Continuando o post Um documentarista se dirige a cientistas: Arte, ciência e desenvolvimento
RESPONSABILIDADE Vivendo quase exclusivamente no hemisfério das humanidades, recebo poucas notícias do lado de lá. O que eu teria a dizer sobre ciência fica perto do zero. Por outro lado, como especialista na minha própria ignorância, posso discorrer sobre ela sem embaraços. Com as devidas ressalvas às exceções que devem existir por aí, estendo minha ignorância a todo um grupo de pessoas e me pergunto de quem seria a responsabilidade por sabermos tão pouco sobre as leis que regem o que nos cerca. As respostas são previsíveis. Em parte, a responsabilidade é dos próprios cientistas, que não fazem questão de se comunicar com a comunidade não-científica; em parte é dos governos, que raramente têm uma política eficaz de promoção da ciência nas escolas; e em parte -e essa é a parte que mais me interessa- é nossa, das humanidades, que tomamos as ciências como um objeto estranho, alheio a tudo o que nos diz respeito. A quase totalidade dos personagens de classe média da
literatura e do cinema brasileiro contemporâneos pertence ao mundo dos
artistas e intelectuais. São jornalistas, escritores (geralmente em crise e com bloqueio), professores (quase sempre de história, filosofia ou letras),
antropólogos, viajantes (à deriva), cineastas, atores, gente de TV ou filósofos de botequim. Quando muito, um empresário aqui, um advogado acolá. Para encontrar um engenheiro ou médico, é preciso voltar quase a Machado de Assis. Cientistas são pouquíssimos, se bem que no momento não me lembro de nenhum. (Os filmes de Jorge Duran são uma exceção, mas ele nasceu no Chile.)
É como se, do lado de fora das disciplinas criativas, não houvesse redenção. Em "Cidade de Deus", o menino escapa do ciclo de violência quando recebe uma máquina fotográfica e vira fotógrafo. Não parece ocorrer a ninguém -nem aos personagens, nem ao público- a possibilidade de ele virar biólogo, meteorologista ou mesmo técnico em ciência. "Cidade de Deus" é uma narrativa realista, e portanto tende a preferir o provável ao possível. Mas não é só isso. Nenhuma daquelas profissões soaria suficientemente cool ao público -seria um anticlímax. Em nome da eficácia narrativa, bem melhor ele virar artista. Eleição para a Academia Brasileira de Letras dá página de jornal.
Já no caso da Academia Brasileira de Ciências, saindo da comunidade
científica, é improvável achar alguém que tenha pelo menos noção de onde ela fica, que dirá saber o nome de algum acadêmico. Há pouco tempo, escrevi o perfil de um jovem matemático carioca, Artur Avila. Boa parte dos meus amigos -alguns deles muito bem informados- não sabia da existência do Impa [Instituto Nacional de Matemática Pura e Aplicada], sob vários aspectos a melhor instituição de ensino superior do país (o número de artigos publicados em revistas de circulação internacional de alto padrão científico, por exemplo, põe o Impa de par em par com alguns dos grandes centros americanos de
matemática, como Chicago e Princeton).
DESCOLADOS Uma das minhas obsessões é folhear a revista dominical do
jornal "O Globo" . Existe ali uma seção na qual eles abordam jovens descolados na saída da praia, de cinemas, lojas e livrarias, para conferir o que andam vestindo. No pé da imagem, informa-se o nome e a profissão da pessoa. Um número recente trazia um designer, uma produtora de moda, um estudante, uma dona de restaurante, um assistente de estilo, outra designer, uma jornalista, uma publicitária, um "dramaturg" (estava assim mesmo), uma estilista, outra estilista e alguém que exercia a misteriosa profissão de "coordenadora de estilo". Acompanho essas páginas há um bom tempo, e estatisticamente o resultado é assombroso. Conto nos dedos o número de engenheiros, médicos ou biólogos que vi passar por ali. Eles não podem ser tão
malvestidos assim. De duas, uma: ou são relativamente poucos, ou a revista prefere destacar as profissões que considera mais charmosas. As duas alternativas são muito ruins, mas a segunda me incomoda particularmente, pois sei por experiência como é poderosa a atração exercida por algumas profissões com alto cachê simbólico. Dou aula na PUC-Rio, no departamento de comunicação, que num passado recente oferecia apenas cursos de jornalismo e publicidade. Durante alguns anos, lecionei história do documentário para turmas de futuros jornalistas. Em 2005 foi criada a especialização em cinema -e, hoje, quase todos os meus trinta e poucos alunos são estudam cinema.
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