terça-feira, 19 de novembro de 2019

Direto da Terra do Sol Nascente # 76: eles e nós

É interessante pensar que, quando escrevemos, adotamos um pronome.

Você notou? Você viu ali em cima "escrevemos". Nós, terceira pessoa do plural. Embora quem tenha escrito tenha sido um "eu", Rafaello, no alto do meu barquinho aqui de longe, remando e remando: "eu", um único ponto, escrivinhando pelos 4 mares como se fosse uma multitude de pontos, "nós", ou mesmo uma reta! 

Megalomaniaco? Não, não... linguagem mesmo.

Enquanto em literatura inventou-se a figura do narrador, em ciência temos uma situação meio estranha: o narrador ali está para narrar toda a aventura lógica do descobrimento: "numa certa manhã de segunda eu entrei no escritório, quando o segundo autor do paper me disse..." É... ciência "infelizmente" ainda não deu romance científico ou desandou em prosa com narradores e tudo de maneira não subjetiva.... aconteceu então de, em algum momento da História,  os cientistas matarem o narrador: abre-se qualquer artigo hoje em dia (veja o site da Nature, por exemplo, onde muitos artigos são open source) e dificilmente se lê uma estorinha fofa. Lê-se, em contraste, coisas como "as amostras foram preparadas com 5% de fosfatolipidiônicoproteico, 4% de manganêzionosfosforito..." ou "the singularity in the equation allows for the formation of a black-hole, an effect that had in fact been discovered by [1-5,23, 34]", etc. 

Não muito tempo atrás a coisa era outra. Veja o "Dialogue Concerning the Two Chief World Systems", de Galileu Galilei, por exemplo: dois caras1 conversam sobre opiniões distintas que têm sobre o universo, e um tenta convencer o outro com argumentos. Em resumo: um artigo científico que acontece numa mesa de bar, onde dois cientistas chegam a um ponto em comum sobre uma querela. A ciência ao alcance de todos! A ciência-novela, a ciência-poesia!

Hà também, e acho até que falei sobre anos atrás, a ciência sobre os olhos de filósofos: aí a coisa realmente muda de figura, e pode ser super abstrata (como Espinoza, que provava as coisas como teoremas, lemas etc), ou onde o filósofo chuta o pau da barraca e escreve borbulhas de loucura ininteligíveis2 , deixando o leitor dividido entre a esperança e a razão, onde o leitor busca passar as noites em claro, lendo, lendo, lendo, saciando sua curiosidade e loucura dentro daquelas páginas... Sim, o filósofo ludibria e enche o coração de leitor de amargura por não lhe oferecer explicação alguma, mas sim, ... aff... ouvi a música e me embananei todo 🙈 Em resumo: o filósofo proseia e dá voltas, tantas, tantas e mais tantas, que a cabeça do leitor dá um nó: tão forte que o mesmo acha que entendeu algo, quando na verdade ele já nem sabe mais oque é: um donuts, um quadro surrealista, ou mesmo um peixe que busca mergulhar num aquário límpido a fazer borbulhas ainda menos lógicas do que aquelas que leu!

Há, ainda, casos como o dos matemáticos que, em sendo um, somente um, ou poucos, a trabalhar fazendo doodles pelas lousas do mundo, escrevem tudo como se fossem todos: "nós provamos", " nosso resultado"... é um pouco como a estória do "all at one point", do Italo Calvino nas cosmicomics: os autores são aqueles ali na primeira página, gente que mal te conhece, mas que, de certa forma, fala de "nós" como se você estivesse ali, escrevendo o artigo com eles, escrevendo o paper lado a lado, ou segurando a tua mão para que você os acompanhe naquela trajetória racional pelo universo científico: tudo, vocês-eu-eles-nós, no mesmo ponto.


Enfim... ciência é um pouco isso. E há casos não raros de uns cientistas lerem o trabalho de outros e falarem
"
1:"we". this is inappropriate in scientific journal as i mentioned before.
2: Related to "we", you use "we would like to".
This totally makes sense, however, this is more like "chatting" or "blog" like term.
"
[isso veio de um email que recebi recentemente]

Ou seja: nem mesmo cientistas entendem um aos outros, e se tratam com condescendência. "Eu sou genérico, sempre uso minhas proposições pela manhã, após meu english-tea, e só uso 'nós' quando acompanhado por um adulto"...

É pessoal... a vida de cientista é dura...especialmente quando você tenta transgredir a barreira da intedisciplinaridade (tão preconizada nos dias de hoje!!) pra descobrir que no fundo, bem no fundo, ciência é uma lingua cheia de dialetos. :)


ps: vale à pena ler o interessante "The two cultures", do C.P. Snow, especificamente sobre a falta de diálogo entre humas e exatas, do qual eu ouvi falar depois de ler um interessante artigo do Tim Gowers, um matemático britânico ganhador da Fields medal anos atrás


1 Pelo que me lembre são dois... li um pouquinho desse livro há anos, mas não dei conta =P

2 Lembrei da maravilhosa  💙💙💙💙💙💙 


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