quinta-feira, 19 de maio de 2022

17 dias entre o oriente e o ocidente: "máquina do abraço"

No momento há outras coisas sobre as quais gostaria de escrever, verbalizar, poder entender e colocar em ordem. Mas esse entendimento (ou algo assim) não chegou ainda, então faremos um passeio pelo convés do barco e seguiremos remando até a costa brasileira. 

E falaremos de outras coisas. 

PLEASE, RAFFAELLO, PLEASE...

Ok... vou tentar. Por conta do contexto vou falar sobre algo do qual lembrei por estes dias e de algumas coisas que tenho passado durante esse processo de saída daqui.

Existe um conceito em terapia ocupacional que se chama "máquina do abraço". Acho que já falei sobre - uma amiga que trabalha com autistas que me contou. Em geral autistas são sensorialmente muito sensíveis: alguns, quando ficam nervosos, precisam correr para um lugar pequeno e apertado, ou terem pesinhos colocados em cima deles. Por conta disso, inventaram uma máquina com esse papel: a máquina do abraço, que os comprime ou coloca peso/pressão sobre o corpo de quem a usa.

Quando minha amiga me contou isso a interpretação que dei foi a de que eles precisam, de alguma maneira, saber redesenhar o contorno que os separa do mundo. De certa forma, sempre digo a mim mesmo que a idéia se aplica totalmente na vida das pessoas em geral. Na minha, por exemplo: quando pareço duvidar de meus valores, procuro ter muito contato com meus amigos, que então funcionam como essa máquina, me lembrando de quem sou e dos contornos que tenho. 

Pode acontecer às vezes desses contornos ficarem claros também quando somos jogados contra a parede por algum acontecimento hostil ou indesejado (como oque relatei no post passado): diante do inesperado ou de um comportamento impulsivo, você retribui de maneira igualmente impulsiva, se comporta como bicho, ou com serenidade? Tais acontecimentos, de alguma maneira, servem pra dar clareza aos nossos contornos e nos mostrar quem realmente somos (os experimentos comportamentais nessa área são incrivelmente interessantes, diga-se de passagem).

O momento qe vivo não anda dos mais fáceis, algo que já antevia desde que soube que seria "desenraizado". Aí você adiciona a isso uma pitada de angústia, duas colheres de estresse, uma caneca de incerteza, um balde de mudança de país, mais uma pá de transição de carreira... e você vê como estou: cognitivamente intacto (acho), mas emocionalmente bem longe do que usualmente sou.

[Como eu sempre digo a mim e a outros:]

[estar bem emocionalmente não é um diploma que se pendura na parede]

[mas sim um constante e difícil exercício] 

Por conta de tudo isso, tenho buscado bastante contato com amigos ultimamente, algo que havia ficado "rarefeito" devido à  pandemia. 

Ainda na segunda estava tão sensível que quase chorei durante uma entrevista (que no fim das contas correu bem). Na hora me veio o contraste do ocorrido domingo com a lembrança doce do sábado, quando saí com amigos pra escalar...me segurei no cognitivo, respondendo coisas da minha área e falando de pesquisa. Mas a lembrança continuou ali, forte, da última escalada. Parecia que me celebravam em tudo. "-L, I brought our prince!", disse em meio a risos a amiga japonêsa K, que me deu carona da estação de trem até a montanha. Na volta então... eles falando de mim como se eu fosse a pessoa mais terna do mundo, de como vão sentir saudades etc ... eu ouvindo tudo, numas cena patética: comendo um ritualístico sorvete-pós-escalada, os olhos em quase-lágrimas...  #lifeispoetry

..."-man, you need to eat more", me disse meu amigo indiano. "-I know... it's just that... I've been with my brainemotions all over the place...scatterbrained". As pessoas estão querendo me cuidar e preocupadas.. notam, me notam. Ao menos com meu colaborador eu rio um pouco. Tenho almoçado com ele quase todos os dias. Ele sempre foi meio casamenteiro, dizendo que eu deveria casar. Aí arrumou uma esposa que... faz igualzinho a ele: vive me dizendo que eu devo casar.  Tive a sorte de ter uma família tranquila quando a isso, mas os amigos... não estão ajudando. Tudo, invariavelmente, acaba em piada. :) 

Na terça acordei pra uma oferta de emprego: ao menos isso. Finalmente, acabou a tortura. Mal conseguia acreditar. Perguntei pra pessoa que me indicou à vaga se era mesmo uma proposta de emprego, ao que ela me disse: "

-Sim!!!! Mas não pudia te contar por que estava no comitê!! #eujásabia  :)".. a vida me deu a sorte de ter amigos muito doces.


