terça-feira, 8 de outubro de 2019

Direto da Terra do Sol Nascente #68: Endurance

Nesse ínterim em que construo meu navio de saída dessa ilha, mas ainda em contato com o meio acadêmico, me bate aquela angústia gigante em querer ir embora o mais rápido possível. Mas a vida parece ter sua inércia, e querer que tudo leve mais tempo do que eu gostaria. Paciência.... minha jangada vai levar mais tempo para ser construída.

Sempre há coisas para se mudar, e caminhos outros que podem ser percorridos: emails que podem e devem ser enviados, mais "nãos" a serem ouvidos antes de um "sim" etc etc. Recentemente li mais sobre Shackleton (explorador marinho) em sua tentativa de cruzar a Antártica, pra qual foi com um navio chamado "Endurance". No entanto tudo sai diferente do planejado, ou melhor dizendo, tudo dá errado: a viagem não só termina em beco-sem saída como todos quase morrem. A situação era tão, tão tensa, que só uma pessoa com tanta fibra pra poder manter um grupo à beira da morte em coesão; para tanto Shackleton  buscava fazer teatros, jogos e até, nos dias de fome e falta de comida, fazerem uma leitura do livro de receitas em voz alta, ao que todos os homens presentes davam sugestões de como aprimorar o prato. E os percalços não param por aí: uma estória mais complexa e difícil segue a outra. No livro (do Alfred Lansing) lê-se que o navio que os levou pra Antártica em certo ponto teve que ser abandonado no meio do gelo, pois os icebergs, depois de prendê-los no gelo durante um inverno inteiro, comprimiram e comprimiram o navio até quebrá-lo... imagina, você ver a sua única chance de ir embora pra casa se desfazendo diante dos seus olhos?!! Pqp, isso não é pra qualquer um... "Endurance"...  nunca vi nome mais adequado. Penso em mim, e nos mínimos paralelos de uma vida de um homem que se nutre de algumas lembranças que dão força pra que ele continue a seguir adiante e buscar voltar à "civilização" (ocidental).

Estou em Sapporo hoje, que me traz memórias vívidas da Mini-apple, cidade distante mas que ainda guardo comigo. Difícil não andar pelas ruas largas daqui, sentir o frio de Outubro, e não lembrar de tanta coisa, não me imaginar ao fim do dia pegando minha bicicleta, passando na frente do café onde estudo nuns fins de semana, e chegando em casa são e salvo pra salvar energias e abraçar o dia que está por vir. 

Ontem jantei no topo de um prédio, não pude deixar de olhar pras luzes lá embaixo e me lembrar de São Paulo, com seu caos de dias de chuva. Lembrei do vídeo que me chegou essa semana, do sobrinho dando os primeiros passos. Uma alegria estranhamente triste ver as coisas acontecendo de tão longe, sem ter a perspectiva de diminuir tanta distância... ao menos antes a previsão de visitas pra mitigar a saudade eram mais claras. Aqui no Japão... a coisa muda de figura. A cada vez que penso nisso me bate uma angústia maior ainda, que tento serenar com mais esforços pra sair daqui. 

Bom, senhor momo.... nada de mimimi: vou lá fazer mais coisas pro meu portfólio/cartão de saída da academia. 


sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Com os pés, com as mãos, e com a cabeça

Há anos atrás aconteceu algo inusitado no Brasil: logo no final do ano, uma emissora de TV colocou em suas vinhetas natalinas pessoas em suas roupas de trabalho desejando feliz natal para os expectadores. Uma dessas vinhetas, com lixeiros desejando feliz natal, foi ao ar antes de um telejornal diário, e sem saber que o áudio estava vazando para os ouvintes, o apresentador do programa começou a esculhambar a vinheta e os lixeiros nela, dizendo que eram os seres mais baixos na sociedade etc etc

Claro, o público caiu em cima, e o apresentador se retratou (não sei se fez mais que isso, ou se realmente pensou no peso do que havia dito).

Na mesma época, o Chico Buarque apareceu num trecho de um de seus DVDs falando sobre uma babá que trabalhava na casa dele:



Os dois casos vieram à tona há um tempo já, e ficaram na minha cabeça ali no final do doutorado começo do pós doc, quando estava numa baita crise quanto ao que fazia: sentia que precisava voltar às origens, a colocar a mão em algo, ver algo acontecendo, sendo criado. E interessante que, pra mim, havia um grande valor em alcançar o palpável, ausente de abstrações matemáticas, diametralmente oposto à minha pesquisa na época, que ia daquele jeito,  pesquisa de um pós-graduando inseguro e assustado ("-Será que conseguirei criar algo? Entender algo?", era uma pergunta que me fazia reiteradas vezes). Ao encontrar o motorista de caminhão durante a viagem recente, senti dentro de mim mesmo o contraste que vivia ao fim do doutorado: o contraste entre o homem que eu era, que trabalhava a cabeça, e o homem que eu gostaria de ser naquele momento, trabalhando com as mãos0 .

