domingo, 3 de janeiro de 2021

Mapeamentos 1 pra 1: a língua que não se aprende na escola

É curioso aprender uma primeira língua: a gente se perde em aprender a tradução de cada palavra,  e pena a entender que quando concatenadas as palavras mudam de tradução, ou ganham aproximações diferentes na nossa língua mátrea... o tipo de não-linearidades que nossa ignorância desconhece e tenta, em vão linearizar.

Sempre achei que fosse uma criança com muitas dificuldades de comunicação, mas o tempo me faz ver que eu era uma criança com tantas dificuldades quanto as outras. Talvez seja essa "onda revisionista" que tem me visitado (crise de meia idade!?) em que sinto mais e mais compaição pela criança que fui. Há alguns anos, quando ainda morava no Brasil, à caminho do Rio de ônibus, ouvi uma criança cantando Michael Jackson super empolgada... só que não era inglês oque ela falava: ela cantava o som das palavras como os ouvia, uma língua extraterrena que não precisava de sentido pois era apenas música. Fui imediatamente teleportado pras minhas tardes ouvindo o mesmo M.J., empolgado com as coreografias, tentando replicá-las. 

Havia tentado algumas vezes entender e traduzir as letras, mas o significado delas, se houvesse algum, não importava.

Curioso que esse mar de incompreensão existiu por um bom tempo ao meu redor: seguia boiando com um velho dicionário Aurélio que havia sido do meu primo, me agarrando no que podia, me perguntando se deveria ignorar aqueles termos em negrito subst. ou verb. eram parte do conteúdo que buscava, ou não. Em todo caso, a melhor saída sempre era gritar da sala pra que minha mãe me acudisse: 
"-mãe, oque significa esdrúxulo??!!!"

Dúvidas que nem sempre eram contempladas com a devida paciência pela minha mãe, que respondia (quando respondia) na maioria das vezes me explicando algo que não entendia, ou referindo pro velho Aurélio caindo aos pedaços, que atravessava mais uma geração dentro da família.

Essa dificuldade dos adultos em saber se comunicar com crianças, ou melhor, comigo, ficou sempre na minha cabeça; algo que sempre me preocupei enquanto lecionava: será que estou conseguindo passar algum conteúdo pr'aqueles que não entendem do assunto?, me perguntava. 

Talvez esse "traumawareness" venha de um engraçado acontecimento da minha infância: um belo dia minha tia chegou em casa com um papelzinho escrito à mão, bem pequeno, com uns números mal escritos, dizendo que uma amiga havia lhe passado o número do programa de TV do Sérgio Malandro, que era naqueles dias o rei da televisão infantil. Na hora me imaginei ligando pra casa do apresentador, indo pro programa dele, meio ansioso em ter que encarar aquelas gincanas até então triviais quando vistas do chão da sala, mas que imediatamente haviam ganhado uma complexidade inesperada diante daquele papelzinho na minha mão. Em todo caso, munido de coragem, ambição por todos aqueles prêmios e fama a escola toda, liguei pro número. Ou melhor, disquei o número (pois eram aqueles telefones de discar ainda): uma mulher atendeu, me dizendo que eu deveria ligar pra um outro número, que pediu para eu anotar. Com calma, ela me dizia os dígitos um a um: 
"-dois..... quatro... meia..."
Nessa hora eu larguei o telefone e fui correndo pra sala, gritando em desespero pra minha tia e mãe "-oque que você faz quando aparece meia no telefone de alguém?", algo que me parecia inconcebível naqueles poucos anos de vida. Não tem cabimento, uma meia? Sério?

"-Meia é seis!!", disse alguma delas impaciente. 

Mas aí já era tarde: voltei pro quarto correndo pra encontrar o telefone mudo, já que mais um adulto impaciente não esperou que eu compreendesse o significados daqueles hieroglífos linguísticos. Tentei mais algumas vezes ligar pro mesmo  número e, sem sucesso, me resignei com a situação: ao menos poderia esbanjar conhecimento na escola no dia seguinte perguntando se alguém sabia se "meia" também era "seis" pra algumas pessoas.

Mas porque exatamente comecei esse texto? Não me lembro.... talvez tenha sido algum percalço de comunicação recente pelo qual passei, ou apenas meu interesse diante dessas intransponíveis pontes que a tradução tenta construir entre diversos universos linguísticos distintos, ou universos de compreensão distintos...

 

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