Os colegas de trabalho  têm parado na minha sala pra dar presentes... na terça foi uma colega com seu  filhinho de 5 anos. O menininho me adora, toda a vez que vai ao escritório faz questão de ir me ver. Diferentemente das crianças japonesas, ele não é tímido e sempre se abre pra  tentar falar comigo em inglês. Hoje ele foi me dar um presente que ele mesmo escolheu, além de dizer que queria me ensinar a fazer origami. Como eu já sabia (pois fazia muito quando era criança), ele ficou surpreso com o resultado: pegava meus origamis na mão, levava pra mãe dele ver, e falava em japonês pra ela: "-olha só, como ele é talentoso!". Muito fofo.... por alguns minutos voltei à infância. 


Ficamos lá fazendo origamis por quase uma hora: ele fazia um origami e vinha me dar de presente. Encheu uma sacolinha pra eu levar pro Brasil, além de me dar um desenho que fez usando folhas de árvore (o menino é super talentoso). Bateu uma saudades do meu sobrinho "-tio rafinha... como é que é um terremoto?"


Na terça rolou uma conversa com um amigo-de amigo-de amigo que trabalha num banco. O cara nem me conhecia mas se dispôs a sentar e bater um papo comigo. Desacreditei como existem pessoas tão nobres em estender a mão pra ajudar quem está começando: isso é pra poucos, foi uma das melhores surpresas do dia. A conversa correu tão bem que acho que, mais do que uma ajuda, ganhei foi um amigo: melhor coisa pra se começar numa nova cidade (na qual, felizmente, tenho vários outros). Já até marcamos um café.

Os amigos, em geral, são os que têm me aguentado nesses dias mais turbulentos. Indescritível o carinho que tenho recebido, o cuidado, os mimos... às vezes fico abismado com o quanto consegui me conectar com algumas pessoas, mesmo existindo uma comunicação (em japonês) tão ruim entre eu e elas... 

Na quarta houve uma despedida no trabalho.  Várias pessoas falaram: colaboradores se rasgaram em elogios, não colaboradores me surpreenderam com tanto candor, mas... diferentemente do usual, não fiquei sem graça: recebi tudo e agradeci tudo... acho que estava precisando desse carinho. Mas claro: por vários momentos fiquei me perguntando se estavam falando de mim. 

De quando em vez eu parava e começava a falar... e aí parava - ciente de que eventos japonêses tem schedule pra tudo - e perguntava 

"-desculpa... era pra eu falar agora?"

Aí a secretária do grupo falava 

"-ainda nã, Rafael-san."

e todo mundo ria, 

"-desculpa... eu sei que falo muito... se vocês deixarem eu vou ficar falando aqui"

Fiz piada do começo ao fim do evento, mas não fui sarcástico com nenhuma mensagem (como talvez fosse no passado)... vai ver mudei.. não sei. Acima de tudo, mantenho a opinião que tinha desde que cheguei aqui: japonêses e brasileiros têm um senso de humor mais próximo do que americanos e brasileiros. 

Lá pro meio do evento a secretária do grupo comecou a chorar, algo EXTREMAMENTE não japonês(!), um povo que pouco demonstra seus sentimentos em público. Aí colocaram um vídeo (japonês adora esses vídeos com foto! Bem old school mesmo, mas... aprendi a entender a/gostar da "forma" como se expressam) em que vários ex-colegas - um chinês, um vietnamita, um belga, um japonês -  enviavam mensagens pra mim... "-vixe...agora sou eu que vou chorar", pensei. Mas segui sem lágrimas (no stove, no internet, no bike... no tears). Um deles até colocou o filhinho de 1 ano e pouco pra me enviar uma mensagem por vídeo, o menininho tentando falar umas palavras... muito, muito fofo. ♥

Depois do evento rolou uma pequena dissonância entre oque estava sentindo e tudo oque disseram, mas acho que pela primeira vez eu consegui estar ali e absorver tudo sem muita "blindagem" ou dificuldade: recebi o carinho dos outros, aceitando que me vejam de uma maneira que não "entendo" direito. Lembrei que minha primeira terapeuta sempre falava que tenho uma visão distorcida de mim mesmo, então... talvez tenha passado a aceitar essa visão meio cubista de mim mesmo: sou e não sou, e contenho todas as perspectivas - "erradas" e "certas" - com que me vêem ao mesmo tempo e sob todos os ângulos. Por que, no fim das contas, não estão nem certas nem erradas: são apenas perspectivas. Por conta disso, às vezes acho que essa máquina do abraço não funciona muito bem comigo. Noutras, como nesses últimos dias, parece estar fazendo efeito: ando bem mais tranquilo depois do que aconteceu no final de semana. 

Twist of fate... vai ver é isso... meus contornos, sendo redesenhados.  



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