Foi uma época bem estranha, em que ter uma tese, um paper, parecia brincar de bolha de sabão: não conseguia sentir nada em minhas mãos (curiosamente, dizia bastante em terapia sobre sentir os braços fracos). Esse encontro durante a viagem foi um pouco isso: eu me ver diante de mim mesmo mais uma vez, e essa pergunta " -Oque tenho nas mãos? Oque eu realmente faço pro mundo? Oque posso oferecer pros outros?"

Ao que parece, no entanto, eu fiquei desajustado diante do desconforto do rapaz, que ficou nitidamente em choque diante do contraste entre esses dois mundos (embora muita gente fique). Mas me perguntei na hora: será que reagimos assim por conta de prestígio social que, sem nem percebermos, invade a forma como  vemos um o outro? Será que ele me achou um esnobe arrogante simplesmente por ser um homem que não trabalho criando nada, que não trabalha com as mãos? 

É raro falarmos sobre isso: relação de status social de profissões é algo histórico que perdura há gerações. Nobres nunca trabalhavam, e a nobreza portuguesa então, que há pouco mais de 100 anos ainda mostrava suas penas à alta sociedade brasileira, era das mais preguiçosas possíveis. Isso sem falar na escravidão, que o Brasil foi o último país do planeta a extinguir.  Em resumo: nós brasileiros nascemos num berço de mau-exemplos, onde o trabalho de mãos estava concentrado nas mãos dos menos favorecidos.

E então voltemos a mim. Sempre achei um pouco estranho esse trabalho sem as mãos, que só sei e sinto que é trabalho por que me cansa (sim, cansa muito). Lido bem com esses contatos entre mundos díspares: com marceneiros, construtores e artistas em geral eu sempre consigo encontrar analogias óbvias entre oque fazem e oque faço. Mas no caso recente... fui pego de surpresa com a reação do rapaz, e me vi sem analogias quaisquer nas mangas: parecíamos sim dois seres que se avistam pela primeira vez numa manhã escura e, por mais que se pareçam, são ainda estranhos. Ainda assim, mesmo diante dessa barreira, desse "oque será que tem do outro lado?",  tentei puxar conversa e encontrar alguma similaridade. Mas não rolou: o rapaz (italiano) não se fez muito interessado em mim, ou no que tinha a dizer. Ou ficou estarrecido mesmo.... talvez eu ficasse assim se encontrasse um youtuber, ou um influenciador digital (uma amiga encontrou um uma vez, disse que não sabia muito bem oque pensar).

Terminado o café da manhã na mesa comunal, seguimos cada um pra tuk-tuk1 diferente, para seguir viagem pro mesmo nascer-do-sol em Angkor Wat, um longe da vista um do outro.2
.


0  Talvez não necessariamente isso, mas sim criando algo. 

1 Se você não sabe oque é um tuk-tuk, é como nesse vídeo.





Curiosamente, o encontrei várias vezes ao longo da tarde. Nos cumprimentávamos amistosamente com um "hello", até mais do que com muitas outras pessoas que reconhecia de vista do hostel.

Direto da Terra do Sol Nascente #67: mais um dos mesmos dias de um pesquisador

É sexta-feira. O dia amanheceu coberto de cinza, o céu esbranquiçado que nunca parece ter visto sol e azul na vida.

O dia me enche de sono.

Persisto no trabalho, tentando aprender algo, tentando me interessar por algo. Mas sou atacado pelo torpor dos finais de semana, que me impede de fazer muito, que o diga de fazer algo de útil.

Olho para os colegas ao redor: um lê notícias; outros, com uma máscara nos olhos, tira uma soneca vespertina. Produtividade à la Nihon: um tanto diferente do que se ve no ocidente. Enfim... não posso dizer muito, pois entre uma crítica virulenta e um olhar de soslaio, olho pro meu note e me dou a liberdade de escrever sobre a vida como funcionário no Japão de uma empresa japonesa.

