quinta-feira, 24 de dezembro de 2020

Direto da Terra do Sol Nascente #101: jogado como uma rosa, no colo de uma morena

 

Caetano Veloso, Coqueiro de Itapuã


O ano termina cansado, com bateria a ser recarregada. Hoje ouvi essa música e me bateu uma saudades de algo que nunca ou quase nunca me dá saudades: praia, areia. Deu quase pra sentir o vento sibilando nas folhas dos coqueiros, os vendedores de biscoito globo aterrisando em qualquer praia do mundo, a água quente do nordeste brasileiro, a água transparente do mar do Chipre, os albatrozes pescando no mar na Carolina do Norte, a beleza dos calanques franceses, a surpresa em se estar num paraíso tão longe e tão perto de um grande centro como São Paulo, a água de côco refrescando uma sede universal que todo e qualquer homem sente, o sossego de se permitir descansar em férias, prostrado diante do cansaço que todo homem sente (ou deveria se permitir sentir).

... férias... break... pause... tudo oque preciso agora.  Vontade de sentir pelo corpo aquela sensação gostosa de entrar na casa da minha mãe e, mesmo sem estar ali por meses - às vezes mais de ano, me sentir em casa, certo de que aquele chão no qual me esparramo em descanso é meu também. Ser acolhido, receber beijo, me perder em abraços, me sentir como uma rosa jogada no colo de uma morena em itapuã.


2021, me aguarde que vou cobrar tudo isso de você.

quarta-feira, 16 de dezembro de 2020

Direto da Terra do Sol Nascente #100: com açúcar, com afeto... e pode ser com a mão bem leve?

É... eu bem achava que o post #100 da sessão vida nipônica fosse ser nobre como um samurai, leve como uma gueisha, embebido em zen budismo. Nobre, nobre até a último ponto final. 

Mas não... a vida é cheia de supresas. E tá bom,  você há de ler esse post e pensar "isso não é mais um blog, é um muro de lamentações!" 

Calma, leitor afoito... calma... isso ainda é um blog... só que a vida anda com tantos percalços que tá difícil não relatá-los aqui. Falar sobre oque: sobre o tempo? Pois veja: tempo também está uma merda. Hoje, por exemplo, voltando pra casa, levei um belo capote de bicicleta, e saí com os glúteos contundidos. 

Isso... caí de bunda mesmo. Por sorte não vinha carro na sequência, pois se tivesse... [melhor nem pensar]

Foi uma noite difícil. Depois do acidente voltei pra casa pianinho, andando devagar como um monge pra ver mais outros dois acidentes. "Devagar, pequeno gafanhoto", pensava eu, tendo acabado de beber do cálice da sabedoria que é a dor. 

No caminho do ciclista, há black ice em cada esquina pra alguém se estabefar. Quem que escreveu isso mesmo... Chico? Só sei que caiu como uma luva...bom, caiu pior que isso, como um piano em queda livre jogado do Empire States. Pra aliviar teria que parar nas casas de massagem ali da zona noturna da cidade... quem sabe aquelas senhoritas de mãos destras não aliviariam minha dor? "É na bunda, moça... mas pega leve, viu... tá doendo ainda". E olha que até sei falar bunda em japonês... mas pega leve vai com jeitinho... aí me complica... abri mão do "sonho" de massagem nas nádegas e voltei pra casa mesmo, pedalando como uma tartaruga (um caminho que leva em geral 20 min me levou 1 hora.. pra você ver o quão imediantemente sábio este que vos escreve se tornou. 

A dor engrandece o homem. E haja emplastro pra ajudar nessa tarefa!

Vou lá, queridos leitores, pro meu mest (messy + nest), dormir quentinho, de bundinha pra cima :P 

domingo, 6 de dezembro de 2020

Quadradinhos inertes em uma vida circular

Há pouco voltava pra casa mergulhado em pensamentos bobocas, refletindo nessa coincidências da vida, as que acontecem, e mesmo nas que não existem mas que insistimos em ver (e apurrinhar os outros falando sobre): em alguns dias me torno um indivíduo de 36 anos.

36 aninhos == 6 ao quadrado.

Lembro-me dos meus 25, pensando comigo mesmo que tinha um quarto de século, enquanto caminhava pelas ruas de Botafogo a caminho de um futuro incerto que parecia se acertar aos poucos, se alinhar nas curvas e meandros das oportunidades que apareciam adiante.

Aos 16, no colégio, temendo o vestibular, o futuro, ganhando confiança aos poucos de que não havia como as coisas piorarem, me equilibrando entre breves vislumbres de um futuro em que faria algo que gostaria e a realidade árida que me cercava: em qualquer corrida nós haviamos largado todos atrasados.

Aos 9, 4, 1... esses aniversários mal me lembro, mas certeza que não foram dos melhores... fico só pensando em como é agora, essas coincidências bestas. Tenho a certeza de que aos 25, 16, etc achava que aos 36 eu estaria como um quadrado, estático no mundo, firme como uma árvore com raízes afundadas no chão, inerte e pouco mutável, vivendo e crescendo no mesmo lugar, talvez do lado de um retângulo, cercado de quadradinhos. Aconteceu da vida pedir de mim viver mais como um círculo que se move a qualquer vento que bate, que em vista de qualquer ladeira não sabe fazer outra coisa senão se guiar pela gravidade. 

Um ouroboros, de um tratado de alquimia do século XV

Um círculo, como um ouroboros que eternamente se consome, perpetuando um ciclo interminável de (re)nascimento e morte.Um círculo, que almeja ser um quadrado. 

Será que se eu fosse um quadrado um dia estarei por aqui, a reclamar da quadradice dos meus dias, a sonhar em ser um círculo de novo? 


Curioso pensar nessas analogias. Há dias li na minha agenda, 

"só vive em possibilidades aquele que sabe que o futuro não é algo certo".

Na hora não lembrava de ter escrito aquilo. Chequei a letra com cuidado pra ver se a caligrafia era minha mesmo (sem sombra de dúvidas, a "quase indecifrabilidade" do texto não me deixou dúvidas). Ainda assim olhei pros lados, debaixo da mesa, pra saber se não havia algum doende rindo de como consigo ficar confuso comigo mesmo, diantes de súbitos momentos de lucidez, como ilhas de serenidade num mar de vagas incertezas.

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

Direto da Terra do Sol Nascente #99: very small, nano, talks

Vai... pensa em conversa fiada....
Que frio hoje. 
Que dia bonito.
Tempo bom essa manhãm não?
E o mengão este fim de semana?
Será que chove hoje?

Agora pensa nisso sendo uma parte considerável (95%) da tua comunicação diária?

Isso é oque viver no Japão tem sido isso pra mim: conversas ralas, destituídas de significado. Talvez seja a parte de ser estrangeiro nessa terra que mais me faz me sentir isolado: em interesses, em idéias. 

Os motivos são vários, e a barreira da língua certamente é um deles. Mesmo quando não existe uma barreira de comunicação, a conversa é por aí mesmo: "quantos cafés você toma por dia?", "que manhã bonita", "otsukare-sama" (que não tem tradução, mas é como um "você está fazendo um bom trabalho"... algo assim). 

Posso soar injusto, mas  de acordo com muita gente que mora aqui, e que fala a lingua fluentemente, o japonês não fala sobre política, sobre assunto difícil, sobre o mundo, sobre nada muito delicado. Da única vez que ousei enviar um email falando sobre desigualdade de gênero no Japão eu fui simplesmente ignorado: meu email caiu num buraco negro e nunca nem foi comentado. Numa outra ocasião, diante de um email entusiasmado anunciando a visita de um representante de uma empresa que vendia máquinas de café em cápsula, fui o primeiro a enviar um email pra todos dizendo que tais máquina geravam um lixo absurdo e que estavam sendo proibidas em diversos países europeus (nota: falei e enviei um link pra uma matérias de jornal). 

Resultado: no dia seguinte compraram TRÊS MÁQUINAS DE CAFÉ! Ninguém nem se quer deu ao trabalho de conversar quando puxei assunto sobre (antes da compra).

Mesmo se comparado à distância que sinto do resto do mundo, estar cercado por pessoas que tem um grau de preocupação com seu arredor tão baixo, tamanhenorme-desmesuradapatia (mesmo com relação aos rumos do próprio país deles!)... é o que mais me entristece. Vivo de tentar transpor uma barreira intransponível que linguagem nenhuma ou anos de estudo da lingua não me dariam, pois é a natureza da sociedade deles: um trabalho hercúleo que não faria sentido. "Rafaello, o homem que tentou transponir o intransponível": essa frase, gramaticalmente errada, é lindamente poética é a pedra fundamental do que sinto por dentro desde que pisei neste país, e que pouca gente que não mora aqui - se é que alguém - conseguiu entender quando falo do que é estar nessas terras.

Às vezes penso se é amargura minha... se toda forma de comunicação, seja lá qual for, terá um certo resíduo de small talk necessário. Bandeira branca! Ok! Tolero! Aceito! Mas acho absurdo ter que viver somente - (só!) - disso. Me dêem palavras, idéias, erros, o contraste, o contrário,  algo que me indique como vêem o mundo!

Odeiem-me, ou discordem de mim! Só não me ignorem dizendo que o dia está lindo e o tempo está bom!!

