quarta-feira, 25 de dezembro de 2019

Pessoas #3: a imagem no espelho

Uma coisa que adoro ver em animais é como eles não tem muita idéia de si mesmos: um cachorro enorme que se aflige diante de um cachorro diminuto que late para ele, um cachorro gigante que senta no seu dono sem se dar conta de quão pesado é etc. Essa auto-consciência em falta, curiosa e onipresente, que vemos em todos esses bichos, e também vemos em nós mesmos, humanos. 

Algo que sempre me fascinou e assustou é como algumas pessoas têm uma imagem extremamente distorcidas de si mesmas: a pessoa linda que se acha feia, a pessoa inteligente que se acha incapaz etc. Me lembra um pouco o final do Wizard of Oz (que li e assisti recentemente), onde tudo oque eles - espantalho, Dorothy, leão e homem de lata - procuravam estava ali com eles desde sempre, mas os mesmos não conseguiam ver.  

Ok, só citei coisas acima que são negativas, ou um pouco negativas, mas esta visão deturpada que podemos ter de nós mesmos é algo bem mais geral e, como num espectro, ir do leve ao extremo. Eu tenho isso, você leitor provavelmente tem também...e muita gente nem se dá conta. E diante disso, me pergunto: já que distorcemos, como fazer para se ter uma opinião mais justa quanto a nós mesmos? Como olhar, analisar e conseguir intervir de maneira a melhorar as coisas quando oque se vê é só uma visão embaçada da realidade? 

segunda-feira, 23 de dezembro de 2019

Pessoas #2: scattering/espalhamento de coisas

Uma das coisas que observo bastante em pessoas é como elas se espalham pelos ambientes em que estão: primeito entra pela porta da casa, deixa as chaves em cima da mesa, tira os sapatos perto da porta, coloca a mochila na sala, tira o cachecol de qualquer maneira e o joga na cama etc. Algumas pessoas são mais concisas: deixam tudo num cantinho, arrumadinho, com dispersão quase zero.  Outras se espalham por temas: roupas são todas jogadas em cima da cama,  coisas correlacionadas ao trabalho vão todas de volta à mochila etc.

Como partículas que se espalham diferentemente ao se colidirem umas com as outras, cada pessoa se espalha de alguma maneira quando lhes é dada uma chance: ao chegar do trabalho, o chegar no trabalho, ao se chegar na casa de alguém ou a algum lugar.

Acho que isso só comecei a reparar nisso quando tive roommates. Uma delas tinha o quarto tão, mas tão bagunçado, que era quase desfuncional. Um belo dia, quando tive que usar o computador dela, vi o desktop da mesma, cheio de arquivos e pastas fora de ordem, "in disarray", e pensei: não poderia ser diferente... será que o cérebro dela se organizava assim? Fica me perguntando.... como uma rede elétrica dessas que se vê em alguns lugares, cheias de "gatos", fios e cabos arranjados de qualquer forma, mas onde a energia passa e chega onde quer, de alguma maneira.



quarta-feira, 18 de dezembro de 2019

Pessoas #1: do risco e suas muitas formas

Hoje aconteceu algo interessante. Besta, mas interessante: estava a caminho de Tokyo, indo pra estação, ainda perto do trabalho. Meio apressado, não paro de olhar no relógio do celular de tempos em tempos. Numa dessas, tento atravessar a rua, mas a mala pesada impede meu avanço. 

Merda.

Coloco a mão no bolso em busca das horas. Do bolso sai o celular e uma moeda de 1 yen, que cai rodopia pelo ar, até cair na via. 

Olho. 

Penso em abaixar num impulso para pegar.

Penso novamente.

"- E se passar um carro?"

"- ...e se passar um carro e bater na minha cabeça?"

Sei que parece catastrófico, e até idiota. Mas não seria mais idiota ainda morrer por 1 centavo? 

Fico pensando no risco e na impulsividade das nossas ações. Sempre nos julgamos tão racionais e donos de qualquer reação, inclusive as impulsivas, aquelas que parece termos total controle sobre, mas das quais sabemos menos do que gostaríamos. Me pergunto como isso mudaria se fosse $10...ou $20... ou $100 caídos na via...ou numa via de metrô/ trem.... quão rápido isso me impulsionaria a arriscar minha vida sem considera que sim, poderia muito bem passar um carro na frente do qual, por impulso, eu coloquei minha cabeça na frente.