Os últimos dias me trouxeram mudanças. Abri um pouco mais os olhos para olhar ao redor e pude tirar umas lições. Adicionei cores, cortei palavras, poli até chegar a um estado mais "vendível" de mim mesmo e meus skills. Vai ver a melhor maneira de se sair do Japão é substituir o tempo da soneca sagrada que eles tiram por horas dedicadas a olhar pro mundo lá fora em busca de atenção. "-Eiii!!! Olhem pra mim!!! Estou aqui no Japão, mas quero sair daqui!!!" Talvez, como um náufrago perdido num farol, este sou eu fazendo sinais a navios pelas suas atenções.

Mas bom.. acabou os 10-15 minutos de desculpa: preciso ir, encarar um notebook que enrolo há dias para terminar de implementar.

Que a força esteja comigo (e me proteja do sono).

segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Direto da Terra do Sol Nascente #66: um catastrofista entre desesperados (encontro de dois mundos)

Uma das minhas "qualidades" que me é mais clara é o catastrofismo: um atributo que tem matizes de pessimismo, sempre acho que as coisas são muito piores do que são, ou que podem ter consequências muito maiores do que de fato poderiam ter. Já sabia disso antes de vir pro Japão, e sei mais ainda quando isso fica à flor da pele (quando durmo pouco).

Acho que só vim a repensar meu catastrofismo diante do desespero dos japoneses: no dia que chamei o chefe pelo primeiro nome, ao que logo o ar do restaurante acabou totalmente e todos os colegas de trabalho presentes ficaram no vácuo, sem poder respirar por quase um minuto; ou quando esqueci de entrar minhas férias recentes de verão  no sistema da empresa (3 dias apenas 😥) e um desespero enorme de chefe+secretária por algo tão diminuto me fez pensar:
"- Porque essa reação tão desmedida: não é algo que tem solução fácil? Não basta apenas entrar no sistema e corrigir isso?", disse aos dois.
Interessante que essa maneira diferente de (re)agir diante de coisas diminutas: senti meu catastrofismo ali, e como é algo irracional que parece nos tomar a visão das coisas, tingindo o mundo de névoa e cinzas. Foi um momento de perceber os outros, e me perceber também por contraste: são reações diferentes a coisas um tanto parecidas.

Addendum, que bem poderia ser outro post: por sinal, o catastrofismo tem batido na porta por estes dias: ouvi a palavra "Dezembro" por estes dias e me angustiei. "Pqp, e esses empregos?" Não tem um dia em que não envie ao menos 4 currículos/resumes para empresas. Visões horríveis de mim mesmo aqui por mais tempo me assustam, me fazem perder o sono. Diante do catastrofismo que me anula, momentos de sobriedade me fazem voltar à estaca zero e repensar em tudo. Não, não: não questiono minha decisão de sair daqui ou da academia, isso está decidido. Me questiono se estou fazendo essas aplicações corretamente: será que não é hora de mudar algo? Reescrever algo? Recriar?

Sabe-se lá como (provavelmente sites de empregos/networking) meu resume foi parar nas mãos de uma empresa de "resume writing", e... (segundo eles) meu portfólio diz um pouco de tudo isso que sou: me deprecio um pouco, sou catastrófico, digo menos do que sou... curioso, não? Mais curioso ainda é imaginar que, enquanto viajava, um rapaz da minha idade me perguntou na mesa do café do hostel (oque você faz) e disse "matemático"... e quando perguntei sobre ele ele me disse "truck driver". Me senti desconfortável... não sei, o contraste era tão gritante que pareciam dois universos distintos... não soube muito bem lidar com aquilo na hora. Fiz uma pergunta ou outra, o rapaz também ficou em silêncio... será que ele também achou a conversa "awkward"? Esse encontro entre dois mundos, assim como o meu catastrofismo com o desespero dos japoneses com os quais trabalho... me perguntei se haveria juízo de valor naquele instante, dos dois lados: "será que, inconscientemente, julgamos e damos valor/prestígio às coisas sem nem mesmo perceber?" Éééé pessoal..ninguém está livre disso,... me senti awkward, estranho, ou culpado (como um 'cristão'?) ". Em todo caso, sempre se há espaço pra crescer, mudar, e desapegar de medos, idéias e fórmulas, por que sim, a maneira como reagimos diante dos problemas do mundo são fórmulas que aprendemos enquanto crescemos, e as aplicamos sem mesmo nos darmos conta de que o fazemos.

Bom... vou lá mudar algumas coisas.... e seguir adiante.

sábado, 28 de setembro de 2019

Direto da Terra do Sol Nascente #65: viajar e voltar pra casa

Estou de volta!!! Doente, mas de volta! 