[Hoje tô chutando pedras... melhor ir dormir.]


sábado, 21 de novembro de 2020

Dinossauros míopes, paranóicos, e de pochete: as mentiras que contamos a nos mesmos

Há um tempo que eu penso nisso: será que minto a mim mesmo? Por exemplo: vivo dizendo a mim mesmo que consigo conversar bem com pessoas em geral. É verdade? Será que me mostro interessado nelas? Será que é recíproco? Será que ouço tanto quanto acho que ouço, que estou aberto e disposto a aprender com elas o tanto que acho que estou?

Essa é uma das coisas que notei recentemente: essa dúvida, esse embate entre oque "vejo" e "o mundo como ele realmente é" vive em mim como uma constante. Algo que tanto me puxa pra frente, ao criar mecanismos anti-auto-sabotagem (que todos temos), mas me puxa pra trás ao minar minha auto-confiança de que sim-é-isso-e-ponto-final. Como um yin-yang cujo significado é sempre dúbio e multifacetado, sigo interpretando o mundo por essa lente bifocal, que não sabe se oque vê é oque realmente ali está.

Fico sempre me perguntando: será que há algo que todos vêem e não vejo? Há algo que acontece comigo e não sei? Coisas que não falam diretamente pra mim? É uma sensação estranha e desconfortável esta... me sinto como um homem que anda com uma pochete: todos olham e acham graça, enquanto ele SIMPLESMENTE SE ACHA COOL por ter todas as ferramente que precisa à mão. No entanto, não há universo social no qual esses indivíduos ainda caibam, nem mesmo uma pessoa generosa que a usa sua pochete pra carregar coisas que ajudam  os outros: você se acha cool e acessível, enquanto os outros ao redor te acham um dinossauro da década de 80.

Meu grande medo: ser esse dinossauro.

E a questão nem é bem física, com pochetes e tudo o mais; a questão é mais delicada: traços de personalidade indetectáveis, sinais de que você está meio off, evidências que estão debaixo do seu nariz mas que - por estarem tão perto - se mostram um tanto longe da nossa compreensão. 

Esse receio de que algo se passa ao nosso redor de forma ignorada é um tanto irracional: me aflijo em imaginar que existe lá fora uma forma diferente de se ver alguma coisa e que eu, por pura e simples ignorância, desconheço. Um grande sinal das minhas limitações, das quais muitas vezes acho graça, mas que noutras são um peso enorme nesse barco que eu remo pelo mundo. Um dinossauro míope, de pochete. E paranóico? Eu? Euzinho?

É estranho esse friozinho na barriga diante da sensação de se estar perdendo alguma coisa, de algo estar nas suas mãos mas escoar entre os dedos. Recentemente tenho tentado entender melhor as origens disso: escavo, escavo dentro de mim, e às vezes acabo em becos sem saída, ou rindo de pensamentos que vão e voltam na minha cabeça. Por exemplo, me aflijo em imaginar que cometo um erro idiota num projeto. Me dá aflição também sentir cheiro de queimado quando ando pela rua: me remete a questões idiotas como "pouts...será que deixei o forno ou o gás ligado? Quando vejo um caminhão de bombeiros então, vem à cabeça uma grande novela russa, onde por uma ironia do destino o tal caminhão segue diretamente pra minha casa queimardendo em chamas enquanto eu sigo o meu dia. Há coisas menos dramáticas também, como "será que não estou perdendo tempo tentando entender esse livro hermético quando na verdade existe um outro que é muito mais claro?" Como uma moeda, meus mecanismos anti-auto-sabotagem escondem a auto-sabotagem na sua outra face.

klashfçdsfk;nqweçryu íad tento provar pra mim mesmo que não sou um dinossauro batendo os dedos aleatóriamente sobre o teclado. Seria eu um caso único de infinite monkey theorem1, e que até aqui fui entendido pelos meus por pura e simples infinitesimal sorte? Um monstro pro qual nunca viraram e falaram: "Rafaello, me desculpa, mas você nunca notou que você é o único dinossauro nessa sala?"... aí eu sairia correndo, derrubando cadeiras com minha cauda de estegossauro, pra chorar lágrimas de crocodilo escondido no banheiro, grunhindo.

Não sei... vai ver no fundo sou um cachorro vira-lata mesmo.


1 Infinite monkey theorem  é uma ilustração de um resultado em probabilidade (Teoremas de Borel-Cantelli) que dizem que se um macaco se sentar por um tempo infinito na frente de um computador e nele digitasse então existe probabilidade 1 (ou seja, 100% certo) que  o conjunto completo de obras de Shakespeare estaria contido no resultado. Há alguns anos atrás na Inglaterra fizeram um experimento real com alguns macacos, por alguns dias; as tais "obras complestas" estão neste curto pdf e estão longe de se parecer com Shakespeare. Segundo ouvi de uma outra fonte, os macacos não só destruíram o computador no decorrer do experimento, mas ainda fizeram cocô nele todo.... inusitados atos poéticos que nem Shakespeare seria capaz de elaborar.  

sábado, 7 de novembro de 2020

Direto da Terra do Sol Nascente #98: dar as costas, caminhar (ou "marcenaria dos horrores")

Curioso o post anterior ser sobre labirintos, que parece um assunto tão "top trending" na minha vida recentemente... Bem,talvez não; talvez seja tudo uma combinação de coisas que me vêm à cabeça, e se encadeiam num emaranhado de coisas que parecem ser sentido, mas que têm forma, sentido e porque.

Diantes das minhas brincadeiras matemáticas com labirintos, processos randômicos no plano, e outras coisas, resolvi ter um hankô (判子), um selo desses antigos que japoneses e outros asiáticos usam. (Mesmo nos dias de hoje!)

Fiquei imaginando se me pegaria embasbacado diante da beleza de um labirinto que fosse meu, ou se depois de um efêmero furor animado cairia enfadado nos corredores do mesmo, como o Minotauro do conto de Borges.

Sabe-se lá por que, tive a idéia de tentar esculpí-lo eu mesmo. Como se fossem paredes que eu tivesse que erguer. Um dos grandes poréns dessa jornada foi arrumar madeira: nem faço idéia de onde existe marcenaria por perto! Numa deliberação rápida comigo mesmo, resolvi caminhar pelo parque perto de casa e tentar encontrar algum toco de madeira que ali encontrasse. Tudo oque vi, e que foi pouco, era ou muito grande ou muito velho. Como serrar algo se só possuo um canivete suiço?


Me veio uma outra idéia mais desesperada: sacrificar uma bonequinha kokeshi (há foto de uma, chamada "Kinoko", no post Direto da Terra do Sol Nascente # 72: the great wave (aftermath)). 


Não, calma!! Kinoko-san está bem, segura, salva, e com uma irmãzinha (Shimeji-san). "Sacrifiquei" uma outra que planejava levar pro Brasil pra dar de presente a amigos. Mas não me foi fácil: olhei pra ela e me senti cometendo um crime, pro qual buscava escusas dentro de mim, para poder dizer a ela.... Pensei se algo justificava tanta "brutalidade". Tentei me convencer de que era feia, de que era velha, de que estava suja... mas só olhava aquela menina de madeira que sobreviveu a tantos terremotos, sabe-se lá quantas casas, pra ser abandonada numa loja de antiguidades e ser encontrada por um brasileiro que pusesse fim aos seus dias "por um motivo torpe". 

Por uns minutos meu coração afundou diante do significado daquilo.1 Pensei na estória de Perseu, que depois de matar o minotauro e conseguir sair do labirinto seguindo o fio que Ariadne lhe dera, leva Ariadne consigo para longe da ilha de Creta a pedido dessa;  Ariadne queria sair dali "para que sua beleza fosse adorada por todos". Na primeira parada do navio, Ariadne tira uma soneca debaixo de uma árvore (provavelmente comeu muito, comida pesada, num botequim local.. não sabemos ao certo) e é deixada pra trás por Perseu que, numa filhadaputice sem limites, dizia a si mesmo que cumprira sua parte: "sim, a tirei da ilha".


Durante esse processo, eu acabei ouvindo uma versão de uma música do Gil que me pegou, pelo significado, pelas palavras, pelo conteúdo, pelo contexto.

Se eu quiser falar com Deus, Gilberto Gil

Pensei nesse fio de Ariadne que Perseu busca pra encontrar a saída do labirinto, e que Gil tanto precisaria pra tentar subir aos céus, já que não possui cordas por onde se segurar... pensei no grande propósito de ter que seguir adiante sem me apegar ao valor figurativo daquilo: não seria um fim, não seria morte e, acimda de tudo, não haveria sangue (pois se houvesse eu desmaiaria). 

...."Aceitar a dor"...

Nesse mesmo novelo, me sentia emaranhado, como que enroscado no peso das coisas que carrego comigo; coisas das quais, no fundo, não preciso. Olhei de novo praquela menina, pedi desculpas, e segui adiante buscando erguer as paredes que precisava, para que outros tantos viajantes se perdessem, criar meu labirinto "Minotauro-free"....dava as costas, caminhava, pra seguir sabe-se lá pra onde, pra chegar a nada, nada, nada do que buscava exatamente quando comecei... 


... talvez, no fundo, a beleza de algumas coisas esteja no caminho que elas nos levam a percorrer, e não em termos algo desde o princípio por encontrar.



