Naturalmente que, voltando ao Brasil, eu tenha mais contato com minha família.
Isso é bom. Mas também traz dificuldades. Ou melhor, sutilezas. Há dois (ou mais) lados nessa estória.
Família é sempre um ponto de referência ou uma antítese àquilo que buscamos. Meu pai, por exemplo, sempre foi pra mim um poço (pocinho, vai) de maus exemplos. Não que seja pessoa ruim ou desonesta, longe disso: nunca vi um cara tão resiliente e que trabalha tanto. Mas cresceu e se formou em condições muito hostis: fugiu de casa ao 16 anos, quando migrou no nordeste para São Paulo, teve um pai abusivo-violento etc Realmente, tiro o chapéu pra ele por ter se mantido firme e chegado onde chegou.
Bom... já que estamos aqui, acho que é isso: hoje vou falar dele, meu pai, que não tem muito a ver comigo mas, ao mesmo tempo, por antítese, acabou me ajudando a ser quem eu sou (como uma série de contraexemplos nos quais moldamos uma teoria).
Por muitos anos meu maior medo era ser igual a ele: por vezes intempestivo, repetitivo que só (quando bebe então... sai de perto), pouco comunicativo e até taciturno. Ao mesmo tempo, super fanfarrão, adora uma cerveja e boteco (isso...não é bar não... é botequeiro mesmo), e tem uma paciência de monge diante de gente mala e igualmente repetitiva (isso eu admiro... não tenho muito).
Em suma: totalmente nada a ver comigo.
Por muitos anos eu tive dificuldade não pra aceitá-lo, mas pra "aceitar" esse "lado" da minha vida... até que vi que minha família é meio atípica... como algo fantasioso que nasce de um conto do Érico Veríssimo (o pai, não o filho).. um monte de imperfeições em meio às quais eu devo ser mais uma. Acho até que foi depois de ler uma entrevista do mesmo que comecei a rir mais da situação: Veríssimo, diferentemente de seus pais, teve a chance de estudar e tudo o mais (assim como eu). Aí ele ficava horrorizado com seus parentes do interior, que desconheciam tudo oque ele levava "na bagagem" quando voltava de férias - um tio que sentou num vinil raro que ele tinha, coisas nessa linha. Até que ele percebeu que ali estava o "dendê" da vida dele: que havia tanta poesia naquilo tudo que ele acabou levando tais fatos aos seus contos. Li Incidente em Antares quando era adolescente: as risadas que dei ali não são muito diferentes das que dou quando lido com meu pai.
[Como no dia que ele parou comigo na frente de um hippie que tocava violão na rodoviária, ficou lá batendo o pézinho ouvindo o reggae que o rapaz tocava... aí quando acabou o hippie disse pra gente "-pode pedir uma música, senhor..." e meu pai, na maior ingenuidade - e pra variar, super nonsense - vira e diz ..."-toque aquela... de Wando" (meu pai adora essas músicas de boteco dos anos 80) "...-viiixe, amigo.... assim você quebra minhas pernas.."]
[Viajei de São Paulo pro Rio "rindo" desse evento]
Semana passada me toca o telefone - meu pai, que me liga uma vez na vida, outra na morte... isso porque ele é péssimo falando no telefone (a definição de lacônico-monossilábico deveria ter um vídeo do meu pai no telefone..."-ahhh tá tudo bem por aí? Ahh que bom.... então tá bom... beijo, filho!" [sem ouvir qualquer resposta minha, diga-se de passagem])...
Mas voltando: toca o telefone, atendo. Aparece um rosto estranho:
"-Alô, pa.... quem é você?"
"- Opa!! Tudo bem? Peguei o telefone do teu pai escondido. Ele foi no banheiro, a gente tá aqui na bomboniere de um amigo, bebendo uma cachacinha...a gente gosta, você sabe.. ele sempre fala de você.."
[Nesse momento já vi que seria um monólogo, não uma conversa]
[Ainda mais que ele não conseguia me ouvir, pois havia música no local]
"...- gostei de você!! Bonitão, bem afeiçoado, sorridente, fala mansa...eu sou poeta, tenho umas coisas escritas. Será que você me ajudaria a publicá-las?"
[O cara estava "all over the place", me falando de um monte de coisa]
Passaram-se uns minutos, aquela conversa monologada... Aí meu pai volta, o amigo diz a ele, na maior naturalidade:
"- Peguei teu telefone... tô falando com teu filho!!"
Aí meu pai me grita um "-Oi, filho!", pega o telefone com vídeo, coloca na orelha (isso... uma conversa de vídeo: eu e da orelha dele, conversando), já super alegre, até se esquecer do telefone e começar a falar sobre mim pro amigo dele, orgulhoso "-..ele é matemático.. já foi até pra China dar palestra..." alugando o amigo até... aí quando vejo que fui esquecido e meus apelos pra que ele pare não funcionam, desligo... deixo essa parte da poesia-piada pra lá, e sigo meu dia.
Por anos achei que essa minha relação com meu pai seria a de tirá-lo da minha vida: me soava inconsistente com tudo oque queria construir pra mim, e não o via cabendo nela. No entanto, logo que me mudei pros EUA, vi que tinha que fazer as pazes com isso. Mas foi maior que somente aceitar, essa espécie de wabi-sabi que faz das relações coisas imperfeitas. Me demorou pra entender que não precisava aprender a aceitar, mas sim a perdoar. Kintsugi, talvez, concertar algo que estava em pedaços…. Perdoar as pessoas pelos erros que elas cometem, não só pela incapacidade de serem prudentes diante dos danos que podem causar na vida de outros, mas também nas suas próprias vidas.
Não sei até hoje se meu pai diretamente me ensinou algo… talvez não… mas aprendi a perdoar, e tento me perdoar a cada dia pelas minhas fraquezas e erros, pelos momentos que não pude estar ali para os outros… infelizmente ainda tenho muito a melhorar: não tenho tanta compaixão por mim mesmo quanto tenho por terceiros…. uma lição ainda a ser aprendida.
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