Bom... passou.... e eu vim pra Tokyo, com um centavo a menos no bolso (mas vivo).

Por estes dias fiquei me pergunto o quão justo é a sociedade recompensar as pessoas pelo risco que elas tomam. Claro, até pouco tempo atrás eu buscava uma vida alheia aos riscos do mundo, com uma casinha na beira do campus, uma família não rica, mas que poderia arcar com uma ou duas viagens por ano, indo pro trabalho de bicicleta, sem muito luxo, pesquisa, interesses intelectuais, risco zero, que-o-mundo-se-exploda-lá-fora-eu-tenho-distinção-do-que-é-certo-e errado-eu-e-meus-teoremas-volto-pra-casa-ao-final-do-dia-sem-risco.

Well.. a vida parece ter outros planos pra mim. E eu pra ela  hee hee

Por estes dias ganhei uma bela grana na bolsa.. coisa de em um dia tirar uns mil dólares. Fiquei impressionado. Com remorso. E repensando se era justo.

É justo? Eu não fiz porra nenhuma, só empreguei meu dinheiro ali. Mas.... seria isso o mesmo que abaixar pra pegar uma moeda?

Não... não é o caso. Primeiro que nem todos têm esse direito. Na verdade nem é um direito. Ter a oportunidade de ter um ganho desses é mais um privilégio do que qualquer outra coisa. Um moooonte de gente não tem acesso a essa informação, a esses meios de informação, ou à possibilidade de empregar recursos. Foi simplesmente um ato burguês: eu ganhei dinheiro sem pingar uma gota de suor. E não sei bem por que, mas o prazer não ... sei lá, bateu, mas não foi o bastante pra me ofuscar a vista.

É sabido em pesquisas que a partir de certa quantia de valores, de salário, a recompensa monetária já não se associa mais a prazer (há pesquisas sobre). Então por que ficarmos buscando mais, mais, e mais..?

Eu sei que o post ficou um pouco confuso, mas essas duas coisas me parecem tão duas faces de uma mesma moeda que não há como dissociá-las: o risco nos move, nos recompensa, e nos pune, por que não deixa de ser uma face da nossa ganância. 


sexta-feira, 13 de dezembro de 2019

"Ô moço!!!.... Moço!!... peraí que voce esqueceu tua cabeca na loja!!"

Ando tão desanuviado por estes tempos que me os dias me seguem estranhos: sindo por dentro,  que me esqueço de algo, que há algo que deixei de fazer, algo que estou em falta com algo, com alguém, com o mundo. Como um tubérculo que sabemos existir por debaixo da terra mas do qual não vemos folha a pedir sol, o esquecimento parece crescer por dentro de mim. 

O esquecimento, mais do que uma aflição, virou uma hostilidade: não há sossego, não há lugar que vá em que não sinta que sim, há algo que está faltando, que era para estar ali mas não está. E que claro: não sei exatamente oque é.

Será que esqueci uma panela no fogo? 
De pagar alguma conta?
Do aniversário de alguém?
De colocar uma vírgula num artigo?
De provar que a solução da equação era única?
De anexar o currículo?
De anexar o currículo e agradecer depois?
De dizer que gostava?
De dizer que não gostava?
De ligar?
De tentar ligar?
De ligar para poder dizer depois que liguei?

Me sufoca essa sensação. Acordo no meio da noite pensando
"-Oh my... acho que esq..." 
e nem termino a frase e já me esqueço de novo. 
"-Do que me esqueço mesmo?", me pergunto surpreso.

Noites, dias, indagações infindáveis que desvirtuam qualquer desejo por serenidade. 

Sorte minha que hoje me lembrei de escrever, sobre tanto esquecimento. Antes que viesse a esquecer, tudo de novo.

quarta-feira, 11 de dezembro de 2019

3 ponto 5, ou "um homem sentado sobre uma montanha de ouro num deserto"

Por estes dias fiz 35 anos, como falei no post anterior... ou no anterior do anterior. Que seja, não muda o fato ou a direção da seta do tempo: 35 anos. That's it. 

