domingo, 25 de maio de 2014

Formiguice abstracionista

Sim... vcs já imaginaram o meu usual post pós visita ao Brasil... mas não vou falar muito... melhor não falar muito sobre isso agora. Vou falar, isso sim, sobre um pedaço da viagem que achei muito bonito, que foi sobrevoar o deserto (conexão L.A. para o midwest): realmente, fiquei impressionado. Lá de cima, tantas linhas (rios? falhas geológicas?), desenhos, cores de terra e montanhas, curvas, traços, riscos que mais pareciam um quadro de arte moderna... me senti uma formiga caminhando por um imenso quadro de arte abstrata... me senti uma formiga caminhando sobre o Pollock que enfeita meu quarto.

Tantos pensamentos... lembrei de um trecho do paper/tese que escrevi, onde queria fazer uma analogia entre periodicidade temporal e periodicidade espacial 

"uma formiga que anda sobre a pele de uma zebra vê-se num mundo que muda de cor de tempos em tempos"

Por um segundo aquela formiga era eu... por um minuto me senti pequeno diante de tanta beleza e pequeno diante de tantas coisas que me afligem agora. Será que no meu caso sou um caramujo andando sobre os traços desformes da minha própria vida, percorrendo as linhas inexatas de uma vida que até então parece sem muito rumo.... um quadro onde duas retas paralelas se emaranham, se perdem em si mesmas e, no fim, acabariam sendo uma mesma coisa? O uno, a união de todas as cores.... no fundo talvez tudo não passe de um quadro pintado de branco.

Não sei se a formiguice da vida me veio por associação com um trecho -incrível e hilário-que havia acado de ler em um livro... enfim, acabo o post de hoje com ele (que por sinal, é muito bom)


"
Quando Júnior passa em frente a uma loja, que está fechada como todas as outras, o alarme dispara. Desconcertante. Antinatural. Um ruído ininterrupto. Monótono. Provavelmente alguém tentou roubá-la. Ou o alarme disparou por causa da súbita mudança climática. De qualquer forma Júnior apressa o passo. Não quer ser o suspeito.
O botequim que serve o pior café da cidade está aberto. Júnior pede um conhaque. Há outro náufrago a dois assentos, bebendo cachaça. Há tanta amargura no rosto dele que Júnior procura puxar papo.
-Dia estranho, não é mesmo?
-Como?
- Dia estranho.
-Todo dia é estranho.
-Não. Hoje... essa névoa... essas ruas desertas...
- Pra mim, todo dia é estranho. Eles nunca me convencem
- Quem não te convence?
- Os dias.... são falsos... estranhos... isso não pode ser a realidade... não é possível  que seja... isso é.... sei lá que porrra é isso tudo.
- Talvez....
-Sabe? Eu descobri como funciona esse esquema.
- Ah, é?
- Você já viu aquele planetinha daquele livro do Pequeno Príncipe?
-Sei, acho que me lembro
O outro faz um gesto com as mãos formando uma esfera no ar.
- É um planetinha, pequeno... Tem uma flor e acho que uma casinha.... É assim.
Diz isso projetando a pequena esfera na direção de Júnior.
-Sei, sei...
- É isso, porra! É isso...
- Entendo.
-Entende, nada. Entende?!
O outro faz um gesto de desprezo, que desmancha a esfera.
- Eles botaram a gente aqui.
- Claro...
- Deus botou a gente nesse planetinha do caralho. Do caralho do pequeno Príncipe. Aí ele falou: Meu amigo, tudo isso é seu. Tem ali uma plantinha de merda que dá um fruto gostoso. Ali tem uma vaquinha de bosta que dá leite. E tem trigo pra fazer pão. Até aí tudo bem, não é?
-É tudo oque precisamos...
- É. Mas aí ele mostra um buraco na terra. Um buraco feito uma cova.
-Certo...
Então ele diz: Tudo isso é seu. E ainda vou te mandar uma mulher e umas crianças... Isso eu achoque é só pra encher o nosso saco e distrair dessa merda toda. Assim não sacamos o esquema, tá ligado?
- E qual é o esquema?
-Posso continuar?
-Claro.
Então faz o favor de não ficar me interrompendo. Bom! Aí Deus explica o esquema. Ele diz: Meu filho, tudo isso é seu. A única coisa que você precisa fazer é tapar aquele buraco. A tal cova que eu te falei.
-Sei.
-Pois então. Cada vez que esse homenzinho tapa a porra do buraco, acaba fazendo outro do mesmo tamanho. Percebe?
-Entendo.
-Então. É isso. É isso sem fim. Tapa um buraco, faz outro igual. Tapa um , faz outro. Até o dia em que o infeliz morre. Só assim você pode tapar o buraco sem fazer outro igual. O buraco é sob medida.
-Legal.
-Porra! Legal, o caralho!
-A história, qus dizer.
-Ou seja, é pau no teu cu. Percebe? É isso. Pra Deus nós somos apenas os que podem tapar o buraco que ele não conseguiu tapar. Entende? É como na obra. Se falta areia, cê não faz parede. Não adianta tijolo, nem cimento. Eu acho que Deus errou nos cálculos. Aí, como já estava de saco cheio, inventou a gente. Tipo umas formigas. Uns formigões. Sacou?
-Tem até aquela música que diz mais ou menos isso. Como é mesmo? Ah! - Júnior cantarola: - Essa é a terra que queria ver dividida, é a terra que te cabe nesse latifúndio....
-Não tem nada a ver. Isso é política. Política! E nós estamos falando de religião. Religião!
-Está certo...
-Percebe?
Claro.
-Uns formigão do cacete!
Júnior termina a bebida. O filósofo não pára mais de falar.
-Bom, meu amigo, eu vou nessa.
-Vai, formigão, vai que vai! "


A arte de produzir efeito sem causa - Lourenço Mutarelli

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