1 Esse é um dos motivos pelo qual me condeno a sempre fazer muito menos do que gostaria: atraso deliberações por ficar imaginando essas estórias, significados distintos, que só fariam sentido num universo paralelo... 

terça-feira, 3 de novembro de 2020

Democracia em ebulição

 Há quatro anos atrás escrevi sobre o tema de hoje em "good morning, mini apple" Ainda me lembro de estar na cama e olhar o site do NY times mais uma vez antes de tentar dormir: como caldeiras em ebulição, os ponteiros de "probably Trump", que até poucos minutos atrás apontavam 95% de chance de Hillary Clinton ganhar, agora apontavam o oposto. 

Os ponteiros em vermelho, parecia um prenúncio de lavas e destruição. Olhava pr'aquilo como se estivesse diante de uma caldeira em ebulição, fora de controle, prestes a explodir. Como se dormir fosse resolver o problema, tentei cair no sono, pra acordar e ver um grande "Trump Triumphs", na primeira página do mesmo nytimes que dias antes apontara uma vitória improvável do republicano. "Trump Triumphs", como uma brincadeira de mau gosto, um trava lingua anti-democrático, um Trump que triunfa apontava para o pior dos medos de muitos que eu conhecia, e que junto comigo até aquele dia pareciam ignorar que o mundo que nos cercava.

Ir pro trabalho foi difícil. A cidade parecia a mesma, embora o mundo parecesse diferente de alguma maneira. Onde estariam escondidas aquelas  pessoas que corroboraram com aquilo? Será que me olhavam por detras das cortinas de suas casas? Seria aquele aluno que reprovei no semestre passado? Seria um amigo, ou alguém que considerara um amigo, mas que no fundo.... apunhalava-me, "imigrante" que era, pelas costas?

Hoje me bate o mesmo medo ao ver esses ponteiros indicando a mesma coisa na Flórida, Carolina do Norte e Geórgia. Me pesa escrever isso, mas talvez menos do que da primeira vez. Talvez eu esteja, como muitos dos meus, "numb", anestesiado diante de tanto ódio, discursos divisivos, diante de uma democracia que se diz englobar todas as faces com uma face só. 


Aguardo... embora não espere muito mais do que o mesmo.

domingo, 25 de outubro de 2020

Minotauro no divã

Por estes dias enquanto lavava roupa divagava sobre os meandros da vida, pelos quais eu e tantos outros, similarmente, passam. Lembrei que, poucos diantes antes, havia me deparado com um goshuin (uma espécie de "selo " que templos no Japão têm) que me parecia um labirinto, e ficara ao mesmo tempo estarrecido e entusiasmado diante da beleza/constatação. Ali mesmo, roupa sambando na máquina enquanto eu sentavesperava, comecei a desenhar um labirinto, que logo veio a me trazer diversas questões algoritmicas e matemáticas à mente.

Difícil separar uma coisa da outra: leis intrínsecas que delineiam formas de pungente beleza, "tão aflitiva aos que estão dentro e um deleite aos que vêem de cima", pensava. Por uns breves minutos minha mente ia de uma idéia à outra desse tabuleiro micro-macro, esse dentro fora, até me vir à lembrança um texto muito curioso e belo do Jorge Luis Borges (la casa de Asterión, no El Aleph) sobre o minotauro: um montro - meio homem, meio touro - que era o bicho de estimação do rei de Minos e que vivia dentro de um labirinto, devorando os homens que ali entravam. 

Oque é bonito na "versão" de Borges é a estória ser contada sob o ponto de vista do minotauro, que descreve os seus dias sem companhia e suas distrações pelos cômodos daquele labirinto, diferenciados uns dos outros pelos corpos dos homens que ali faleceram diante de si. Como um cachorro brincalhão ou um filhote de cabra que se diverte pela casa, o minotauro fala das brincadeiras que faz para passar o tempo: se imaginar recebendo visitas e guiando-as pelos ambientes, rindo com as mesmas das inúmeras possibilidades, sem falar nas suas descrições de breves passeios erráticos e em velocidade pelos salões e corredores do lugar.

Fiquei me perguntando como é curioso a visão dos montros ser tão pouco conhecida: Stálin nunca se abriria para fazer um poema, para dar risadas e se permitir ansioso diante de câmeras ao falar sobre a morte; Golias nunca sentou no divã para dizer como era ser a  maior criança da sala quando estava na escola; Medusa nunca deixou relato sobre como era viver sem nunca ter um cabeleireiro que lhe cortasse as madeixas, e  por aí vai. Monstros nascem monstros, ou viram monstros? Uma outra pergunta talvez pertinente.

Reli o texto de Borges, e fui pego de surpresa por coisas das quais não me lembrava, como a descrição do minotauro de sua casa, com inúmeras portas abertas dia e noite para todos, como se o labirinto fosse não mais não menos que uma parte das vidas das pessoas, onde elas poderiam passar tempo, adentrar-se em exploração, e sair assim que quisessem. O minotauro, ingênuamente ou talvez ignorante da causalidade/letalidade de sua existência, assume que a existência de lugares com portas abertas automaticamente impliquem na liberdade em se decidir quando sair deles; não, não era bem assim, e um único ser dali sairia vivo, Teseu, com a ajuda de Ariadne (da qual falei neste post de muitos anos atrás). 

Já distante em pensamentos me vi rememorando os labirintos pelos quais entrei, dentro dos quais, mesmo com portas abertas e fios de Ariadne amarrados nos meus tornoze-los, levaram um tempo para ser resolvidos, e eu assim deles sair, em busca de casa (ou de uma nova casa). Tive compaixão pelos meus labirintos, por seus minotauros; eu, Tes(eu) sem espadas, perdido em labirintos sem muros, a procurar um caminho que fizesse/faça sentido.  


Tive compaixão por mim mesmo, ao ver que cada um desses labirintos não só têm infinitas portas de entrada, mas também infinitos meios de saída. Nessa hora, vi amarrado em meus tornozelos o fim do texto:

¿Cómo será mi redentor?, me pregunto. ¿Será un toro o un hombre? ¿Será tal vez un toro con cara de hombre? ¿O será como yo?


sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Vice-Lord of the flies

 It was on a weekday. Mike was feeling dizzy. Could it be corona virus? Possible... "-The president has got it, so what if...". He shrugged it off. 

He got up, went to the toilet, and by the time he went out his wife was up. 

"Ohh my Jesus! Mike, you became a fly!!", she said.

Immediately, she started crying, saying that it could not be any other thing than a democratic plague. "-Those monsters!! They killed my husband." Mike, struck by the scene, flew to his wife and sat by her nose. 

She slapped him... but apologized:

"-I'm sorry, husband... I haven't got used to you ..yet.. My faith will keep our love strong", she said, looking to her own shoes.

He didn't bother: he had been faster than her, and was not hurt. 

"-Bu..but, babe", she said, "I'm worried... how are you going to the debate tonight?"

He pondered... flew around a bit, sat on some disgusting things, but... at night there he went... and indeed, nobody noticed a damn thing.

... except for a few strange things that people in the audience couldn't avoid seeing

All the newspapers the next morning talked about that, amused: 

"- What was that little dandelion stuck on this eyebrow??! It was there for more than 2 minutes and he didn't notice", said a Republican supporter.

-"First, his words were sounding strange and noisy... I couldn't understand him sometimes... ", said a Democrat that was in the debate's audience.

Already in the car with his wife, heading home, he said: "-You see? I told you, nobody noticed a thing... american people can't see beyond their own navels".

Full of happiness, he flew towards his wife's face, inteding to kiss her (or whatever a fly things kissing is). 

He was, however, surprised with another slap.

This time, he flew out of the window.

He fell dead on the highway's floor.

[Lembrei de Kafka ao ouvir sobre o último debate de vice-presidentes nos EUA.]

[Veja Nytimes , ou este video]

[ps: aliás, não custa dizer que Lord of the flies é um livro incrível, recomendadíssimo pelo board of directors do blog Matemáticos Marcovaldos :P]


domingo, 4 de outubro de 2020

Ambiguidades à parte

 Essa semana aconteceu algo estranho: na terça, durante o debate presidencial americano, o atual presidente foi questionado se condenaria white supremacists pela violência que estes têm perpetrado pelo país. Pra resumir, o presidente diz para um determinado grupo (XX) "XX, stand back and stand by".

Stand by pra mim é esperar para que algo aconteça, para que algo possa ser acessado/utilizado adiante.... essa ambiguidade ficou no ar, esse desvio por um (mau) uso da palavra, onde não se sabia se ele se comprometia ou não em condená-los (muitos chegaram à conclusão que não, que até fomentava a proximidade a eles).

Não fosse D. Trump ser divisivo e, acima de tudo, esguio em se deslizar de compromissos e se abster de bandeiras igualitárias, eu teria dito que ele fora, pura e simplesmente, poético: poesia é a mais pura ambiguidade.

Fiquei um pouco perturbado em chegar a essa conclusão, ainda mais diante de uma situação tão horrível e diante de uma pessoa pela qual não nutro o menor respeito. Mais ainda: numa situação abominável e que não poderia ser tolerada! Fiquei me questionando por alguns momentos sobre como essa corda bamba dos sentidos e significados é also difuso, sobre a qual as palavras andam entre um ser e outro. Também quero ser poesia! Mas claro, não ser evasivo e ambiguo para não ter que me compromissar diante do que digo.... mas quão distantes essas duas coisas estão: ser ambiguo e ser descompromissado? 

