Há anos atrás aconteceu algo inusitado no Brasil: logo no final do ano, uma emissora de TV colocou em suas vinhetas natalinas pessoas em suas roupas de trabalho desejando feliz natal para os expectadores. Uma dessas vinhetas, com lixeiros desejando feliz natal, foi ao ar antes de um telejornal diário, e sem saber que o áudio estava vazando para os ouvintes, o apresentador do programa começou a esculhambar a vinheta e os lixeiros nela, dizendo que eram os seres mais baixos na sociedade etc etc
Claro, o público caiu em cima, e o apresentador se retratou (não sei se fez mais que isso, ou se realmente pensou no peso do que havia dito).
Na mesma época, o Chico Buarque apareceu num trecho de um de seus DVDs falando sobre uma babá que trabalhava na casa dele:
Os dois casos vieram à tona há um tempo já, e ficaram na minha cabeça ali no final do doutorado começo do pós doc, quando estava numa baita crise quanto ao que fazia: sentia que precisava voltar às origens, a colocar a mão em algo, ver algo acontecendo, sendo criado. E interessante que, pra mim, havia um grande valor em alcançar o palpável, ausente de abstrações matemáticas, diametralmente oposto à minha pesquisa na época, que ia daquele jeito, pesquisa de um pós-graduando inseguro e assustado ("-Será que conseguirei criar algo? Entender algo?", era uma pergunta que me fazia reiteradas vezes). Ao encontrar o motorista de caminhão durante a viagem recente, senti dentro de mim mesmo o contraste que vivia ao fim do doutorado: o contraste entre o homem que eu era, que trabalhava a cabeça, e o homem que eu gostaria de ser naquele momento, trabalhando com as mãos0 .
Foi uma época bem estranha, em que ter uma tese, um paper, parecia brincar de bolha de sabão: não conseguia sentir nada em minhas mãos (curiosamente, dizia bastante em terapia sobre sentir os braços fracos). Esse encontro durante a viagem foi um pouco isso: eu me ver diante de mim mesmo mais uma vez, e essa pergunta " -Oque tenho nas mãos? Oque eu realmente faço pro mundo? Oque posso oferecer pros outros?"
Ao que parece, no entanto, eu fiquei desajustado diante do desconforto do rapaz, que ficou nitidamente em choque diante do contraste entre esses dois mundos (embora muita gente fique). Mas me perguntei na hora: será que reagimos assim por conta de prestígio social que, sem nem percebermos, invade a forma como vemos um o outro? Será que ele me achou um esnobe arrogante simplesmente por ser um homem que não trabalho criando nada, que não trabalha com as mãos?
Foi uma época bem estranha, em que ter uma tese, um paper, parecia brincar de bolha de sabão: não conseguia sentir nada em minhas mãos (curiosamente, dizia bastante em terapia sobre sentir os braços fracos). Esse encontro durante a viagem foi um pouco isso: eu me ver diante de mim mesmo mais uma vez, e essa pergunta " -Oque tenho nas mãos? Oque eu realmente faço pro mundo? Oque posso oferecer pros outros?"
Ao que parece, no entanto, eu fiquei desajustado diante do desconforto do rapaz, que ficou nitidamente em choque diante do contraste entre esses dois mundos (embora muita gente fique). Mas me perguntei na hora: será que reagimos assim por conta de prestígio social que, sem nem percebermos, invade a forma como vemos um o outro? Será que ele me achou um esnobe arrogante simplesmente por ser um homem que não trabalho criando nada, que não trabalha com as mãos?
É raro falarmos sobre isso: relação de status social de profissões é algo histórico que perdura há gerações. Nobres nunca trabalhavam, e a nobreza portuguesa então, que há pouco mais de 100 anos ainda mostrava suas penas à alta sociedade brasileira, era das mais preguiçosas possíveis. Isso sem falar na escravidão, que o Brasil foi o último país do planeta a extinguir. Em resumo: nós brasileiros nascemos num berço de mau-exemplos, onde o trabalho de mãos estava concentrado nas mãos dos menos favorecidos.
E então voltemos a mim. Sempre achei um pouco estranho esse trabalho sem as mãos, que só sei e sinto que é trabalho por que me cansa (sim, cansa muito). Lido bem com esses contatos entre mundos díspares: com marceneiros, construtores e artistas em geral eu sempre consigo encontrar analogias óbvias entre oque fazem e oque faço. Mas no caso recente... fui pego de surpresa com a reação do rapaz, e me vi sem analogias quaisquer nas mangas: parecíamos sim dois seres que se avistam pela primeira vez numa manhã escura e, por mais que se pareçam, são ainda estranhos. Ainda assim, mesmo diante dessa barreira, desse "oque será que tem do outro lado?", tentei puxar conversa e encontrar alguma similaridade. Mas não rolou: o rapaz (italiano) não se fez muito interessado em mim, ou no que tinha a dizer. Ou ficou estarrecido mesmo.... talvez eu ficasse assim se encontrasse um youtuber, ou um influenciador digital (uma amiga encontrou um uma vez, disse que não sabia muito bem oque pensar).
Terminado o café da manhã na mesa comunal, seguimos cada um pra tuk-tuk1 diferente, para seguir viagem pro mesmo nascer-do-sol em Angkor Wat, um longe da vista um do outro.2
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1 Se você não sabe oque é um tuk-tuk, é como nesse vídeo.↩
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