O aniversário em si foi super normal, como muitos aniversários que já passei: um dia como qualquer outro. Saí andando pela cidade e, diante de tantas perguntas de amigos sobre planos, idéias, saídas para comemorar, passava por um monte de gente e me perguntava "-porque que este dia há de ser um dia especial?"

Me pergunto oque há para ser comemorado e me sinto confuso. Estranho, estranho... guardo um dia que era pra ser "especial" dentro de mim, mas ele não me parece nada de mais. Mais estranho é esse contraste, em andar pela cidade como se guardasse um segredo que outros não sabem, como um homem sentado em ouro, sobre uma montanha de riquezas sem utilidade alguma, num deserto onde todos só pensam em água: de que me vale um dia especial se ele não pode ser compartilhado, ou se ele não tem exatamente valor algum? 

De certa forma isso me lembra o Chris Mccandless quando ele lê Tolstoi (acho) e percebe que toda aquela vida que ele levava, longe, distante, autosuficiente, não era o bastante: felicidade só é felicidade quando ela é compartilhada. Passei o dia pensando então oque eu compartilho com o mundo, com os que estão ao meu redor, que tipo de micro-felicidades compartilho com aqueles que me cercam: no dia de hoje, ou mesmo todos os dias. Fiquei na dúvida... não sei muito bem oque é que ofereço pro mundo, oque é esse propósito que alguns vêem em mim e que não acho ser nada, nada mesmo... ou muita coisa. 

Em suma: foi um aniversário tranquilo, calmo, reflexivo, e sereno. Vai ver os 35 são isso ....

[ps: pensei em chamar o post "um homem sentado sobre uma montanha de nióbio num deserto", mas achei que a alfinetada política não fosse durar muito longe no tempo :P]
[Bom... assim espero!!]

sexta-feira, 6 de dezembro de 2019

Direto da Terra do Sol Nascente # 79: quase lá....(ou "enquanto uns ficam mais velhos...")

Dá pra acreditar que, em alguns poucos dias, diria mesmo poucas horas, eu terei 35 anos.

35 aninhos!!!

Lembro até hoje de fazer piada com meus 25 anos, quando ficava pra cima e pra baixo ao longo daquele ano dizendo "tenho um quarto de século". Como uma criança chata e repetitiva, acho que apurrinhei muita gente  ao dizer isso... e apurrinhei a mim mesmo repetindo essas palavras tantas e tantas vezes.

Por fim, os 25 passaram, assim como diversos outros anos.

Os 35 talvez não vão me trazer nenhum deleite do tipo. Nem achava que fosse "aproveitá-los" por aqui, quando já me imaginaria neste momento no Canadá, Eua ou Inglaterra (ou Brasil! Vai saber pra que lado o barco vai?).

Enfim... vou parar de chorar as pitangas e me preparar pra celebrar (ou ao menos tentar) algo neste final de semana.

Ao menos, como um bom presente de aniversário, descobri que meu modelo funciona!!! Se tudo correr bem teremos um novo tipo de rede neural nascendo no mundo já no começo do ano que vem :)

terça-feira, 3 de dezembro de 2019

De grão em grão

Há umas duas semanas saí com tempo do meu escritório, e segui com calma até o consultório da minha terapeuta. Só pra descobrir depois que não tinha nenhuma consulta praquele dia: a consulta fora remarcada para outro dia (e havia me esquecido disso). 

Hoje, diferentemente, esqueci a consulta.

Acho que todo mundo passa por isso. São momentos que não são exatamente uma doença, mas umas flutuaçõezinhas no nosso estado emocional que nos afeta em coisas muito básicas. A exemplo: tive épocas em que esquecia coisas a torto e a direito, em tudo oque era lugar. "Lembrar de não esquecer" passara a ser dispendioso, tomar minha energia: algo que antes era orgânico, simples.

Talvez esteja num desses momentos: em que tudo parece pequeno, mas ganhando proporções enormes. Acredito que isso aconteça quando tenho medo de como as coisas vão se desenrolar. E, por mais que sejam coisas pequenininhas, elas se adicionam, tijolinho sobre tijolinho.