Lembrei do "Cálice" ou "Cale-se" do Chico, ou de uma que nesse último janeiro foi motivo de muita risada na minha visita ao Brasil

Samba do grande amor, Chico Buarque


Resta-nos a grande dúvida se a mentira era uma mentira ou uma reinterpretação dos fatos. A ambiguidade não está nos fatos em si, mas em tê-los narrados pela voz de uma pessoa que oscila entre dizer a verdade e a mentira. Essa ambiguidades parecem fazer parte de muito que vivemos, seja na forma como as interpretamos ou, de certa forma, na dificuldade que temos em interpretá-las da maneira correta.

Lembrei-me ainda de uma conversa que tive há anos  com uma amiga bióloga. Esta me expressava consternada sua angústia diante da ciência, com o não poder ser subjetiva, poética, num artigo: para ela, eram todos secos e sem vida. Na hora que ouvi suas palavras tive compaixão, mas vi também que não era essa a direção, que em alguns meios não se pode haver ambiguidade, dúvida, ou meias palavras: a poesia tolera, e celebra a ambivalência, enquanto a política e a ciência devem evitar de todas as formas cair em tais recursos. A grande beleza de se fazer as duas últimas (se é que há beleza em fazer política...) está no saber caminhar sobre a corda bamba da clareza, da eloquência, e do discurso. A poesia, a arte, por outro lado, presam por outras qualidades.

Bom... com isso encerro por hoje: queria só dar um oi mesmo, dizer  que estou por aqui, tentando seguir adiante, encarando as muitas ambiguidades que a vida me oferece.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

Direto da Terra do Sol Nascente #97: "o meu sem hífen, por favor"

 Dear Momo-san

Congratulations!  I am happy that you submitted your paper.

When revision comes back, remove dash from company name: we are not called 

"AAAA-BBBB", but 

"AAAA BBBB".

Best, 

Katchôu-sensei


[não muito distante de um email que recebi na semana passada]

[um exemplo fidedigno de reconhecimento, depois de quase um ano de ups and downs]

[milhares (reaalmente, milhares) de linhas de código]

[muitos rascunhos]

[e horas de simulação num supercomputador]

sexta-feira, 18 de setembro de 2020

Direto da Terra do Sol Nascente #96: quando você está na chuva se encharcando de poesia (ou "página virada")

 Well well well... nem um, nem outro: nem na chuva, nem encharcado em poesia. QUEM ME DERA!

Não, por aqui tudo na mais prosaica mesmice, exceto que.... finalmente me vejo livre de zeros e uns. Vida que deixa de ser binária, ao menos por um tempo: acabo de me livrar do meu artigo e submetê-lo.

Caramba... deu até um frio na barriga!

Fiquei me perguntando o porque: me lembrei do primeiro, também sozinho, eu me sentindo perdido, sem confiança de que aquilo poderia funcionar... cheio de dúvidas quanto à qualidade do produto... um momento de exposição ao mundo... bem parecido com o que senti na última vez que escalei, a uns 20 metros de altura, prestes a ficar exposto num flanco de uma montanha, atrás de mim somente o nada, acima de mim nada, abaixo de mim somente chão e uma corda passando por um carabiner. 

Quem te segura? 

Quem segura tua mão?

Ansiogênico, um tanto angustiante. Curioso que parei em alguns momentos pra tentar entender oque se passava, e me vieram lembranças de primeiro dia de escola nova, do tal primeiro artigo submetido sozinho, de tantas outras coisas.... viver e se submeter ao novo... será que vivo sob este lema? Acho que não, tenho quase certeza que não.

Mas porque? Porque não ir atrás das novidades, do que há de diferente, de obscuro, de interessante? Porque ficamos no que conhecemos, cercado de rostos conhecidos, adicionando "epsilons" (pra não matemáticos, "grãos de areia") àquilo que já sabemos? O fazemos por medo, por curiosidade diante daquilo que fazemos, por genuinamente termos interesse no que fazemos, ou por que é oque sabemos fazer? 

Não sei, simplesmente não sei... só  sei que o que fiz agora é página virada. Sinto começar uma nova época.

["uma nova era"... imagine cristais descendo do teto]

[eu com uma bata colorida.. :P ] 

Um novo momento onde, por algum tempo posso ousar, me permitir fazer outras coisas, priorizar outras coisas. Ou melhor: priorizar-me!

Foi curioso... até 5 minutos atrás, quando cliquei no "submit", meu coração se enchia de medo, de ansiedade, de dúvidas... Já agora.... essa névoa se dissipou. Foi o primeiro dia de escola em que descobri que ninguém ali falava chinês durante as aulas, ou que na carteira ao lado se sentava alguém legal... Muito interessante sentir isso de novo, essa angústia de ter que me bancar diante do desconhecido, sem qualquer respaldo, sem ser introduzido por alguém, sem ser amigo do rei (grande Bandeira!), e mesmo assim... preparando o terreno para me sentir em casa.

Como um grande círculo, volto para o mesmo lugar... com o corpo cansado diante da volta que dei. 

Colocar  a cabeça pra fora da janela.

Ir, ver, e voltar.

Talvez viver e aprender seja um pouco de cada uma dessas coisas.

quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Direto da Terra do Sol Nascente #95: Dr. Raffaellonkenstein

Há dias tenho me sentido como que escalando os últimos metros antes de chegar no cume de uma montanha: falta oxigênio, me sobra desejo de chegar lá, mas  toda a alegria em antecipação a este momento se mistura com ansiedade, com medo, com perguntas.

Ontem, a caminho desse término, me aconteceu algo muito, muito fora do comum: havia pensado em uma maneira de concluir a "obra"...e pensei, tão atípica que é diante do que já fiz até aqui: "- vou testar em mim mesmo!", me veio à cabeça. O teste, no caso, seria colocar duas fotos na "máquina" 

e ver se ela cuspia aquilo que eu via: "0" e "1".

Foi curioso... me senti como um cientista louco cortando da sua própria carne para dar vida a sua criação... algo muito diferente do que já fiz até aqui, onde eu (como indvíduo) não transpareço naquilo que escrevo.1  Dessa vez, no entanto, foi um pouco diferente: lá estava aquele pedacinho de papel, esperando aquela jeringonça me dizer algo sobre ele: "vá...viva, diga oque quer dizer...voe!!!"... dizia a ela, entusiasmado. Pra variar, eu com minha falta de sucesso com pipas e coisas do tipo, nada voou: estava dando errado. Minha "máquina" cuspia "0" e "0".

Uma máquina monolítica, monotemática, monosílábica, de depreende do mundo apenas aquilo que compreende dele: tudo lhe é igual, só vê o mesmo "0" em toda direção pra qual olha.... uma máquina burra....

"Antes houvesse criado um monstro!!!", gritei, do alto da minha masmorra 😛

Caramba... que angústia!!! Logo agora, a cereja do bolo, o momento final, o ponto onde poderia ao menos dar um acabamento pra situação toda.... como se escalasse o everest e pudesse descê-lo ao final fazendo skibunda... Mas não: a vida queria me provar errado, e me deixar fincado no cume, congelado, como uma viagem que só foi de ida.

A angústia me corroeu... pensei no que ainda havia no barco, no que ainda fazia sentido.... mas ao mesmo tempo vinha uma onda enorme de lado, tentando virar a embarcação e me naufragar... "será que eu assumi algo e não percebi?... será que me baseei numa premissa falsa?"...  as questões começacam a pular pela janela, buscando botes salva-vidas.... Como um "mulheres e crianças vão primeiro", a lógica, as indagações, a dúvida buscava sair pela tangente, no bote dos sobreviventes... Havia algo que poderia ser salvo?

Pensei, me revirei... pensei no que poderia estar fazendo diferente.... "vamos, vamos...." nada parecia fazer sentido... quando duas coisas parecem iguais, como é que elas podem ser diferentes? 

Andava em círculos, olhando os detalhes. Olhando pedaços, trechos, comparando-os... "vai ver há uma brecha por aqui..." Tirei mais "sangue", e... ainda sim, nada... até que fui vendo mais caminhos, mais direções.... e oque antes era só turbulência, me pareceu uma corrente a me guiar para fora daquele redemoinho. 

Sim, aquele foi só o começo, que se seguiu a divesas tentativas ainda fracassadas, nas quais o desespero, todas as indagações de "será que errei logo aos 5 minutos?"... "será  que está tudo errado?" foi dando lugar a outras frases na minha cabeça "talvez se eu fizer isso... " ... "talvez seja por tal motivo" e assim galgava aos poucos pra longe daquela obscuridade.  A persistência e a razão, como navegantes parceiros que retomam seu navio de uma irracionalidade que os tenta afundar, por fim prevaleceram. Sim, senhoras e senhores, meu "monstro" por fim ganhou vida, e como mágica, quando já desligava a luz para sair da sala...  moveu seus dedos pra me mostrar que estava vivo, e tinha em mãos a resposta certa: vi surgir na tela "0" e "1"....