Cheguei ontem e já fui direto pro trabalho. Meio com gripe, mas tudo bem. Ao longo do dia no entanto a gripe foi piorando e piorando. Deu 5 da tarde e eu estava no bico do corvo: cheguei em casa e fui direto pra cama, com febre, sem fome nem nada. Acordei várias vezes no meio da noite suado, febril, com a cabeça confusa. Levantei hoje cedo, o corpo doendo todo como se tivesse apanhado. Será que comi algo estranho?

Viajar,seu perrengues, voltar. Foi uma boa viagem, um bom momento para se ficar sozinho, esquecer de Whatsapp e da solidão enquanto no Japão, esquecer também sobre procurar emprego, sobre o atual emprego + annoying boss etc. Nestes dias passei muito, muito tempo sozinho (mas não em solidão, acredite-me), conheci pessoas legais também, vi mais uma vez o quão engraçado é interagir com pessoas mais novas, e como eu carrego minhas manias comigo, onde quer que vá.

Lembro-me de uma amiga que tem um hostel dizer uma vez que não tinha mais a menor paciência em conversar com os viajantes que ficavam no hostel dela. Eu bem entendo: o assunto viagem e lugares era onipresente em conversas, embora todos ali estavam viajando de um lugar pra outro, com meses ou semanas a mais ou a menos na estrada. Não conseguia me interessar muito, não via nada de novo nisso: contanto que pague e tenha tempo, você vai. Achei esse pensamento um pouco rabugento, e não o dividi com ninguém ao longo da viagem: talvez soasse hostil da minha parte dizer isso. Claro, queremos nos diferenciar dos outros de alguma maneira, nos sentirmos únicos por algo que fizemos. Será que só o fato de irmos (a uma viagem dessas) já nos diferencia dos outros? Não sei... acho que não.... talvez esta tenha sido a parte da viagem que me deixou mais confuso: por mais que eu estivesse ali, estava cercado por muita gente que considerava agradável, mas na sua grande maioria desinteressante. 

Apesar de tudo, houveram pontos altos, um momento em que senti honestidade e vulnerabilidade nos outros, algo que dificilmente vem à superfície nestas ocasiões: sentei com várias pessoas que estavam no mesmo hostel num bar, de onde brotou um paralelo entre nossas vidas. Uma senhora da Alemanha contou sobre o quase nervous breakdown que a levou a viajar pelo mundo depois de anos sem férias; a moça chinesa contou sobre a pressão familiar em ter que arrumar um emprego público quando na verdade ela queria fazer outra coisa (e o fez, no fim das contas); a moça da França contou como é morar perto dos pais, ter seus amigos de infância por perto, e ter saído de casa recentemente; eu, falando sobre voltar ao Brasil e me sentir um estrangeiro, por mais que goste de lá (algo que a alemã também falou sobre). Todos humanos, cada um com uma dor diferente, mas que de certa forma são universais. Viajar talvez seja isso: debaixo da superficialidade do ir pra ver algo,  do ficar ouvindo de outros viajantes milhares de histórias sobre lugares exóticos que você nunca pensou em visitar, há a possibilidade de uns 5 minutos onde as pessoas se mostram mais a fundo.

Outra coisa interessante foi ver a urbanização de Bangkok, que não acredito ter visto em lugar algum do mundo: um formigueiro que me lembra um pouco a Lapa no Rio, sem a violência e perigo desta última. Mais curioso foi sentir minha aversão inicial a cidade, que se transmutou em curiosidade e interesse ao longo de um dia de caminhada. Aprender a gostar de algo é realmente mágico :)  


No mais, entre escombros de um Raffaello que ainda se recumpera, sobrou este único desenho que fiz ao longo da viagem. 

quinta-feira, 19 de setembro de 2019

Sementes de confiança que germinam segurança: "The Narrow Road to the Deep North" (おくのほそ道)


"the utter silence ...
cutting through the very stone
a cicada’s rasp"

[おくのほそ道 (Oku no Hosomichi), "The Narrow Road to the Deep North" , por Matsuo Bashô]


Há algo doce e contrastante no começo de "Não identificado", logo antes da Gal Costa começar a cantar. "Eu vou fazer... uma canção pra ela"...

 [Não identificado, Gal costa]

...uma leve turbulência que segue um momento de calmaria e sossego: um som de algo que parece vir de uma vitrola velha.... que se transforma numa orquestra.. que logo abre pra uma voz mansa que se adentra  pelos ouvidos,  como uma brisa que entra pela janela e acaricia a pele. 

