domingo, 1 de março de 2020

As mentiras que os sonhos contam

Não sei quando foi que isso aconteceu... provavelmente na época da faculdade que ouvi essa estória. Na verdade tem tanto tempo que nem sei se foi comigo mesmo, para você ver como fatos acabam se tranformando em folk tales.1 A estória era a seguinte: alguém, perguntado sobre seu signo, disse: 
"... - Eu não acredito nessas coisas de signo. Não é importante"
Ao que a pessoa que havia questionado diz: 
"- É... é verdade... também não acredito... já que, oque importa mesmo, é o ascendente"

Eu acho esse diálogo genial. E, de certa forma, ele tem a ver com o ato de discutir sonhos: é realmente algo inútil e, a depender da abordagem, desprovido de sentido. Alguém chegar pra você e tentar contar  detalhes de algo que é o fruto de uma máquina "ilógica", concatenadora de fatos, impulsos, etc etc, e que ninguém sabe muito bem como acontece, como se fizesse algum sentido....?


Não, babe: não faz.


[Acabo de lembrar de Gilberto Gil cantanto "O sonho acabou" :)]


E mesmo assim, depois desse discurso anti-onírico todo, essa acidez toda ("rapaz, vc não tem dormido direito? Onde estão os teus sonhos?"), eu devo admitir que sim, que já falei sobre sonhos antes (em Things in life: o sonho de Rafaello/the dream of Akinosuke...acontece, pessoal, mesmo nos melhores blogs :P).  Só que dessa vez é diferente, pois vou falar da beleza  que vi no sonho, e não do sonho em si. Mas claro, se eu em algum momento tropeçar e começar a procurar sentido no sonho é porque, no fundo no fundo (mesmo), eu procuro depreender o significado de toda a beleza intrinsecamente contida nos pormenor... ok, ok, vamos lá


No sonho, objeto dessa análise "científica", eu estava num lugar que mais parecia um deserto. Há algo no chão que me parece diferente de uma rocha, e no qual piso várias vezes, de maneira a apontar pros outros ao meu redor. 
Pra minha surpresa, quando retorno mais adiante no sonho, o lugar está todo escavado ao redor daquele objeto, que na verdade era uma bomba branca, enoooorme, cravada no chão como se tivesse caído do céu como um dardo. Ao redor, uma cratera gigante que mais parecia um canion, de uma beleza incomensurável!! À direita e à esquerda, dois rios correm em direção à cratera mas que, na verdade, eram um rio só que fora interrompido por essa cratera/bomba enorme. 

Aí você coloca na equação:

1 rio partido ao meio +
2 pedaços de rio que correm em direções opostas +
1 bomba enorme que não estourou, fincada no chão como um dardo (Freud, não era um falo, te juro!)+
um céu lindo e um canion maravilhoso =
um sonho incrível, mas sem sentido algum.

Claro, posso me desdobrar como um contorcionista do circo do soleil procurando sentido nisso todo, mas não: faço as metaforas que quero em função do momento que vivo.  

Como num sonho, é interessante refletir e ver que a vida recentemente têm andado um pouco como aquela música do Chico, samba do grande amor, e que me parece como um sonho também, onde a veracidade do  sei/não sei, verdade/não verdade parece flutuar ao longo do tempo, não sei se por olharmos a situação de fora, ou simplesmente por somente aquele que a vive saber das sutilezas que a situação incorpora. Dá pra se aceitar também a hipótese de um hindsight bias, onde aquele que canta desde o começo parece já se achar no direito de dizer que desde o início ele já sabia que tudo aquilo era mentira. Segue-se nesse loop do "é mentira oque acabei de te falar,  viver" ou, "foi tudo verdade, mas no fundo era só um castelo de cartas, um sonho", ou ainda a interpretação de que uma parte de tudo isso que vivemos não passa sim de uma grande mentira.


                     [Chico Buarque, samba do grande amor]



Certamente, há diversas maneiras de fazer combinatória com a mentira nesse contexto todo, e considerar quantas maneiras, tamanhos, modos e formas ela vem a tomar parte na nossa existência. E tudo segue assim, nessa linha tênue entre oque é verdade, oque achamos que é verdade, oque é mentira (e não sabemos/sabíamos) e a mentira propriamente dita, que parece nos esperar de tocaia atrás de portas, debaixo de mesas, dentro de livros.

Mas você ve, acho que cumpri o combinado: era só pra falar do sonho mesmo, embora eu tenha digredido musicalmente e em elucubrações aqui e ali :)



1  Curiosamente, apesar do desdém e certa conotação negativa que a palavra "folk" traz à veracidade de um conetúdo, isso acontece em ciência também. Vide os "folk theorems" ou "folk results", que todos em algumas áreas científicas conhecem mas ninguém sabe como prová-los (ou teve paciência de fazê-lo). 




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