sexta-feira, 10 de julho de 2020

2020/2021

Hoje passou pela minha cabeça oque seria se, naquele instante de virada de ano, sorrateiramente, alguém esquecesse de colocar o 1 e deixasse o zero. 

Se 2021 virasse 2020, e tivéssemos a chance de reviver este ano para consertá-lo, somente aprendermos com ele.
Sem ter que dar tchau pra tanta gente.
Sem ter que ficar preso dentro de casa. 
Sem ter que viver com medo. 
Sem ter que sonhar que perdeu alguém.

Seria só ninguém dizer nada, aquiescendo diante de um detalhezinho de nada. Um tropeço, um deslize, de um ano que vagarosamente passa, mas que parece querer correr na frente e nos deixar pra trás.

Mas não, não adiantaria. 

Acho que no fundo saberíamos que não há como mudar a situação. Me lembra um pouco de uma cena num livro do Saramago, quando um motorista de caminhão, ao fazer a entrega de umas encomendas, pega uma senha de número 13 e fica desconfortável com o número:

Cipriano Algor pôs a furgoneta em andamento. Distraíra-se com a demolição dos prédios e agora queria recuperar o tempo perdido, palavras estas insensatas entre as que mais o forem, expressão absurda com a qual supomos enganar a dura realidade de que nenhum tempo perdido é recuperável, como se acreditássemos, ao contrário desta verdade, que o tempo que críamos para sempre perdido teria, afinal, resolvido ficar parado lá atrás, esperando, com a paciência de quem dispõe do tempo todo, que déssemos pela falta dele. Estimulado pela urgência nascida dos pensamentos sobre quem chegou primeiro e sobre quem depois chegará, o oleiro deu rapidamente a volta ao quarteirão e meteu a direito pela rua que limitava a outra fachada do edifício. Como era invariável costume, já havia gente à espera de que se abrissem as portas destinadas ao público. Passou para a faixa esquerda de circulação, para o desvio de acesso à rampa que descia ao pavimento subterrâneo, mostrou ao guarda o seu cartão de fornecedor e foi tomar lugar na fila de veículos, atrás de uma camioneta carregada de caixas que, a julgar pelos rótulos das embalagens, continham peças de vidro. Saiu da furgoneta para ver quantos outros fornecedores tinha à sua frente e assim calcular, com maior ou menor aproximação, o tempo que teria de esperar. Estava em número treze. Contou novamente, não havia dúvidas. Embora não fosse pessoa supersticiosa, não ignorava a má reputação deste numeral, em qualquer conversa sobre o acaso, a fatalidade e o destino sempre alguém toma a palavra para relatar casos vividos da influência negativa, e às vezes funesta, do treze. Tentou recordar se em alguma outra ocasião lhe calhara este lugar na fila, mas, de duas uma, ou nunca tal acontecera, ou simplesmente não se lembrava. Ralhou consigo mesmo, que era um despropósito, um disparate preocupar-se com algo que não tem existência na realidade, sim, era certo, nunca tinha pensado nisso antes, de facto os números não existem na realidade, às coisas é indiferente o número que lhes dermos, tanto faz dizermos delas que são o treze como o quarenta e quatro, o mínimo que se pode concluir é que não tomam conhecimento do lugar em que calhou ficarem. As pessoas não são coisas, as pessoas querem estar sempre nos primeiros lugares, pensou o oleiro, E não só querem estar neles, como querem que se diga e que os demais o notem, murmurou. Com excepção dos dois guardas que fiscalizavam, um em cada extremo, a entrada e a saída, o subterrâneo estava deserto. Era sempre assim, os condutores largavam o veículo na fila à medida que iam chegando e subiam para a rua, para o café. Estão muito enganados se julgam que vou ficar aqui, disse Cipriano Algor em voz alta. Fez recuar a furgoneta como se afinal de contas não tivesse nada para descarregar e saiu do alinhamento, Assim já não serei o décimo terceiro, pensou. Passados poucos momentos um camião desceu a rampa e foi parar no sítio que a furgoneta tinha deixado livre. O condutor desceu da cabina, olhou o relógio, Ainda tenho tempo, deve ter pensado. Quando desapareceu no alto da rampa, o oleiro manobrou rapidamente e foi colocar-se atrás do camião, Agora sou o catorze, disse, satisfeito com a sua astúcia. Recostou-se no assento, suspirou, por cima da sua cabeça ouvia o zumbido do tráfego na rua, em geral também subia como os outros para beber um café e comprar o jornal, mas hoje não lhe apetecia. Fechou os olhos como se recuasse para o interior de si mesmo e entrou logo no sonho, era o genro que lhe estava a explicar que quando fosse nomeado guarda residente a situação mudaria como da oite para o dia, que a Marta e ele deixariam de morar na olaria, já era tempo de começarem uma vida independente da família, Seja compreensivo, o que tem de ser, diz o ditado, tem muita força, o mundo não pára, se as pessoas de quem dependes te promovem, o que tens a fazer é levantar as mãos ao céu e agradecer, seria uma estupidez virar as costas à sorte quando ela se põe do nosso lado, além disso estou certo de que o seu maior desejo é que a Marta seja feliz, portanto deverá estar contente. Cipriano Algor ouvia o genro e sorria para dentro, Dizes tudo isso porque julgas que sou o treze, não sabes que passei a ser o catorze. Acordou em sobressalto com o bater das portas dos carros, sinal de que a descarga ia começar. Então, ainda não completamente regressado do sonho, pensou, Não mudei de número, sou o treze que está no lugar do catorze. 
[trecho de A caverna, de José Saramago] 

É...pessoal: vamos ter que aceitar 2020 da maneira que este é e está sendo. 

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