sábado, 12 de outubro de 2019

Direto da Terra do Sol Nascente #69: Endurance II (colaboradores)



[foto do Endurance preso no gelo, por  Frank Hurley]


Uma semana de pleno marasmo, de brisas que vem do sul se intensificarem num tufão que assola grande parte da mainland japonesa. O céu lá fora amanheceu e permanece cinza, com pitadas de chuva que intermitentemente se tornam fortes ou fortíssimas... especialmente quando você está na rua sem guarda-chuva. 

Sigo, aqui na terra-do-sol-nascente-que-na-verdade-hoje-não-nasceu, lendo Shackleton, estarrecido diante de uma viagem de tantas dores e com uma riqueza de interações humanas tão grandiosa: uma equipe se desentendendo à beira da fome, os momentos em que a ordem superior era admirada, as horas em que as decisões superiores desandavam em discórdia e dúvida sobre o quão efetivas realmente eram, o medo à beira da morte, o frio, um homem que quase chora ao ver seu leite derramado (literalmente), a compaixão... Me admiro ao ver (sob meus olhos, claro) tantas analogias entre essa jornada e meu caminho, que parece não ter rumo fixo e ter que ser recalibrado no compasso de tempos em tempos a depender da direção que o vento sopra. 

Esta manhã acordei com um email de um colaborador da época de doutorado, que me perguntava se gostaria de estender um projeto que fizemos a um novo projeto, oque me fez refletir sobre o grande contraste que são/foram minhas colaborações em terras nipônicas e em águas americanas/européias. Escrevo na minha cabeça a resposta: "não poderei, sigo um outro rumo agora... " mas busco não cair em ansiedades de antecipar minhas palavras, que hão de chegar no momento adequado. Tento refletir se é algo cultural "-é mais fácil colaborar com ocidentais", mas me repreendo por pensar algo assim: uma cultura influencia, mas não molda integralmente o caráter dos que vivem nela. Minha mente se prende em memórias: sentar numa mesa com um grupo e só ouvir silêncio do outro lado, que se olham entre eles à espera de alguma palavra do "chefe", é realmente algo estranho/novo... a hierarquia interna de outros grupos, o porquê das pessoas trabalharem em algo... me pergunto, como me perguntei várias vezes nesta semana, se essa dinâmica em que eu acabo tendo que tomar mais espaço do que gostaria numa colaboração (ou seja, uma relação de trabalho "desequilibrada") nasce em virtude da minha natureza, ou por conta da natureza interdisciplinar do que tenho feito e buscado ultimamente. Há ainda outras questões em paralelo: "-será que gosto de trabalhar com quem trabalho? Os admiro, admiro o input deles?" Às vezes é difícil ser honesto consigo mesmo e procurar, dentro de si, a verdade, se é que existe uma. 

Não tive muitos colaboradores e, como disse antes, tento me abster de generalizações quanto à cultura baseadas só no que vivi: recrimino essas linhas de raciocínio por que sei que afunilam a idéias errôneas sobre oque realmente se passa e margeiam raciocínios simples e enganosos sobre os outros. 
[Lá fora, mais chuva...]
Leio, procuro entender o porquê das minhas colaborações com ocidentais terem fluído melhor ("-... porque sou ocidental?") do que com japoneses. Me recordo de leituras sobre retratações de artigos científicos ao redor do mundo  e sobre ética e fraude em ciência (este último focado em acedmia japonesa). Tento encontrar uma luz pra tudo isso, pra natureza de interações de grupo tão fracas, em contraste com outros grupos em que a conversa flui e cada parte parece querer  ajudar as outras, além de ter a clareza dos seus afazeres. Recordo de um artigo antigo do nytmes, What Google Learned From Its Quest to Build the Perfect Team, sobre toda a complexidade por trás de gerir, crescer e criar em grupo... me pergunto se a culpa é minha...

Minha mãe sempre disse que meu pai gostava de ser o melhor dentre os piores. Nunca entendi bem essa frase, e sempre a achei mais "bitterness" entre pais separados do que qualquer coisa do tipo. Mas me surpreendi, anos depois, ao conversar com meu orientador de mestrado, logo antes de eu ir pros EUA estudar, que me dizia que eu nunca deveria me deixar abater por não ser o melhor, mas sempre olhar ao redor para e perceber ver se/que trabalho dentre (ou com) os melhores1. Ouvi um pouco minha mãe ali; como uma antítese sobre duas personalidades distintas, a frase ressoou em minha cabeça umas tantas e tantas vezes... ainda mais vezes desde que cheguei aqui. Frase que me vinha à mente enquanto tentava entender (oque levou os  4 ou 5 primeiros meses) que a falta de ar e angústia que eu sentia ao ir trabalhar com um grupo gerido por um matemático bem sênior daqui (que se aposentou já) era não outra coisa senão falta de admiração pelos que me cercavam. Todas as vezes que isso acontecia era acordar de um sonho na mini-apple, e cair aqui, preso com aquelas pessoas em silêncio, esperando o chefe deles dizer algo. 

Realmente, uma situação tão sufocante que beirou a depressão. E como disse, levou uns 4 meses e diversas idas à terapia pra entender oque buscava, para poder "break away" da segurança em manter laços com antigos colaboradores "overseas" que me serviam, de certa forma, como porto seguro, e para romper com oque vinha daqui, que mais parecia vir pra afundar meu barco doque qualquer coisa.  Encontrar paz em mim mesmo, aceitar que em algumas jornadas eu estaria sozinho, e procurar entender quando devo ceder por humildade, quando devo me resguardar e remar meu barco pra um outro lugar. 

Talvez o Japão tenha vindo no meu caminho pra me ensinar um pouco de tudo isso. 



1 Ele na verdade não falou exatamente isso, embora tenha sido dessa forma que depreendi suas palavras

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