... agora é só descer em segurança,  procurar o pé da montanha, e degustar um pouco de descanço.


1 Na verdade não é bem assim... acredito que sim, que mostramos muito do que somos, como pensamos, valores  e outras coisas quando nos comunicamos, escrevemos, quando fazemos qualquer coisa. Nos mostramos em cada coisa que fazemos: ao mandarmos um email, arrumarmos uma estante, contarmos uma estória...  

domingo, 30 de agosto de 2020

Tudo ou nada

 


Hoje estava ouvindo este podcast do qual gosto muito. Ouvi a estória e me lembre de tantos long distances pelos quais passei. Me lembrei de uma análise mais recente sobre a qual li que fala sobre "visões de fora" para se analisar um evento do qual fazemos parte: será que esse barco vinga ou afunda? 

Pensei na parte do podcast que o entrevistado discursa sobre all or nothing...algo finalmente sair do papel ou deixar de acontecer por completo. Pensei na hora em algo totalmente não relacionado, no "all-or-nothing" das equações que tenho estudado... será que até aqui a (minha) vida é binária?

Oque o artigo fala é que temos um viés otimista, sempre achamos que amamos o bastante e mais do que o necessário pra levar uma empreitada adiante, que temos mais energia do que a necessária pra terminarmos uma tarefa.. mas quando pensamos estatisticamente e ouvimos um "1 em cada 89" conseguem... aí encaramos uma grande realidade: alguns ouvem, outros ignoram e acham que "dessa vez é diferente".

Sei lá... não sei se ando pessimista quanto a isso, mas depois de tantos relacionamentos à distância eu tenho até coceira de me imaginar noutra relação como essas. Oque achei mais interessante nessa análise behavioral foi ter um pouco de compaixão ao olhar pra mim mesmo e ver duas coisas: (i) nas primeiras vezes foi justamente pelo motivo acima que caí na falácia acima, e (ii) na última vez foi pra dar continuidade a algo que já existia fisicamente.

Não acredito que nunca mais cairei nisso: as pessoas mudam, se realocam, se distanciam por N motivos. Agora, dizer que busco uma relação do tipo de maneira deliberada e sem ponderar consequencias? De jeito nenhum! 

Mas porque escrever sobre, logo agora? Bom... andei pensando sobre: sobre a vida de solteiro, sobre o que é, sobre oque me fez estar solteiro nesse momento. Em diversos momentos pareço reescrever essa narrativa, onde sou um monstro vivendo numa masmorra, solitário e distante do resto do mundo... até que puxo o plug da tomada da imaginação e caio na realidade pra ver que não, há muitas nuances nessa estória que não devem ser ignoradas. Relacionamentos são baseados em micro coincidências espaciais-temporais às quais não podemos ignorar e, acima de tudo, admitir. 

... talvez essa seja uma outra faceta do ceticismo do qual falei no post anterior...

O mundo dentro de uma bolha


 Pensei em escrever "bobolha", pra fazer uma piada entre bobos (frisando a irracionalidade), e bolhas (coisas que estão supervalorizadas).

Essa pulga atrás da orelha me veio durante uma última entrevista com uma empresa britânica. Me enviaram um site supre flashy, super bonito, cheio de nomes de nomes de grupos de VC que investem na companhia... mas nada de conteúdo no site:  quem são os clientes, como eles fazem oque dizem fazer etc. Fiquei meio assim logo de cara.... 

"hummm talvez seja realmente tão de ponta que eles não querem falar muito sobre...", pensei. Mas cético que sou com essas abordagens milagrosas, fui tentando lê-los nas entrelinhas. Me enviaram um monte de coisa sobre a empresa: na mídia. "A empresa do ano", "prêmio de empresa que parece ter futuro", "revista do investidor escrevendo sobre as empresas mais promissoras do novo século na Inglaterra" (escrito, por sinal, por uma mulher que é uma investidora e que, até recentemente, só assinava artigos de produtos de luxo)....


Dentre os links, um panfleto da empresa, explicando mais ou menos oque fazem: um pdf lindo, com um gráfico comparando oque fazem e a abordagem padrão..

...mas que na hora me chamou a atenção: "como assim, oque eles fazem é melhor: esse gráfico não tem nem escala!". Será que melhorou de usuais 10% pra 90% ou de 1% pra 2%? O gráfico não diz isso. Quando falei pro entrevistador isso ele me disse "ohhh maybe the people that did it were from the marketing department"

Enfim... me desculpe pelo embróglio minimamente técnico. Oque isso tudo me fez ver é o quão reticente eu estou com pque vejo no mundo lá fora. Ok, ok, o mundo acadêmico não é muito melhor, mas deixe-me voltar à questão: minha reticência se dá diante de decisões importantes serem tomadas por pessoas não qualificadas para tomá-las. O cara que lida com a engenharia é um coach, o cara que tem que falar sobre o trabalho feito é um ótimo palestrante que vende até areia no deserto.... tudo é bem "flashy", como o website acima, mas no fundo no fundo... muita coisa é rasa, e AI só no nome. Me pergunto se estamos caminhando pra uma próxima "dot-com" bubble, como a que nos levou à crise de 2008. Interessante que tenho poucas memórias dessa crise, pois o Brasil meio que se safou dela na época, com o boom das commodities. Mas logo que cheguei nos EUA (em 2020) me lembro de muitos falando sobre, como um grande tsunami que havia passado e devastado as vidas de tantos.

... enfim... fiquemos de olhos abertos: acho que há sim uma revolução acontecendo lá fora neste momento, mas também acho que há muita gente falando muito mais do que pode fazer, e isso me assusta um pouco.


sábado, 22 de agosto de 2020

O vazio que fica quando você se vai

Ontem aconteceu algo estranho: acordei às 5 da manhã, e não consegui voltar a dormir. Parecia ansiedade.... mas uma ansiedade com propósito. Logo, depois de rolar um pouco na cama, decidi que o jeito era me levantar e começar a trabalhar: como um ataque final ao cume de uma montanha, lá fui eu...

...e quando deu 4 da tarde parece que um grande abismo se estendeu como um tapete à minha frente: não havia mais nada para acrescentar no "papel": havia terminado.

"Acabou?", pensei.

Sim, havia acabado. Uma sensação estranha, um vazio prazeroso mas desconfortável. Penso nas tantas vezes que caí na falácia de planejamento ao longo do caminho: "mais duas semaninhas e acabo", disse a mim mesmo em fevereiro quando acabara de voltar dos EUA, algo que repetiria umas tantas outras vezes até aqui. Como é curioso esse processo de nos auto-enganarmos...

É claro que finalizar algo não significa jogar pro mundo. Há certamente rituais a seguir, procedimentos a adotar: reler, preparar, corrigir, tirar uns dias pra reler.... mas só de saber que "tudo oque era pra estar ali, lá está" já é um enorme alívio. Só me resta lidar com esse vazio que fica por dentro... parte dor, parte coceguinha-na-barriga...

... enfim...



No violence... and no interaction: discurso sobre uma possível abstinência de likes

 Eu estava pensando hoje: uma das coisas mais assombrosas  que vejo hoje em dia é o crescente poder que grandes empresas têm, como facebook, apple, google e outras. No entanto é muito difícil neste momento cortar laços com elas: deixar de usar o email deles, ou me ostracizar de uma plataforma de contatos só me alienaria de amigos e família.... essas corporações se adentraram de tal maneira nas nossas vidas que, dificilmente, conseguimos deixar que saiam: tornamo-nos dependentes, infelizmente.

Mas estava pensando... se cada "like" que damos é uma pequena dose de dopamina nos nossos cérebros... e se, simplesmente, parássemos de manifestar nossas preferências em forma de cliques? Isso, uma abstinência de "likes": você vê, mas o sistema (o "master algorithm", "bib brother") não sabe se você gostou ou não, se prestou atenção ou não.... será que funcionaria?

Claro, tal "política de resistência sem violência" não funciona em todas a plataformas: muitas não baseiam tal recompensa (pra eles, como algoritmos que colhem nossos dados; pra gente, em forma de prazer/dopamina) em "gostar" ou "não gostar", são mais complexas nas formas de nos avaliar, de mensurar nossas tendências e propensões .. mas em diversas delas funcionaria...

Hummm....

domingo, 16 de agosto de 2020

Networking ++

Conectar.

Estar conectado.

Mantermos vivo o cordão umbilical que nos une ao resto da sociedade que, em virtude dessa pandemia, ficou cada vez mais virtualizada, pasteurizada, deprivada de contato humano.

Oque era abraço virou mensagem. 
Oque era encontro virou papo por aplicativo. 
Oque era carinho virou email. 
Oque era visita virou ligação de telefone.

Um mundo de bits, uma longa string de 0101011110101000110101001011101000101110110110010110110010101011101101110110111 como um fio de Ariadne que nos amarra para não nos perdermos dos outros que parecem às vezes seguir a passos cegos em terreno movediço. 

Prensado pela necessidade, tenho pensado muito no que é networking (como vocês devem ter notado nos posts mais recentes)...
Oque é se comunicar? 
Porque algumas pessoas nos cativam enquanto outras recebem nossa indiferença? 
Oque é chamar a atenção? 
Como dizer um oi virtual? 
Como se apresentar? 