Pois bem dizem, não é mesmo: uma duna nada mais é que um monte de grão empilhado. 

domingo, 1 de dezembro de 2019

Garotas de Ipanema: parte II

Esqueci de dizer: o  post Garotas de Ipanema nasceu de um fato curiosamente desconfortável: ao fim de uma entrevista de emprego na semana passada o entrevistador me diz:

"-So, you are brazilian... you know... I like your president, Bolzonaro..."

[Nessa hora já sabia que viria merda pela frente]

"-...he's a funny guy," e deu uma risadinha.

Aí fiz um meio campo, sem abertamente divergir dele. Falei que era uma pessoa controversa, impulsiva, que não é muito racional em suas atitudes e falas... mas o senhor que me entrevistou não parecia querer me ouvir, e falou um pouco me atravessando

"- did you see what he sad about Sarkozy's1 wife? He showed a picture of his wife and said 'that's why he is envy of me'... hahaha he is funny"

Aí não deu mais, comecei a divergir mais abertamente dele: disse que não gostava do Bolsonaro, que era uma pessoa perigosa a democracia do Brasil edo mundo, com atitudes pró ditatoriais e pró violência. E que ele [entrevistador], vindo de onde veio [Bósnia], um país devastado por uma guerra-civil horrível, deveria ter profundo despreso por esses tipos de líderes, com atitudes tão anti-democráticas2.


Ainda assim, divergia com tato, com a clareza de que o entrevistado ali era eu. Essa parte que tornou o evento algo incomum, e me fez refletir bastante sobre o tema: uma das reflexões, em virtude da piada idiota que o entrevistador achou engraçada, deu origem ao post anterior; a outra foi sobre essa assimetria de forças, origem da nossa conformidade com tanta coisa ruim que acontece por aí.  Lembrei de um dos candidatos a presidência dos EUA, o Andrew Yang, falando sobre um plano de assistência básica a todos. Dizia numa entrevista algo como:

"-Imagine alguém que sofre assédio constante no trabalho, mas não tem condições de dar um basta naquilo por diversos motivos - filhos, doença etc. Esse auxílio serviria para isso, para dar uma possibilidade das pessoas terem uma vida melhor, para liberá-las desse tipo de coisa". 

Quando o ouvi achei incrível: realmente, ao longo da vida ouvimos e fazemos muita coisa que não queremos pura e simplesmente por sermos o elo mais fraco nessa grande cadeia que move o mundo. Me lembrei de uma época em que descobri (por minha ex) que um conhecido meu havia abandonado a academia  - um americano, que já era tenure track há anos -  e estava trabalhando na área pra qual estou indo. Apesar da insistência de alguns pra que o procurasse, lembrava das poucas interações com ele e, acima de tudo, de um acontecimento que havia virado motivo de asco entre algumas amigas de onde estudei durante uma época: uma delas me mostrou um poster sobre um evento chamado "O papel das mulheres na matemática", ou algo assim, no qual havia a foto de 5 palestrantes... claro, todos homens (e brancos).

"-Do you know this guy? What an asshole", ela me perguntou.

Já o achava bem diferente de mim quanto a valores científicos, mas depois daquilo eu realmente fiquei com um (ou vários, na verdade!) pé atrás quanto a ele: como assim, trabalhar com alguém pelo qual não tenho admiração alguma, com o qual divirjo em assuntos tão fundamentais?

Claro, penso no meu chefe atual, com o qual divirjo em gênero numero e grau em diversos aspectos, mas com o qual trabalho (well... melhor dizendo, sob a chefia de quem trabalho mas com o qual, felizmente, raramente interajo). Viver é realmente caminhar por uma corda bamba... me admiro de sair de 5 minutos de uma conversa bizarramente desagradável e tirar tanto dali. E ao longo do caminho há de ser assim mesmo: vamos estar cercado de pessoas que discordam e pensam diferente da gente, que tem valores muito díspares dos nossos. E isso é normal, pois eles também devem se chocar com os nossos valores e modo de vida. Mas... é escolha nossa não cmopartilhar nossa essência com algumas delas, e enquanto eu puder eu farei o máximo pra não trabalhar para uma pessoa com a qual, préviamente, já sei que discordo.

Paciência... paciência... 