Tanta coisa pra se escrever... só oque discuti no post anterior - sobre arrogância e egoísmo - já renderia um monte de assunto. Mas não posso deixar de ser honesto comigo mesmo e discutir oque vivo, oque sinto. Escrevo sobre tudo, escrevo sobre a busca de emprego, sobre a vida no Japão... e, como nesse mesmo começo caótico da música da Gal, pareço caminhar pelo contraste de caos e doçura que viver em geral é: algo desforme, águas onde navegamos muitas vezes sem saber pra onde.

Uma delas vem de coisas inexplicáveis. Como há alguns dias, quando sonhei com minha ex. Looongo sonho, cheio de conversa. Talvez porque a vi numa foto em rede social, depois de meses sem saber dela: mais magrinha, mas sorrindo. Encheu meus olhos de lágrima - entre dor e felicidade - em imaginá-la feliz e bem, mesmo que longe. No sonho, falavamos ao telefone: eu sondava a reação dela para ouvir alguma risada. Das muitas coisas que me faz falta, a risada é realmente uma delas:  no sonho eu ouvia a voz  calma, a respiração, e aguardava por qualquer sinal de riso, como alguém que tenta avistar vagalumes num campo escuro. Curioso, né? Agora pensando, talvez seja minha maneira de ler melhor as pessoas: quando elas riem. Como se fosse o mapa que melhor entendo, olho pras cores e topografia, e me deleito seguindo rios de risos como se conhecesse a melhor foz para eles desaguarem.

Logo mais vai fazer um ano que nos separamos. UM ANO!!! E, apesar de tudo, ainda penso nela. Claro, também penso nos desentendimentos, e no que deu errado, em onde foi que deixamos o barco afundar perto do fim; várias discussões e palavras deixaram cicatrizes, nela também (possivelmente). Mas hoje... um ano depois... consigo ver que a relação não era só isso: era muito mais, na verdade. Tenho saudades da risada, da confiança, do "no playing games"....  tenho saudade de ter medo de nadar em mar aberto e saber que ela estava ali perto, nadando silenciosa ao meu lado, pronta pra me proteger de qualquer monstro marinho que pudesse aparecer a qualquer minuto pra me arrastar para o fundo do mar: inclusive os terriveis monstros marinhos que realmente vejo com meus olhos míopes, pra logo descobrir que se tratavam de nada mais nada menos que de uma pedra, ou de uma bóia, ou da minha pura imaginação. A presença, o riso, o silêncio... tudo isso me passava a confiança de que, por mais caótico e desordenadas que minhas braçadas fossem, não vencia ondas sozinho. 

Mas como nasce essa confiança no outro: tempo?... palavras?...conversas?

Confiança é uma construção... algo que leva tempo... na última saída para escalar senti um pouco isso. Escalo fora raramente, e realmente não acho que gosto muito: há  um certo tipo de risco, um certo tipo de exposicao ao perigo, que abomino e me desconforta. Me assusta.... e o susto, o medo, nao me movem muito, não é essa a parte que me deixa curioso. É seguro, ma non troppo. No entanto, meus amigos ali, me dizendo a cada sinal em que eu gritava lá do alto 

"-I'm not sure if I'll try... I'm a bit scared." 

Aí vinha a resposta lá de baixa, perdida entre silêncio e cigarras,  de quem fazia o meu belay, mas que  nem parecia relacionada aos meus anseios:

"-No worries, you are safe... I'll catch you if you fall".

Incrível como isso, algo tão, mas tão pequeno, teve um impacto; foi a primeira vez que realmente consegui escalar bem fora, e também a primeira vez que consegui entender oque rola numa escalada na pedra: os pequenos incrementos, a "leitura da parede", aquele 1 a 1, você e rocha... que pareceu vir somente quando a confiança estava por perto. Certamente, uso a palavra confiança, mas vejo que as implicações desta é que me impactaram:, pois confiança gera segurança...e em terreno mais firme raízes podem ir mais fundo, e árvores crescerem mais alto. 

Acho que é isso.. não há veredito quanto a nada disso, são sentimentos que vem, visitam, enquanto eu tento seguir meu caminho e procurar uma ponte fora daqui. Neste meio tempo, ter contato com a natureza, me proporcionar calma e descanso é tudo oque preciso. Meus dias aqui parecem mais contados ainda, ainda mais agora com o fim do meu último projeto. Viajo na semana que vem pra celebrar esse fim de ciclo: oque era pra marcar o fim dele, vai servir pra me recompensar e dar energia pra continuar minha busca.

