sábado, 5 de junho de 2021

Repita comigo, pequeno gafanhoto...

Sabe uma coisa que me deixa meio impaciente? 

Sabe?

Gente repetitiva. 

Aquela tia que fica falando mil vezes que o presidente não presta (ok, é óbvio, concordo)... mas é mesma coisa que ficar repetindo "a Terra é redonda" infinitas vezes. 

Vai ver é coisa de família... como é a tua? Por exemplo: meu pai é uma pessoa que tem o dom supremo de ser super repetitivo. Toda vez que o vejo quando visito o Brasil lá vem uma enxurrada de perguntas estapafúridas: "-E aquele vizinho que morava no andar de cima... que tinha um cachorro e uma esposa?".Perguntando sobre um apartamento onde morávamos há 25 anos atrás. 

E como uma sequência de clássicos que um velho cantor deve cantar para agradar seu público, meu pai sempre traz consigo as perguntas clássicas: "-E o Júlio?"... (que faleceu há uns 10 anos, e há 10 anos eu falo pro meu pai que ele faleceu. 

Em vão. 

Tento me devencilhar do assunto, mas sou fisgado com um jeb no queixo que me joga às cordas: "-Te falei do dia que eu encontrei o Júlio ali na praça da República?

Olho pro teto.... me pergunto se há alguma toalha branca a ser jogada para me salvar daquela conversa.

Aí me bate aquela angústia de me ver nessas conversas rasas de boteco, vendo e ouvindo aquelas mesmas perguntas sempre ali, sentadas na mesa com a gente. "-Minha vez!", uma delas diz, e se joga na mesa, querendo ser perguntada... "-E a filha da Maria... como é que ela se chamava mesmo?"

Fico pensando nisso e me exaspero um pouco... onde está a poesia disso tudo? Será que existe uma pitada de absurdo nisso, um quê de Ionesco ou de Becket na minha vida/família? (Seriamos nós rinocerontes?!) 

No meio de tantas reflexões sobre o tema (uma das quais postei aqui) vim a perceber há um tempo qeu eu, também, sou um repetitivo inveterado. Daqueles sem conserto: frequento os mesmos restaurantes, conto as mesmas piadas (minha mãe é mestra nisso), uso as mesmas expressões, vou sempre nos mesmos cafés... carrego comigo uma inércia que muitas vezes me aparece anormal. Me pergunto se outros seres humanos... digo, seres mais humanos que eu sofrem isso também. 

Será?

Muitas vezes me questiono.. me pergunto se essa limitação na verdade é uma intransponibilidade de qualquer caminho. Uma pedra no meio da trilha pro cume de qualquer montanha que não pode ser removida. Me lembro com cautela do "Zen in the art of archery", quando o autor fala de quando seu mentor se dá conta de que ele estava tentando "enganá-lo", usando uma técnica de tiro (a maneira de pegar a arma) pra poder atirar flechas e, finalmente, melhorar sua pontaria: o professor pegou o arco, caminhou até um canto.. pensou... e disse pra ele ir embora. A repetição era oque ele poderia oferecer, e que se o objetivo dele era só "conseguir algo", um "diploma", que este já lhe estava dado. Nem preciso dizer: o autor se desculpou, voltando pro esquema japonês de repetir, repetir, tentar, até assimilar.

Talvez, no fundo, seja uma limitação da qual muitos sofrem mas poucos se dão conta. Ou poucos se dão conta de como as repetições são tão cruciais na construção de muita coisa. Uma aliteração, um efeito que reverbera quando usado em demasia, um fenômeno que se amplifica como um olho de furacão, a adoção de um outro ponto de vista depois de uma segunda, terceira, ou mais leituras. Vai ver repetir é um pouco oque Fernando Pessoa dizia: é entrar no mesmo rio, sem que este rio seja o mesmo.

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