1 Provavelmente ele quis dizer Macron. O fato, infelizmente, foi motivo de profunda vergonha para mim e para muitos brasileiros (link do Washington Post)

2 Me referia ao Slobodan Milosevic

Direto da Terra do Sol Nascente # 78: abraço chinês II

Há algumas semanas aconteceu algo que me lembrou de uma estória que me ocorreu anos atrás (2012!!!): um chinês do meu trabalho, que tenho meio que orientado com encontros semanais e tudo, veio me dizer que não conseguiu fazer nada do que lhe pedi na semana passada. Se abriu, pois não sabia oque fazer: havia levado um chega pra lá de uma mocinha japonesa, e não sabia muito bem como interpretar a situação. Num esforço emocional que conseguia perceber de longe, me explicou a situação pegando um pedaço de giz e indo para o quadro negro, onde desenhou uma gaussiana pra representar o quão fora do eixo se encontrava naqueles dias:

"-...estou uns dois sigmas acima da média", me disse apontando para a cauda direita da curva, um pouco ofegante e, pelo que me passava, com o peito carregado de dor. Entendi a explicação, apesar de pra mim haver pouco uo nenhum sentido em matematizar uma situação como aquela. Talvez seja minha grande virtude e meu grande defeito: não ser fluente em nada, e falar um pouco de várias linguas: me foi o bastante pra ver que o rapaz estava no seu limite.

Fiquei lembrando da menina chinesa da qual falei no post que me referi acima. Pensei neste grande abismo entre dois mundos, culturas e vidas tão distintas -  Brasil, China - e em como, assim mesmo, ele veio contar pra mim... mesmo  diante de tantas outras pessoas pras quais ele poderia ter falado sobre o seu desconforto, sobre aquela dor.

Ouvi, conversei, dividi o pouco que sei (ou acho que sei) e, sem haver algum mérito quanto a hierarquia, me senti um pouco pai, um pouco irmão mais velho, um pouco orientador, e um pouco mais humano: rejeição é uma dor universal mesmo. Enquanto o ouvia eu pensava no que tal palavra significa pra mim... e quais milhares de significados e formas ela já tomou (e ainda há de tomar) no meu horizonte.  

Fiquei feliz em ver que com algumas palavras e acolhimento, o desespero nos olhos dele dissiparam um pouco: já ao fim da conversa eu consegui ver que ele estava melhor. Acima de tudo,  que eu havia feito o melhor que pude: dizer a ele, mesmo sem ter certeza de nada, que aquilo iria passar, que aquela dor iria passar...



sexta-feira, 29 de novembro de 2019

Garotas de Ipanema: os homens e o "me-too movement"

Há um episódio muito besta/engraçado, como muitos outros, do (Jerry) Seinfeld, onde ele leva um date a um restaurante cujo dono é seu amigo. O dono, muito calorosamente, o recebe dizendo que vai preparar uma pizza pro Jerry e seu date ele mesmo. Aí acontece o seguinte:


[Wash your hands, Seinfeld]

Isso: eles se encontram no banheiro, e o dono do restaurante sai do mesmo sem lavar as mãos. Sempre lembro dessa estória quando vejo alguém sair do banheiro sem lavar as mãos. Se for algum colega de trabalho então, ou alguém que conheço, seja de vista ou oque, aí não tem como: passo a ter um pé atrás enorme com aquela pessoa. 

É mais curioso ainda pensar que, mesmo em situações extremas a gente vê esse comportamento: a exemplo, quando vou em alguma "balada", casa noturna ou coisa assim, aquela fila enoooorme de homens bêbados urinando, vejo um ou outro que sai direto pra noite, pra conversar com amigos, dar em cima de alguém ou sabe-se lá oque. Penso imediatamente:

"-pqp... se as pessoas soubessem quem esse sujeito é...".

Bom... termina aqui essa parte aparentemenre desconexa do post. Onde quero chegar é realmente o seguinte:  e se as pessoas realmente soubessem quem somos? Ou, mais na linha do que gostaria de propor hoje: e se as mulheres soubessem o que os homens realmente são, pensam...e dizem?