Em tempo: o nome de uma das vias que escalei com meus amigos é o mesmo do poema do Bashô que abre o post. A verdade a parte que mais gosto é logo antes do haiku, quando ele diz 

"The quiet and lonely beauty of the place seemed to purify our hearts"

Realmente, tudo oque eu preciso neste momento, e espero encontrar em Siem Reap por uns dias.

segunda-feira, 16 de setembro de 2019

Dois constrangimentos para os leitores, em poucas palavras

[Faz tempo que penso em escrever sobre o assunto de hoje, já que se tratao de elaborações antigas]
[Esse post me constrange um pouco... porque fala de coisas em mim que não gosto muito. No entanto, acredito que falar sobre é a melhor forma de elaborá-los, e descobrir o quanto eles são realmente parte de mim. ]

Ao longo do processo de crescermos, trabalharmos em conjunto, encontrarmos parceiros (de trabalho, de vida, oque seja), acabamos por ter que lidar com o seguinte fato não agradável: a gente vai ouvir coisas que não gostaria de ouvir, em especial críticas duras. Em se estando aberto a elas, pode-se crescer. No meu caso, acabei descobrindo duas coisas: pelo (ex) namoro, que sou um tanto egoísta... e pelo trabalho, que sou um pouco arrogante.

Mas em que medida?

Demorou muito para eu fazer essa pergunta. Por um bom tempo depois de eventos em que percebi isso me senti muito mal, demorei pra me "aceitar", ou aceitar que as críticas poderiam mudar, que eu não era/sou um ser estático. Ser egoísta é ruim? Sim, mas às vezes não. Ser arrogante é ruim? Em geral sim, mas pode te proteger de alguns perrengues. Claro, não descrevo os termos acima do ponto de vista mais óbvio: não sou um egoísta de não querer dividir nada, de achar que 2 são meus e 1 é teu. É algo mais sutil, que em geral vinha em momentos de discussão, mas pelos quais eu estava tão grato em ver que eu me colocaca minhas vontades acima da do outro que...no fim ali só parecia haver espaço para eu mesmo, e para minhas vontades. Um exemplo, bem leve: quando pedalo com mais gente eu em geral saio como um maníaco, indo o mais rápido que posso. Aí chego lá na frente, e paro, olhando pra trás à espera dos que ficaram (e, de certa forma, os apressando). Demorou para eu entender do que se tratava, quando veio a primeira bronca. 

É gostoso ouvir alguém ralhando com a gente? Não, definitivamente não é. E curioso, já que às vezes os sentimentos que nos visitam são na verdade ecos de outros sentimentos que já nos visitaram antes: esses momentos de puxão de orelha me trazem uma vergonha gigantesca, uma vergonha muito parecida com aquela com a qual encarei o diretor do meu colégio quando cometi meu primeiro delito (descrito em detalhes neste post de 2010!!)

Arrááá!!! Você deve pensar que isso então é uma patologia reiterada no tempo, com reflexos profundo-neurofreudianos densos que repercutem no meu eu adulto e que há de persistir ad eternum no meu ser...  não, não é bem por aí. Não acredito que seja um sinal de que nunca irei mudar, ou coisa do tipo. Várias coisas influenciam esses momentos em que acabo exacerbando esses traços: estresse, sono (ou falta de), etc. É apenas um sinal que, como no processo de "mindfulness" que citei no post anterior, às vezes precisamos voltar (ou ser trazidos de volta por alguém) ao contato com nós mesmos, nos conectarmos com os outros e "percebermos" que eles também estão ali. É nessas horas que a gente olha, abaixa a cabeça (se envergonha), e aprende.

"-Então não vai acontecer de novo, Rafaello?" Não sei, mas estarmos mais conscientes de que pode acontecer, nos faz estarmos mais alertas e, na melhor das hipóteses, mais presentes. E acima de tudo, reverberando um pouco o conteúdo do post anterior, nos torna mais gratos! No fim, errar é só mais um aspecto da nossa humanidade.

