sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Penúltimo capítulo de uma história ( ou "Dias de Sísifo")

Numa das manhãs cinzas que passam insistentemente pelos meus dias, eu acordei decidido a terminar o livro da Clarice Lispector que estava na minha mesa há tempos. Abri o penúltimo capítulo do "a paixão segundo G.H." pensando só em riscar a tarefa " terminar Clarice" da minha lista de afazeres, mas sem saber oque me esperava ao certo.

Bom... o trecho abaixo é um pedaço do livro. Pra situá-los na história, G.H. é uma mulher que mora sozinha num apartamento e que decide dar uma geral no quarto da empregada que a deixara naquele mesmo dia.  Entrando lá ela encontra um universo que acho que só a Clarice poderia ver. O livro é muito doido e intenso, com um lirismo numas partes sem igual.


"Estar vivo é uma grossa indiferença irradiante. Estar vivo é inatingível pela mais fina sensibilidade. Estar vivo é inumano - a meditação mais profunda é aquela tão vazia que um sorriso se exala como de uma matéria. E ainda mais delicada serei, e como estado mais permanente. Estou falando da morte? Não sei. Sinto que "não humano" é uma grande realidade, e que isso não significa "desumano", pelo contrário: o não humano é o centro irradiante de um amor neutro em ondas hertizianas
Se minha vida se transformar ela mesma, oque hoje chamo sensibilidade não existirá - será chamado de indiferença. Mas ainda não posso apreender esse modo. É como se daqui a centenas de milhares de anos finalmente nós não formos mais oque sentimos e pensamos: teremos oque mais se assemelha a uma "atitude" do que a uma idéia. Seremos a matéria viva se manifestando diretamente, desconhecendo palavra, ultrapassando o pensar que é sempre grotesco.
E não caminharei de pensamento em pensamento, mas de atitude em atitude. Seremos inumanos, como a mais alta conquista do homem. Ser é ser além do humano. Ser homem não dá certo, ser homem tem sido um constrangimento.O desconhecido nos aguarda, mas sinto que este desconhecido é uma totalização e será a verdadeira humanização pela qual ansiamos. Estou falando da morte? Não, da vida. Não é um estado de felicidade, é um estado de contato.
[...]
Mas agora, através do meu mais difícil espanto - estou enfim caminhando em direção ao caminho inverso. Caminho em direção à destruição do que construi, caminho para a despersonalização.
Tenho avidez pelo mundo, tenho desejos fortes e definidos, hoje de noite irei dançar e comer, não usarei o vestido azul, mas o preto e branco. Mas ao mesmo tempo não preciso de nada. Não preciso sequer que uma árvore exista. Eu sei agora de um modo que prescinde  de tudo - e também de amor, de natureza, de objetos. Um modo que prescinde de mim. Embora, qto a meus desejos, a minhas paixões, a meu contato com uma árvore - eles continuem sendo para mim como uma boca comendo.
[...]
Aquilo de que se vive - e por não ter nome só a mudez pronuncia - é disso que me aproximo através da grande largueza de deixar de me ser. Não porque eu então encontre o nome e torne concreto o impalpável - mas porque designo o impalpável como impalpável, e então o sopro recrudece como na chama de uma vela.
[...]
A deseroização de mim mesma está minando subterraneamente o meu edifício, cumprindo-se à minha revelia como uma vocação ignorada. Até que me seja enfim revelado que a vida em mim não tem o meu nome.
[...]
A deseroização é o grande fracasso de uma vida. Nem todos chegam a fracassar porque é tão trabalhoso, é preciso antes subir penosamente até enfim atingir a altura de poder cair - só posso alcançar a despersonalidade da mudez se eu antes tiver construido toda uma voz. Minhas civilizações eram necessárias para que eu subisse a ponto de ter de onde descer. É exatamente pelo malogro da voz que se vai pela primeira vez ouvir a própria mudez e a dos outros e a das coisas, e aceitá-la como a possível linguagem. Só então minha natureza é aceita, aceita com o seu suplício espantado, onde a dor não é alguma coisa que nos acontece, mas o que somos. 

[...]
Por destino tenho que ir buscar e por destino volto com as mãos vazias. Mas - volto com o indizível. O indizível só me poderá ser dado através do fracasso de minha linguagem. Só quando falha a construção, é que obtenho o que ela não conseguiu.
E é inútil procurar encurtar caminho e querer começar, já sabendo que a voz diz pouco, já começando por ser despessoal. Pois existe a trajetória, e a trajetória não é apenas um modo de ir. A trajetória somos nós mesmos. Em matéria de viver, nunca se pode chegar antes. A via crucis não é um descaminho, é a passagem única, não se chega senão através dela e com ela. A insistência é o nosso esforço, a desistência é o prêmio. A este só se chega quando se experimentou o poder de construir, e, apesar do gosto de poder, prefere-se a desistência. A desistência tem que ser uma escolha. Desistir é a escolha mais sagrada de uma vida. Desistir é o verdadeiro instante humano. E só esta é a glória própria de minha condição. 
"
A paixão segundo G.H. - Clarice Lispector 


Os dois últimos trechos são ...fodas. Não há outra palavra pra descrevê-los. Lendo o trecho de novo eu me propus o seguinte: fazer um desenho logo após a leitura, com a primeira coisa que me viesse na cabeça. Deu no seguinte:


















Oque foi curioso, por que acabou me remetendo ao mito de Sísifo. Na hora, acho que não tinha me dado conta dessa possível ligação entre uma coisa e outra.


[Me perdoem pelos rabiscos no canto... eu fiz o desenho durante uma pausa nos estudos,]
[ no meio de uns rascunhos]

Não sei se entendi ao todo o que esse mito tem a ver com o que li. O mito não fala sobre o drama de se ter uma tarefa que não termina nunca ou que, no caso de um simples mortal como eu, parece nunca terminar. Talvez fale sobre o drama de se tentar construir algo quando se sabe que não há nada a ser construído; talvez o infinito não esteja somente na natureza repetitiva da tarefa, mas também no quão infinitamente sem sentido ela parece ser. É aí que entra o papel do homem... o "homem que não se banha duas vezes no mesmo rio": a tarefa parece a mesma aos nossos olhos, mas o homem não: este muda.

Me senti assim nesse período: rolando essa grande pedra montanha acima, sabendo que ela só tinha como destino vir morro à baixo....


...realmente, acho que ainda não consegui entender

=|

Um comentário:

Rafael disse...

Não sei.... a pedra é empurrada não por ser importante para quem a empurra. Talvez nós estejamos empurrando pedras tão grandes que nem sabemos de onde elas vão despencar mais adiante.

O fato de ter sido o "penúltimo capítulo da história" e não o último também me trouxe reflexões à respeito do título. Oque poderia vir assim que eu virasse a página?