaria numa boa, não fosse ter sido este mesmo "sensei" japonês um dos maiores entusiastas da resolução por uma idéia que lhe mostrei, meses atrás), na qual a única coisa que ele quis fazer não foi me ouvir, mas simplesmente ter algo pra dizer. E outra: uma conversa com um amigo que não via há 7 anos(!) e que, dos mais de 10 anos de namoro que teve (e que terminou recentemente), me disse lembrar da ex lhe pedindo desculpas duas vezes somente³.

Todos nós carregamos e agregamos partes a essa armadura, que varia em espessura e peso ao longo do tempo e da relação da qual se fala. E veja que isso não é de todo ruim: o orgulho pode nos ajudar a seguir adiante, a nos proteger de um ambiente hostil; bater o pé por estar correto pode nos fazer ver que o outro lado "care about" ao ceder. Mas nada disso, de forma alguma, nos define: essa armadura não é oque nos mantêm em pé! No fim das contas, ao nos confundirmos com as armaduras que carregamos/construímos, simplesmente nos transformamos nelas, e por consequência nos tornamos ocos por dentro.  Infelizmente, quando isso acontece  deixamos de ser humanos, pois à medida que coexistimos com a nossa finitude, com as nossas limitações em ver o mundo ao redor, e nos abrimos a outras perspectivas, passamos a  viver um pouco mais em equilíbrio com tudo aquilo que é falho em nós mesmos.

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1 Isso tudo bem antes de Pasteur existir, quando as pessoas ainda nem tinham idéia do que eram germes nem nada do tipo 

Alguns dizem que por suicídio, ao infligir uma ferida na propria mão deliberadamente; outros por ter levado uma surra dos cuidadores do hospício. 

3 Quando ele havia me dito sobre o término eu bem imaginei que me diria algo do tipo: há sete anos atrás, quando os encontrei da última vez (numa viagem que fiz com uma ex à época), eu e a minha então namorada  conversamos sobre a atitude constrastante entre os dois ao abordar um desacordo. Aparentemente, já na época havia um desequilíbrio no "ouvir" entre eles, um lado cedendo mais pra poder compensar o déficit do outro, algo do qual nem falei pro meu amigo. Às vezes leva tempo para aceitarmos e entender essas coisas. Ainda mais quando é da nossa natureza dar o primeiro passo, "jogar um pedaço da nossa armadura fora", para poder acolher o outro mais perto com um abraço. 

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