Quanto à arrogância... poutz... é algo que percebo há tempos...quando me impaciento com alguém que trabalha comigo e acho que a pessoa está me enrolando (ou enrolando todo mundo). Em geral minha reação é a de virar e falar algo, ou tentar sair de perto. Quantas vezes não me segurei pra dizer "- Você deveria melhorar teu inglês... ninguém vai te dar atenção quando você for dar palestras fora daqui", ou coisas do tipo? Inúmeras!!! Por estes dias fui chamado pra colocar uns "pingos nos is" em um trabalho que fiz na época do doutorado, com orientador e um outro irmão acadêmico. Rolou uma reunião no skype, pra qual fui sem a menor vontade (ok, às 7:30am eu nunca teria vontade mesmo que fosse algo que me interessasse... hehe ao menos vi as montanhas de Utah ao fundo). Na hora me deparei com coisas que escrevera há anos atrás, e vi o quão belicoso eu era "-Fulano de tal está errado, e nosso trabalho mostra que eles pisaram na jaca, porque pisaram na jaca, e como pode-se evitar ..." Ou os olhares assustados dos colegas físicos durante as palestras, que morrem de medo das minhas perguntas (os japoneses então, que têm pouca habilidade com público,  ficam super perdidos). Por essas e outras eu consigo perceber quando colocar um freio, parar, e não dizer nada: palavras podem machucar os outros, há de se ter bom senso. Nem tudo que se pensa deve ser dito.

[Estou terminando um outro post meio longo]
[Vou tentar postá-lo antes de viajar na sexta]

domingo, 15 de setembro de 2019

As águas ralas e refrescantes... de ser você mesmo

Nunca perguntei isso pra ninguém, mas suponho que muita gente tem/"sofre" disso: andando na rua ou fazendo qualquer coisa, começo a pensar na minha vida como uma outra pessoa... um malabarista que viaja o mundo cuspindo fogo, ou como um violonista de flamenco fantástico, endoidecendo multidões e tocando por noites adentro com dançarinas e dançarinos de flamenco rodopiando e martelando o chão com suas pontadas de pé....


... até que nesse estado de torpor, regresso a mim mesmo e penso: "qual é....porque estou fazendo isso comigo mesmo?.....porque ficar me imaginando ser alguém que não sou? Qual é o problema em ser eu mesmo?"

Aí entro nesse redemoinho de começar a pensar se há algo na minha vida que me insatisfaz. E claro, sigo meus pensamento e não demoro muito em virar a esquina pra me deparar com um beco sem saída: há sim, diversas coisas que parecem me afligir e que gostaria que fossem diferentes.

É interessante pensar que, algumas vezes, essa "busca" por um novo caminho começa com esse processo a meu ver totalmente desconstrutivo e de auto-desmerecimento, em que reduzo minha existência a migalhas e fico em delírios imaginando que sou uma outra coisa: um domador de elefantes, um violonista de flamenco, um nadador de rios de longa distância... até que, a consciência, na verdade algo mais próximo de "mindfulness", me traz de volta e me diz que não, não é por aí. Cada uma dessas outras existências não é muito diferente da tua, com sofrimentos, alegrias, dificuldades... viver e ver a vida como uma delas só me daria uma perspectiva diferente das diversas coisas que esta vida (a minha) já me proporciona. 

No fim dessa estrada, láááá no fim, depois de muita terra batida, porteiras puladas, rios atravessados, chego sem fôlego e de joelhos a um riacho de gratidão, que mesmo com uma água fina e rala, se esforça em matar minha sede.


sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Direto da Terra do Sol Nascente #64: despedidas


 [Heraldo do Monte, Lágrima Nordestina]
[222]Como nos dias em que a trovoada se prepara e os ruídos da rua falam alto com uma voz solitária.A rua franziu-se de luz intensa e pálida, e o negrume baço tremeu, de leste a oeste do mundo, com um estrondo feito de escangalhamentos ecoantes… A tristeza dura da chuva bruta piorou o ar negro de intensidade feia. Frio, morno, quente — tudo ao mesmo tempo —, o ar em toda a parte era errado. E, a seguir, pela ampla sala uma cunha de luz metálica abriu brecha nos repousos dos corpos humanos, e, com o sobressalto gelado, um pedregulho de som bateu em toda a parte, esfacelando-se com silêncio duro. O som da chuva diminui como uma voz de menos peso. O ruído das ruas diminui angustiantemente. Nova luz, de um amarelado rápido, tolda o negrume surdo, mas houve agora uma respiração possível antes que o punho do som trêmulo ecoasse súbito doutro ponto; como uma despedida zangada, a trovoada começava a aqui não estar com um sussurro arrastado e findo, sem luz na luz que aumentava, o tremor da trovoada acalmava nos largos longes — rodava em Almada…Uma súbita luz formidável estilhaçou-se. Tudo estacou. Os corações pararam um momento. Todos são pessoas muito sensíveis. O silêncio aterra como se houvera morte. O som da chuva que aumenta alivia como lágrimas de tudo. Há chumbo.

