sábado, 6 de junho de 2020

Por um triz (parte 1)

Uma das coisas que ninguém gosta de admitir na vida e que teve sorte:

Chegou onde chegou? Trabalho árduo!
Ganhou muito dinheiro na bolsa? Descobriu como functiona (me ensina! rsrs) 
Fez uma pós? Porque estudou muito!

É difícil, em alguns casos, se ver que há sorte nos casos acima, principalmente no último. Acredito que poucos estão dispostos a olhar cuidadosamente pro que lhes ocorre ao redor, ou suas trajetorias, e pensar: será que foi acaso? E quando há ganho, "sera que tive sorte ao longo do caminho?" 

Ha uns dias um amigo durante uma conversa comentava  sobre a minha trajetoria: "você não teve sorte alguma, você ralou...bla bla bla". Aí o interrompi e discordei dele... disse que havia sim sorte na equação.  Na hora não me lembrava de exemplos específicos, mas sem dúvida: sabia que existiam. Me lembrei então de um caso muito curioso: ainda quando morava no Rio, tive um semestre horrível com um professor que, apesar de aclamado pesquisador, deu um curso péssimo, tanto em termos de didática quanto em termos técnicos. Em poucas palavras: todo mundo se ferrou no curso, e a maioria passou com sufoco. Eu fui um deles. Pra piorar, o professor era mentalmente afetado. Sériamente perturbado.2 De agora em diante o chamarei de professor X.

Isso dá um idéia do cenário. Oque aconteceu comigo foi o seguinte: uma bela manhã, após o curso ter terminado, eu passei onde estudava pra finalizar uma coisa  ou outra. Avistei meu  então orientador no saguão, que ao me ver dá um sorriso e me diz: "-te salvei!". Eu, meio sem entender, pergunto de que. 

"- Essa manhã, encontrei o professor X na sala da secretaria. Ele estava pra entregar o resultado das provas. Aí perguntei como você havia ido, e ele viu a prova e me disse que você havia sido reprovado. Aí, ao folhear a prova, ele notou... 'ahhh esqueci de somar a nota dele'... e viu que você havia passado.. então, te salvei, embora, na verdade, não te salvei, porque você passou sozinho." 

Lembrei desse caso com um certo frio na espinha, um certo pavor... Fiquei me perguntando: e se, diante de todo aquele abuso de poder,3 será que eu teria voz para reclamar daquilo, dos desmandos de um professor maluco? Que rumo teria eu tomado à partir dali? Um colega de turma acabou sendo expulso do instituto na mesma época, e se não me engano, um outro que não me era tão próximo foi reprovado no curso. 

É difícil não ver isso como sorte... a sorte de ter sido ouvido? Ou de não ter que tentar ser ouvido... não sei... Nesses tempos  em que olho de longe os EUA, vendo que as fagulhas de tanto ressentimento quanto à morte de George Floyd começaram numa cidade que tanto gosto... não há como não se dar conta de que ter voz é, sim, um luxo. E as estatísticas são horripilantes quando se pensa em ser negro no Brasil, ou nos EUA: inimaginável aceitar que voltar pra casa vivo pra alguns pode ser simplesmente uma questão de sorte... a exemplo do caso de um homem que observava pássaros no Central Park em NY: oque separa o destino de tantos do destino de George Floyd?

Sorte, azar, injustiça .... são conceitos tão próximos assim? 

Coloquei as coisas em termos de sorte, de azar...mas vejam que isso não acontece só lá: acontece em todo lugar. Lembro de, nos EUA, o caso de um colega de doutorado, mais senior que eu, cujo orientador, ao comentar sobre o seu trabalho de tese com um outro matemático, teve a idéia "roubada" por este último, que logo adiante escreveu e publicou um artigo sobre o tema. Não deu outra: meu colega ficou sem tese, e desistiu no sétimo ano de doutorado. 

Reclamar pra quem? 
Azar?

O orientador da minha ex teve um infarto durante o PhD dela. Não faço idéia de como terminou essa novela (pois rompemos antes). Mas lembro dela ter que empurrá-lo contra a parede e falar "vai orientar direito ou não?"... e não sei como continuou aquele drama. Desconfio que se aprofundou com o tempo, embora não saiba: se ter um orientador ativo já é difícil, que o diga um ausente. Sorte, azar?... Outro caso em que a rigidez acaba prejudicando o elo mais fraco dessa cadeia; no caso, o aluno.

Sei que existem outras formas de se observar e considerar azar numa vida, mas em todos os casos que citei acima eles tocam no ponto do azar entremeado a uma relação de trabalho. São casos que envolvem um lado com mais poder que o outro, onde o dar certo ou não de certa maneira se equilibra na corda bamba da sorte (ainda mais quando se está no começo de uma carreira)


1 Algo que só fui ter competência, e distanciamento emocional, pra perceber anos mais tarde. À época, pela quantidade que estava aprendendo, não soube atestar se era por mérito dele ou meu. Mais curioso ainda é ver como isso me faz ter sentimentos ambivalentes quanto ao lugar, que ainda tem tantas pessoas que gosto, como o tal ex orientador da estória.  

2 A ponto de talvez nenhum aluno ter alguma conversa decente com ele à época, ou se sentir à vontade para discutir uma questão de prova. Houveram casos de notas negativas em questões!!! Hoje em dia, depois de passar por tantos outros sistemas, eu vejo como isso era um triste caso de abuso de poder. Em outros países e sistemas, note-se, isso também acontece. 

3 Onde dificilmente um professor era questionado em suas decisões, ainda mais por um aluno ou funcionário, sem retaliação.  

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