sexta-feira, 6 de setembro de 2019

Direto da Terra do Sol Nascente #64: despedidas


 [Heraldo do Monte, Lágrima Nordestina]
[222]Como nos dias em que a trovoada se prepara e os ruídos da rua falam alto com uma voz solitária.A rua franziu-se de luz intensa e pálida, e o negrume baço tremeu, de leste a oeste do mundo, com um estrondo feito de escangalhamentos ecoantes… A tristeza dura da chuva bruta piorou o ar negro de intensidade feia. Frio, morno, quente — tudo ao mesmo tempo —, o ar em toda a parte era errado. E, a seguir, pela ampla sala uma cunha de luz metálica abriu brecha nos repousos dos corpos humanos, e, com o sobressalto gelado, um pedregulho de som bateu em toda a parte, esfacelando-se com silêncio duro. O som da chuva diminui como uma voz de menos peso. O ruído das ruas diminui angustiantemente. Nova luz, de um amarelado rápido, tolda o negrume surdo, mas houve agora uma respiração possível antes que o punho do som trêmulo ecoasse súbito doutro ponto; como uma despedida zangada, a trovoada começava a aqui não estar com um sussurro arrastado e findo, sem luz na luz que aumentava, o tremor da trovoada acalmava nos largos longes — rodava em Almada…Uma súbita luz formidável estilhaçou-se. Tudo estacou. Os corações pararam um momento. Todos são pessoas muito sensíveis. O silêncio aterra como se houvera morte. O som da chuva que aumenta alivia como lágrimas de tudo. Há chumbo.

[Fernando Pessoa, o livro do desassossego] 

Recentemente me veio à memória a lembrança dos heterônimos de Fernando Pessoa, desses muitos homens que são apenas um: o bucólico, o que trabalha numa repartição pública e não gosta do chefe, outros, e mais outros. Me vi e vejo da mesma forma, eu e meus heterônimos, sofrendo, sorrindo e buscando viver a vida de diversas formas distintas. Ou heterônimos que se vêem afrontados pelas questões do dia à dia de maneira diferentes: a depender do dia, levanto da cama em desencanto, em desespero, ou sereno e leve, confiante no futuro que se desvela adiante de mim como pesadas cortinas de um teatro. 

Olho pras ruas e coisas ao meu redor e tento procurar um sinal de que meus dias se findam em busca de outros rumos e  formas. Essa semana duas pessoas que conheço  daqui se foram ou se preparam para ir: um, um "amigo"/colega que trabalha num café, fazendo as malas para ir pra Espanha por um ano; o outro, o senhor que me convidou pra vir pro Japão, que se aposentará em breve.

Esses momentos de dizer tchau pra mim são estranhos... às vezes os encaro assim: como sinais de que o meu momento de ir embora também se encontra próximo. O lugar naturalmente vai deixando de fazer sentido, as ligações com os que estão ao redor vão escasseando, escasseando, até que... PUFF! você acha um motivo que te tira dali e nada no presente te impede: o lugar já te diz pouco ou quase nada!

Há a possibilidade de não ser o caso, mas desacredito: você vê os outros fazendo as malas.. de certa forma vai fazendo as suas também. Oque me traz à mente a impressão/fato de que, ao fim, me surpreendo ao ver que construí uma cidade nesses dois anos: uma pequena vida nesse lugar, e então vislumbro minhas malas prontas para (re)começar em algum outro ponto desse mundo. E veja que não é orgulho que me enche o peito ao dizer isso: muito pelo contrário, é o simples reconhecimento do quão difícil se construir novas relações, o quão complexo se é explorar e criar conforto/casa, e morrer de saudades daquilo que se deixou pra trás.

Curioso, que me repito pela milionésima vez falando e tergiversando sobre o mesmo assunto.... vai ver é minha grande virtude e meu grande defeito: a repetição. Talvez só tenha aberto os olhos pro lado negativo disso no último namoro: repetir pode ser ruim, pode machucar os outros... algo que, de certa forma, meus colegas de escola me apontaram algumas vezes, ou outros namoros anteriores também tentaram me dizer. É a tênue linha, um chiaroscuro onipresente que nos permite ver os dois lados das coisas, e o quanto um esconde, e ao mesmo tempo ressalto, o outro: a mesma repetição que aflige é a mesma que aperfeiçoa e dilapida minha admiração por coisas e pessoas, me faz amar um amor de mil formas diferentes, ou amar a mesma mulher com diferentes matizes, em diferentes momentos, em diferentes detalhes que surgem com o passar do tempo, como uma duna que se forma com grãos de areia em uma ampulheta e que sóo passar do tempo há de trazer à vista. Esse é o aspecto mais interessante de coisas longevas: só o tempo, o "marasmo", pode nos dar oferecer o pecado da repetição, de sofrer com a mesmice, e ao mesmo tempo nos ofertar o luxo, a possibilidade, de nos reinventarmos, criando e crescendo mais uma vez de cinzas. 

Addendum: fui fazer uma pesquisa no blog, porque essse sentimento de "despedida+sentir que também me vou" não me é de maneira nenhuma novo. Acabei por encontrar um post sobre a mini-apple, muito interessante, que eu chamei à época de "anticlandestineápolis". E encontre esse outro, que não é exatamente sobre se dar tchau de um local, mas sobre a dor de se estar longe e se sentir atado (bem bonito, por sinal). 

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