[Fernando Pessoa, o livro do desassossego] 

Recentemente me veio à memória a lembrança dos heterônimos de Fernando Pessoa, desses muitos homens que são apenas um: o bucólico, o que trabalha numa repartição pública e não gosta do chefe, outros, e mais outros. Me vi e vejo da mesma forma, eu e meus heterônimos, sofrendo, sorrindo e buscando viver a vida de diversas formas distintas. Ou heterônimos que se vêem afrontados pelas questões do dia à dia de maneira diferentes: a depender do dia, levanto da cama em desencanto, em desespero, ou sereno e leve, confiante no futuro que se desvela adiante de mim como pesadas cortinas de um teatro. 

Olho pras ruas e coisas ao meu redor e tento procurar um sinal de que meus dias se findam em busca de outros rumos e  formas. Essa semana duas pessoas que conheço  daqui se foram ou se preparam para ir: um, um "amigo"/colega que trabalha num café, fazendo as malas para ir pra Espanha por um ano; o outro, o senhor que me convidou pra vir pro Japão, que se aposentará em breve.

Esses momentos de dizer tchau pra mim são estranhos... às vezes os encaro assim: como sinais de que o meu momento de ir embora também se encontra próximo. O lugar naturalmente vai deixando de fazer sentido, as ligações com os que estão ao redor vão escasseando, escasseando, até que... PUFF! você acha um motivo que te tira dali e nada no presente te impede: o lugar já te diz pouco ou quase nada!

Há a possibilidade de não ser o caso, mas desacredito: você vê os outros fazendo as malas.. de certa forma vai fazendo as suas também. Oque me traz à mente a impressão/fato de que, ao fim, me surpreendo ao ver que construí uma cidade nesses dois anos: uma pequena vida nesse lugar, e então vislumbro minhas malas prontas para (re)começar em algum outro ponto desse mundo. E veja que não é orgulho que me enche o peito ao dizer isso: muito pelo contrário, é o simples reconhecimento do quão difícil se construir novas relações, o quão complexo se é explorar e criar conforto/casa, e morrer de saudades daquilo que se deixou pra trás.

Curioso, que me repito pela milionésima vez falando e tergiversando sobre o mesmo assunto.... vai ver é minha grande virtude e meu grande defeito: a repetição. Talvez só tenha aberto os olhos pro lado negativo disso no último namoro: repetir pode ser ruim, pode machucar os outros... algo que, de certa forma, meus colegas de escola me apontaram algumas vezes, ou outros namoros anteriores também tentaram me dizer. É a tênue linha, um chiaroscuro onipresente que nos permite ver os dois lados das coisas, e o quanto um esconde, e ao mesmo tempo ressalto, o outro: a mesma repetição que aflige é a mesma que aperfeiçoa e dilapida minha admiração por coisas e pessoas, me faz amar um amor de mil formas diferentes, ou amar a mesma mulher com diferentes matizes, em diferentes momentos, em diferentes detalhes que surgem com o passar do tempo, como uma duna que se forma com grãos de areia em uma ampulheta e que sóo passar do tempo há de trazer à vista. Esse é o aspecto mais interessante de coisas longevas: só o tempo, o "marasmo", pode nos dar oferecer o pecado da repetição, de sofrer com a mesmice, e ao mesmo tempo nos ofertar o luxo, a possibilidade, de nos reinventarmos, criando e crescendo mais uma vez de cinzas. 

Addendum: fui fazer uma pesquisa no blog, porque essse sentimento de "despedida+sentir que também me vou" não me é de maneira nenhuma novo. Acabei por encontrar um post sobre a mini-apple, muito interessante, que eu chamei à época de "anticlandestineápolis". E encontre esse outro, que não é exatamente sobre se dar tchau de um local, mas sobre a dor de se estar longe e se sentir atado (bem bonito, por sinal). 

segunda-feira, 2 de setembro de 2019

Direto da Terra do Sol Nascente #63: mudando a estratégia

Acho até que mencionei esse termo antes, de Prometeu, preso a uma rocha enquanto uma águia se alimenta de suas entranhas, que se regeneram e perpetuam esse ciclo infinito. Incrível como meus dias aqui me vem à mente como uma imagem parecida: a angústia de querer sair, o esforço em fazer coisas para sair, mas para isso ter que estar presente e fazer um bom trabalho, que mais parece me deixar mais e mais preso a este lugar. 

Talvez a única vez que em me senti assim foi quando estava no doutorado. Do meio pro final, naqueles finais de semana que pareciam se estender infinitamente no tempo,  viver dividido entre o gostar do que se faz e a angústia de estar ali. 

A situação aqui não é muito diferente.

Mais foco em semear, em plantar, ter estratégia.... e paciência.