Quando essas questões pisam no mundo virtual, tudo muda: a indiferença passa a ser uma mensagem não respondida, cativar passa a ser "não roubar o tempo dos outros sendo sucinto", ter conteúdo passa a ser postar sobre seus interesses, ser interessante vira ter seguidores e números de likes. É interessante ver que a medida de nosso "sucesso", nossa efetividade, viraram quantidades mensuradas por objetos que são como "proxys" para algo um pouco mais tênue: o quanto os outros interagem conosco, independentemente do nível de profundidade deste contato. 

A internet é um lugar que privilegia e recompensa pensamentos sucintos mas, me parece, que em muitas vezes rasos. Me recordo de momentos em que busco uma explicação para algo técnico e me deparo com horas perdidas diante de informaçõs desencontradas, breves, com fotos bonitas, gente bonita sorrindo, e.... nada sendo dito. 

Mãos imaginárias aplaudem....centenas... as vezes milhares de vezes.

E oque se define "ter contato com alguém", se a medida do interesse tem o tamanho de um átomo, um like,  um átimo de segundo em que uma pessoa parece se engajar contigo mas... no qual ninguém moveu não mais que um dedo-clique, e algumas fagulhas neuronais aqui-e-ali? Quantificamos  interesse usando a efemeridade de um coração num canto de tela, um joinha, um share... trocar idéias se transformou em trocarmos recompensas emocionais, ao invés de ser simplesmente uma troca, em que doamos nosso tempo para  pensarmos por um instante na idéia  que o outro nos apresenta.

Networking: cativar online.
Cativar:  a arte de reter a volátil atenção de um outro ser humano.
Reter a atenção:



domingo, 9 de agosto de 2020

Networking #4 - brô

D.T.

Couching

Trump University

"H te adicionou com a seguinte mensagem:"

Te adicionei, irmão.

É nóis (acima de tudo!).

D.T.


Networking #3 - fofura

H

Advogado de grandes empresas

Unibozo

"H te adicionou com a seguinte mensagem:"


Te achei um fofo. Um dia a gente trabalha assim, lado a lado.

Vamos fazer networking.

H

Networking #2 - emptiness

F

Engenheiro de panelas e utensílios domésticos

Stanford University

 F te adicionou, com a seguinte mensagem:







Para responder F, clique aqui:

Networking #1

 Querido senhor X

Meu nome é Z, e trabalho na mesma área que o senhor. Fui à lua um número infindável de vezes também, onde me envolvi - dentre outras coisas - na prospecção de petróleo lunar, na pesca submarina lunar, no setor hoteleiro lunar. Também cafetinei  no setor de prostituição lunar (mas esta é uma outra estória).

Sei que és muito importante na área, com trabalhos dignos dos mais grandes autores (dos quais certamente o sr faz parte). Gostaria de saber o teu segredo, ou alguma dica, ou algum insight, no qual pudesse me espelhar: me inspiro no teu trabalho e obra, e o tenho como guia neste mundo cheio de tantas informações deletérias e paradoxalmente desinformadoras.

Sem mais, aguardo uma resposta.

Z

segunda-feira, 27 de julho de 2020

A esta hora... você por aqui?

Saudações longínquas!!

De alguém que mal tem parado, mal tem passado por aqui. Tenho, isso sim, é dormido mal, apreensivo por um futuro que parece não vir, preso nos meandros, na fronteira, na imigração, ou mesmo um futuro que promete vir mas, de fato, não veio e nem quer vir!

No aguardo, só podemos esperar. 
Esperemos!
Espiar-emos: pela fresta da janela, pelo buraco da porta. Olhar o futuro nas suas horas mais íntimas, enquanto dorme, enquanto se olha no espelho, enquanto canta na frente do espelho se fazendo de pop-star.

O futuro só promete, só diz-que-vem, diz-que-deu, diz-que-dá, diz-que-dará um jeito nos nosso problemas.

Nope.

"...ansiosos fiquem, aqueles que pelo futuro esperam, pois estes, serão agraciados com a divindidade do tempo"
[Eclesiastes, 46-31-9999]

Ficou até que bom, né? Não sabia que tinha tanto "talento" pra escrever versículo bíblico. 
Mais um pro leitor que pede bis e gostou ("vejo um  sorriso na platéia ali adiante?")

"O futuro há de chegar com suas verdades eternas, e há de dissipar os equívocos, daqueles que hoje se deleitam em obscuridades"

Bom...melhor eu parar por aqui, do contrário vou é angariar inimigos ao invés de mais leitores para este singelo blog. Que por sinal... não: por sinal nada. Nada de novo por aqui. Nada de novo pro blog. Só algumas mudanças de estratégia, de vagar, de pensar, de fazer e de viver.

Como um rei que pereceu na guerra e deixou seu povo à espera.
Como o anúncio de um milagre.
Como um alívio, um sossego, um mimo...
... o futuro há de vir... por debaixo da porta... por email... ou por aviãozinho de papel.


quinta-feira, 16 de julho de 2020

Nossos mais secretos desinteresses

Abro o jornal.
Nas entrelinhas encontro os mortos, estendidos entre as palavras. 
"Como aliviarmos a retomada econômica" é o dito do dia.
Perecem...
... perecemos todos.

Perco a noção de direção.
Olho pro céu, olho o  futuro meio obstruído.
Obscuro. 
Abstruso.

O jornal insiste em me acalentar com assuntos espúrios. 

"Fulano corta o cabelo durante a quarentena e agrada fãs no instagram".
"Evandoscreison posta foto com churro gigante e viraliza".
"Prima do sobrinho do cunhado de Neymerda posta foto com namorado novo".

Um universo de desinteresse que tenta me vender um mundo de cores, do qual não pareço fazer parte.
Ou do qual não faço muita questão de ser parte. 

Não sei, não sei mais nada. 
Como Waly/Adriana cantam...
....reclamam.

[Adriana Calcanhotto - Teu nome mais secreto, composição com Waly Salomão]

Quem sabe.... quem sabe de algo? Você sabe?

Eu não. 
Admito.

Me perco, me perturbo, me desespero e, por fim me perdõo. 
Tardiamente, mas me perdõo. 
Por saber tão pouco.

Em dias de covid os dias têm se seguido como uma sucessão estranha de ver como os outros estão.
"Teu barco está entrando água?", pergunto pro dono de uma embarcação ali-ao-longe.
Remo. 
Me preocupo. 
Remo. Me preocupo. E me descabelo.

Todo sossego e serenidade parecem ir e vir ao vento. 
Chuva que não arrefece. 
Turbulências. 

Olho o mundo lá fora, e me pergunto: será que alguém sabe de algo? 
Algo que não sei?

Volto à estaca zero... mais uma vez sem saber de nada. 
Ou sem ter certeza se realmente sei algo.

sexta-feira, 10 de julho de 2020

2020/2021

Hoje passou pela minha cabeça oque seria se, naquele instante de virada de ano, sorrateiramente, alguém esquecesse de colocar o 1 e deixasse o zero. 

Se 2021 virasse 2020, e tivéssemos a chance de reviver este ano para consertá-lo, somente aprendermos com ele.
Sem ter que dar tchau pra tanta gente.
Sem ter que ficar preso dentro de casa. 
Sem ter que viver com medo. 
Sem ter que sonhar que perdeu alguém.

Seria só ninguém dizer nada, aquiescendo diante de um detalhezinho de nada. Um tropeço, um deslize, de um ano que vagarosamente passa, mas que parece querer correr na frente e nos deixar pra trás.

Mas não, não adiantaria. 

Acho que no fundo saberíamos que não há como mudar a situação. Me lembra um pouco de uma cena num livro do Saramago, quando um motorista de caminhão, ao fazer a entrega de umas encomendas, pega uma senha de número 13 e fica desconfortável com o número:

Cipriano Algor pôs a furgoneta em andamento. Distraíra-se com a demolição dos prédios e agora queria recuperar o tempo perdido, palavras estas insensatas entre as que mais o forem, expressão absurda com a qual supomos enganar a dura realidade de que nenhum tempo perdido é recuperável, como se acreditássemos, ao contrário desta verdade, que o tempo que críamos para sempre perdido teria, afinal, resolvido ficar parado lá atrás, esperando, com a paciência de quem dispõe do tempo todo, que déssemos pela falta dele. Estimulado pela urgência nascida dos pensamentos sobre quem chegou primeiro e sobre quem depois chegará, o oleiro deu rapidamente a volta ao quarteirão e meteu a direito pela rua que limitava a outra fachada do edifício. Como era invariável costume, já havia gente à espera de que se abrissem as portas destinadas ao público. Passou para a faixa esquerda de circulação, para o desvio de acesso à rampa que descia ao pavimento subterrâneo, mostrou ao guarda o seu cartão de fornecedor e foi tomar lugar na fila de veículos, atrás de uma camioneta carregada de caixas que, a julgar pelos rótulos das embalagens, continham peças de vidro. Saiu da furgoneta para ver quantos outros fornecedores tinha à sua frente e assim calcular, com maior ou menor aproximação, o tempo que teria de esperar. Estava em número treze. Contou novamente, não havia dúvidas. Embora não fosse pessoa supersticiosa, não ignorava a má reputação deste numeral, em qualquer conversa sobre o acaso, a fatalidade e o destino sempre alguém toma a palavra para relatar casos vividos da influência negativa, e às vezes funesta, do treze. Tentou recordar se em alguma outra ocasião lhe calhara este lugar na fila, mas, de duas uma, ou nunca tal acontecera, ou simplesmente não se lembrava. Ralhou consigo mesmo, que era um despropósito, um disparate preocupar-se com algo que não tem existência na realidade, sim, era certo, nunca tinha pensado nisso antes, de facto os números não existem na realidade, às coisas é indiferente o número que lhes dermos, tanto faz dizermos delas que são o treze como o quarenta e quatro, o mínimo que se pode concluir é que não tomam conhecimento do lugar em que calhou ficarem. As pessoas não são coisas, as pessoas querem estar sempre nos primeiros lugares, pensou o oleiro, E não só querem estar neles, como querem que se diga e que os demais o notem, murmurou. Com excepção dos dois guardas que fiscalizavam, um em cada extremo, a entrada e a saída, o subterrâneo estava deserto. Era sempre assim, os condutores largavam o veículo na fila à medida que iam chegando e subiam para a rua, para o café. Estão muito enganados se julgam que vou ficar aqui, disse Cipriano Algor em voz alta. Fez recuar a furgoneta como se afinal de contas não tivesse nada para descarregar e saiu do alinhamento, Assim já não serei o décimo terceiro, pensou. Passados poucos momentos um camião desceu a rampa e foi parar no sítio que a furgoneta tinha deixado livre. O condutor desceu da cabina, olhou o relógio, Ainda tenho tempo, deve ter pensado. Quando desapareceu no alto da rampa, o oleiro manobrou rapidamente e foi colocar-se atrás do camião, Agora sou o catorze, disse, satisfeito com a sua astúcia. Recostou-se no assento, suspirou, por cima da sua cabeça ouvia o zumbido do tráfego na rua, em geral também subia como os outros para beber um café e comprar o jornal, mas hoje não lhe apetecia. Fechou os olhos como se recuasse para o interior de si mesmo e entrou logo no sonho, era o genro que lhe estava a explicar que quando fosse nomeado guarda residente a situação mudaria como da oite para o dia, que a Marta e ele deixariam de morar na olaria, já era tempo de começarem uma vida independente da família, Seja compreensivo, o que tem de ser, diz o ditado, tem muita força, o mundo não pára, se as pessoas de quem dependes te promovem, o que tens a fazer é levantar as mãos ao céu e agradecer, seria uma estupidez virar as costas à sorte quando ela se põe do nosso lado, além disso estou certo de que o seu maior desejo é que a Marta seja feliz, portanto deverá estar contente. Cipriano Algor ouvia o genro e sorria para dentro, Dizes tudo isso porque julgas que sou o treze, não sabes que passei a ser o catorze. Acordou em sobressalto com o bater das portas dos carros, sinal de que a descarga ia começar. Então, ainda não completamente regressado do sonho, pensou, Não mudei de número, sou o treze que está no lugar do catorze. 
[trecho de A caverna, de José Saramago] 

É...pessoal: vamos ter que aceitar 2020 da maneira que este é e está sendo. 

segunda-feira, 29 de junho de 2020

Direto da Terra do Sol Nascente # 94: perfume

Hoje voltei a trabalhar no escritório. Aih lembrei de uma estoria. Com o mesmo colega desse post, com o qual as vezes almoçava (ha muito tempo, antes da pandemia). 
A estória foi a seguinte: numa das manhãs de trabalho, esquentei meu bentô (aquela marmita japonesa...que no meu caso de japonesa só tem o formato: dentro a comida é de qualquer outro lugar do mundo rsrs), e fui almoçar sozinho, por não vi meu amigo. Aí cheguei no lounge onde lanchamos e, de longe, já senti o cheiro da comida dele: um cheiro forte, de peixe, que empestiou o andar inteiro. Gritei de longe "não vou nem chegar perto, porque esse cheiro tá forte demais".

Fiquei meio arrependido depois... será que havia sido meio duro com ele? Soei preconceituoso, bruto? Feri alguém cuja cultura aprecia o cheiro forte na comida como uma qualidade? 

Só sei que os dias passaram, o final de semana passou. E um belo dia, quando voltava pra casa ao fim do dia, depois de ter cozinhado no dia anterior, abro a porta de casa e sinto um cheiro forte de tempero. 

...tempero que usara no dia anterior.

Fiquei me perguntando: "será que eu tenho o cheiro do meu apartamento? Da comida que cozinho?"

Aí fiquei imaginando, os japoneses olhando pra mim envergonhados, pensando "ihhh lá vem aquele brasileiro com cheiro de pão de queijo..", ou as pessoas meio nauseadas porque eu tenho cheiro de panqueca... sei lá...me vi indissociado daquele aroma/perfume que denunciava minha origem como uma pessoa não dali. Um ser que não cheira a gohan, ou peixe, ou tofu, mas que tem um cheiro que não se adequa às narinas locais. 

Curioso que esa pergunta me voltou à cabeça meses mais tarde ao assistir o filme sul-coreano "parasita", no qual ele fala sobre cheiro (há um artigo interessante no Guardian: Common scents: how Parasite puts smell at the heart of class war). Fiquei me questionando: "será que meu cheiro, se ele for mesmo diferente e existir, é apenas um sinal de que eu nunca farei parte de onde for, onde quer que seja?" 

Me sentir um pouco mais estrangeiro neste dia, denunciado pela minha própria existência privada, aquilo que não precisaria mostrar ao mundo sendo escancarado, anunciado: você é aquilo que você cozinha.

[" 'Me passa o tempêro?', disse ele entre lágrimas de rejeição.]
[me imaginei lendo isso num livro.]

No fim das contas eu fiquei pensando se deveria perguntar pra outros amigos gringos que moram fora de seus países. "Você acha que tem um cheiro engraçado, que as pessoas te olham estranho quando você passa por perto?".. mas acabou ali mesmo. Não perguntei pra ninguém... vai ver ninguém pensa nisso mesmo (ou acha que perfume resolve).

ps: no que refere a como meu amigo encara o cheiro da comida, e oque isso significa pra ele, a questão me traz à lembrança esse post de 2013:  Universo multiculturalista numa casca de banana (ou "Êsopidianas"). Recomendo
 

terça-feira, 23 de junho de 2020

ποιέω/Poiesis

 ποιέω == Poiesis. O processo de criar, de fazer. Que deu origem à palavra poesia.

Existe poesia no criar? 

Tenho me perguntado bastante isso nesses dias. Diante de tantos momentos de dúvida, de incerteza, tento me apegar a farelos de confiança que encontro jogados aqui e ali ao longo do caminho. "Estou perto de um rio", "vejo uma pegada".... sigo, vejo e percebo: não caminho sozinho.

Talvez oque tenha sido mais curioso nesses últimos dias é perceber que o processo de criação pode ser um tanto louco, cheio de arroubos e relâmpagos e fagulhas. No entanto, uma parte importante do processo, e que pouco se discute se chama "protocolo": criar métodos pré-concebidos para lidar com o construir.

Como casas pré-fabricadas, mesas da ikea, manuais de instrução, protocolos são manuais para gerenciar o procedimento humanos: por onde seguir, como fazer passo a passo. Talvez, mais que isso, são manuais de registro para nos dizer como seguimos no passado, como fizemos. São um registro, e no registro se encontra um método, um pequeno resquício de extrair poesia daquilo que não damos atenção, de um ato que nos parece simples acaso, mas que no fim contém denso conteúdo, de infinita profundidade.

Poiesis. Poesia. Criar. Produzir. Protocolar. Repetir... Uma cadeia de coisas que se ligam, se sucedem, se interrompem, se interferem. Me pergunto onde está a lição de cada tropeço, de cada evento, de cada arquivo apagado que continha a resposta,  cada margem rabiscada de livro que resumia o conteúdo do livro em 2 linhas e poucas palavras. Protocolamos para criar melhor, ou criamos melhor quando protocolamos, quando sabemos extrair método do óbvio, ou quando conseguimos perceber que no óbvio mora o tropeço, o erro,  a disparidade e a assimetria.

[É isso por esses dias]
[Não tenho muito a falar. ]
[Esses dias de corona infelizmente estão consumindo minhas boas energias]
[... mas estou ok, e as coisas vão melhorar ]

 


domingo, 14 de junho de 2020

Criar, iterar, tecer e tricotar

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Mais estarrecido ainda é me perceber tão similar a ela em diversos aspectos. ; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - > Enquartelada, numa torre de marfim cercada de prédios, concreto armado e desigualdade social, minha mãe passa os dias em São Paulo falando ao telefone com amigos, conhecidos, e familiares; estes últimos não necessariamente amigos, nem conhecidos. Passa-se ainda bastante tempo costurando (a époa das máscaras já passou) e, recentemente, tricotando. ; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - > Tricota-se. E com isso, tricotam-se as conversas de telefone entre nós dois: um fio, que se estende a um outro tema, que se embola numa vírgula, que se engole com uma fruta de café da manhã enquanto o outro janta. Dessa forma, "Nada se perde, tudo se transforma"  se transmuta em nada se entende, tudo se embola-emaranha. ; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - > Política vira discussão sobre desigualdade ; - - > Saúde vira bronca por não fazer ginástica na sala de casa ; - - > Presidente e ausência de governo vira suspiro angustiado de quem não tem vacina ou tem medo de golpe militar ; - - > Sobrinho vira árvore de natal acesa fora de época pra que o mesmo veja do outro lado da rua ; - - > Avó vira "iaia" ; - - > E saudade permanece saudade, porque isso não tem no que se transformar. ; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >  Minha mãe tricota de um lado, me fala sobre as viscissitudes da arte; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >  enquanto isso, eu teço (tricoto?) os paralelos com minha vida de criar e tecer a linha abstrata das idéias e números, com as agulhas rígidas, extensas mas finitas, da matemática.; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - > "Fiz e desfiz a blusa da Vana (minha irmã), usei regra, me afundei em números...a cada conta que faço errado vou e recomeço a carreira do começo", me diz ao telefone, num papo que me traz à cabeça a natureza repetitiva do criar, do pesquisar, do fazer, do criar. Repetir...repetir.... penso no "zen in the art or archery" e suas discussões sobre como "iterar" e o "entender" se imiscuem, num rio que desagua em si mesmo, ou como numa figura de Escher, dum rio que se acaichoeira em si mesmo, e desagua na sua própria nascente... Herrigel que li feliz, mas que me deixou triste, por não tê-lo lido mais jovem, enquanto ainda estudante.- - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; 
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terça-feira, 9 de junho de 2020

O não óbvio, numa devida nota ("Ode ao número zero")

Me envergonho.... Sim, me envergonho: de sempre ter desdenhado daquela linha, ou nota de rodapé que dizia 1 

"os povos..... inventaram o número zero em ....A.C."

Sempre dei de ombros. Inventaram? Descobriram? É um número, como pode ser encontrado? 

Por estes dias uma amiga que trabalha com crianças autistas no Brasil veio me trazer a seguinte indagação: um dos pacientes que tem só sabe contar com a comida que gosta, no caso maçãs. Todo pro rapazinho é maçãs, e com elas ele aprendeu a contar. No entanto o desenvolvimento dele travou quando chegaram no número zero: como representar algo que "não existe" pra alguém cuja mente é extremamente dependente em representações (no caso, por maçãs)? 

Talvez como muitos, ao tomar um simples "0" como algo que nos foi óbviamente dado, perdi a dimensão da grande abstração que ele é. Dei meu braço a torcer: não foi uma invenção óbvia, seja em importância, seja em idéia mesmo. Imagino o pobre inventor sofrendo as piadas dos colegas: 

"-olha ali fulano(a) de tal!! Vamos chamá-lo(a) aqui pra nos contar a grande invenção dele(a)"...e todos caiam na risada, rindo do(a) pobre inventor(a).

Não acredito que seja uma pessoa que carrega os louros dessa invenção: acho que de tão controversa que sua utilidade é, talvez tenha sido inventado, utilizado, reinventado e reutilizado diversas vezes ao longo da história. Pra vocês verem como é algo interessante: li uma vez que alguns povos indígenas na amazônia conseguem contar, mas não têm representação pra números maiores que 3: quando passa de 3 eles representam como "muito" 2.

Não voltei no assunto com minha amiga. Até tentei procurar por algo na literatura que a ajudasse a explicar o ponto em questão pra criança, mas tudo é técnico demais (até Malba Tahan) pra uma audiência especial como essa.  Ao menos neste post faço uma mea-culpa em busca de redenção: agora que escrevo sobre o assunto, o removo das notas de rodapé e o coloco um pouco mais em evidência. 

"De agora em diante, serás não trivial para mim...."



1 "-...merece mais que isso", diria hoje.

 Em matemática isso é o equivalente a se compactificar um espaço, i.e., dando uma representação "física", ou "simbólica", pra tudo aquilo que foge de certo controle; no caso, o "infinito" deles. 

sábado, 6 de junho de 2020

Por um triz (parte 1)

Uma das coisas que ninguém gosta de admitir na vida e que teve sorte:

Chegou onde chegou? Trabalho árduo!
Ganhou muito dinheiro na bolsa? Descobriu como functiona (me ensina! rsrs) 
Fez uma pós? Porque estudou muito!

É difícil, em alguns casos, se ver que há sorte nos casos acima, principalmente no último. Acredito que poucos estão dispostos a olhar cuidadosamente pro que lhes ocorre ao redor, ou suas trajetorias, e pensar: será que foi acaso? E quando há ganho, "sera que tive sorte ao longo do caminho?" 

Ha uns dias um amigo durante uma conversa comentava  sobre a minha trajetoria: "você não teve sorte alguma, você ralou...bla bla bla". Aí o interrompi e discordei dele... disse que havia sim sorte na equação.  Na hora não me lembrava de exemplos específicos, mas sem dúvida: sabia que existiam. Me lembrei então de um caso muito curioso: ainda quando morava no Rio, tive um semestre horrível com um professor que, apesar de aclamado pesquisador, deu um curso péssimo, tanto em termos de didática quanto em termos técnicos. Em poucas palavras: todo mundo se ferrou no curso, e a maioria passou com sufoco. Eu fui um deles. Pra piorar, o professor era mentalmente afetado. Sériamente perturbado.2 De agora em diante o chamarei de professor X.

Isso dá um idéia do cenário. Oque aconteceu comigo foi o seguinte: uma bela manhã, após o curso ter terminado, eu passei onde estudava pra finalizar uma coisa  ou outra. Avistei meu  então orientador no saguão, que ao me ver dá um sorriso e me diz: "-te salvei!". Eu, meio sem entender, pergunto de que. 

"- Essa manhã, encontrei o professor X na sala da secretaria. Ele estava pra entregar o resultado das provas. Aí perguntei como você havia ido, e ele viu a prova e me disse que você havia sido reprovado. Aí, ao folhear a prova, ele notou... 'ahhh esqueci de somar a nota dele'... e viu que você havia passado.. então, te salvei, embora, na verdade, não te salvei, porque você passou sozinho." 

Lembrei desse caso com um certo frio na espinha, um certo pavor... Fiquei me perguntando: e se, diante de todo aquele abuso de poder,3 será que eu teria voz para reclamar daquilo, dos desmandos de um professor maluco? Que rumo teria eu tomado à partir dali? Um colega de turma acabou sendo expulso do instituto na mesma época, e se não me engano, um outro que não me era tão próximo foi reprovado no curso. 

É difícil não ver isso como sorte... a sorte de ter sido ouvido? Ou de não ter que tentar ser ouvido... não sei... Nesses tempos  em que olho de longe os EUA, vendo que as fagulhas de tanto ressentimento quanto à morte de George Floyd começaram numa cidade que tanto gosto... não há como não se dar conta de que ter voz é, sim, um luxo. E as estatísticas são horripilantes quando se pensa em ser negro no Brasil, ou nos EUA: inimaginável aceitar que voltar pra casa vivo pra alguns pode ser simplesmente uma questão de sorte... a exemplo do caso de um homem que observava pássaros no Central Park em NY: oque separa o destino de tantos do destino de George Floyd?

Sorte, azar, injustiça .... são conceitos tão próximos assim? 

Coloquei as coisas em termos de sorte, de azar...mas vejam que isso não acontece só lá: acontece em todo lugar. Lembro de, nos EUA, o caso de um colega de doutorado, mais senior que eu, cujo orientador, ao comentar sobre o seu trabalho de tese com um outro matemático, teve a idéia "roubada" por este último, que logo adiante escreveu e publicou um artigo sobre o tema. Não deu outra: meu colega ficou sem tese, e desistiu no sétimo ano de doutorado. 

Reclamar pra quem? 
Azar?

O orientador da minha ex teve um infarto durante o PhD dela. Não faço idéia de como terminou essa novela (pois rompemos antes). Mas lembro dela ter que empurrá-lo contra a parede e falar "vai orientar direito ou não?"... e não sei como continuou aquele drama. Desconfio que se aprofundou com o tempo, embora não saiba: se ter um orientador ativo já é difícil, que o diga um ausente. Sorte, azar?... Outro caso em que a rigidez acaba prejudicando o elo mais fraco dessa cadeia; no caso, o aluno.

Sei que existem outras formas de se observar e considerar azar numa vida, mas em todos os casos que citei acima eles tocam no ponto do azar entremeado a uma relação de trabalho. São casos que envolvem um lado com mais poder que o outro, onde o dar certo ou não de certa maneira se equilibra na corda bamba da sorte (ainda mais quando se está no começo de uma carreira)


1 Algo que só fui ter competência, e distanciamento emocional, pra perceber anos mais tarde. À época, pela quantidade que estava aprendendo, não soube atestar se era por mérito dele ou meu. Mais curioso ainda é ver como isso me faz ter sentimentos ambivalentes quanto ao lugar, que ainda tem tantas pessoas que gosto, como o tal ex orientador da estória.  

2 A ponto de talvez nenhum aluno ter alguma conversa decente com ele à época, ou se sentir à vontade para discutir uma questão de prova. Houveram casos de notas negativas em questões!!! Hoje em dia, depois de passar por tantos outros sistemas, eu vejo como isso era um triste caso de abuso de poder. Em outros países e sistemas, note-se, isso também acontece. 

3 Onde dificilmente um professor era questionado em suas decisões, ainda mais por um aluno ou funcionário, sem retaliação.