Sabe...  umas das poucas coisas que vim a entender de budismo é que quanto mais consistente você consegue ser, menos dor você traz ao mundo. Não há como você ser um misógino, fazer piadas sobre gays, ser racista por um lado, e por outro advogar pelas causas de minorias, ser o amigo de todos. Por muito tempo, ainda mais por conta da cultura permissiva onde cresci, achei isso ruim, mas dentro de certos limites aceitável ouvir calado. Mas a medida que fui ficando mais velho, vendo palavras,  pecados, e dores sendo causadas desmesuradamente e descuidadamente por todos os lados, fui crescento cada vez mais hostil a este tipo de pessoas. Isso, como um outro lado da moeda, também acabou gerando dor: me afastei de alguns familiares, e perdi alguns amigos.

E veja: tudo isso não tem  a ver com simplesmente "lavar uma mão"1,  falarmos tudo oque pensamos, ou oque quer que seja. E certamente não saímos das barrigas de nossas mães assim, prontos pra respeitarmos o espaço e limites sociais uns dos outros: há muito, muito a ser dilapidado ao longo do tempo, enquanto crescemos.

Mas, se todos somos expostos a todas essas questões, aos embates que o mundo nos apresenta, porque reagimos diferentemente? 

Realmente não sei... talvez nessa equação entre a personalidade de cada um? É... realmente não faço idéia... vejo a dificuldade de alguns amigos (em especial os mais velhos) em entender um movimento como o me too como algo legítimo, e mesmo mulheres entenderem do que se trata (amigas muito próximas, que pintam qualquer movimento de minorias sob o viés de "coitadismo", segundo elas..). E me é claro que nada disso tem a ver com escolaridade: os amigos dos quais falei vão desde PhDs a pessoas com menos escolaridade (em ambos os gêneros)... 

A diferença no entendimento/percepção mora onde então?

Ouvi esse podcast há algumas semanas. Também fiquei me perguntando oque ele queria dizer... oque era e oque não era consentimento, oque era arrependimento, oque era oque


[Dear Sugars: "Episodes we love: consent part one"]

achei interessante. Pensei na discussão. Pensei na quantidade enorme de discussões que tinha na casa onde morava no Rio, com duas mulheres maravilhosas e mais um rapaz (gay): eu, hetero, aprendendo humilde diante das besteiras que falava, das palavras ditas sem pensar. Sair de São Paulo (cidade de montanha), ir ao Rio (cidade de praia) onde o corpo é só mais um corpo que vai à praia..... que mudança... o Rio foi uma lição de vida na qual aprendi muito. E interessante, porque anos depois eu conseguia ver, nas palavras e atos dessas mesmas mulheres com as quais morava, algumas atitudes da minha mãe e irmã, com as quais cresci. Vai ver com elas, por já termos uma relação com certos moldes, com certos "triggers" de impaciência, de tipos de conversa, certos assuntos não chegavam a ser abordados... Educação vem de casa? Nem sempre: educação é dialogar e ouvir o outro lado (que muitas vezes é o mesmo lado), seja lá onde for e com quem for.

Namoros são outros lugares também que servem muito para um homem ouvir e ver sobre quais privilégios pisa enquanto anda pelo mundo. Nessas horas lembro do dia em que fiz uma piada besta em inglês, na qual finalizei me referindo à minha namorada como "bitch", sem me dar conta do peso daquela palavra em inglês... me dói até hoje na alma os olhos dela enchendo de lágrimas, meu chão se abrindo como se fosse um buraco negro...

[Um pouco como naquela cena do "transpotting",]
[ onde o chão afunda enquanto ele tem uam overdose]


[Trainspotting: "just a perfect day"]

Fiquei ali, envergonhado e arrependido... queria ser um avestruz, me esconder do que havia dito. Por segundos me veio o medo de ter rompido tudo aquilo que estavamos tentando construir juntos, tudo aquilo que eu gostaria de ser pra ela, pro mundo. "Como pode, logo eu que ..." é.. a gente sempre se acha acima de tudo, sem "blind spots", mas errar... quem nunca? Pedi desculpas, disse a verdade, não mensurei bem a palavra numa lingua que falo, mas na qual não sou nativo...  parei pra me reentender, refletir sobre uma atitude infantil e impulsiva de falar sem pensar no real significado das coisas e suas consequências.

Todo mundo erra? Sim, todos erramos.
Todo mundo aprende com seus erros? ... hummmm não exatamente (infelizmente).

Entendermos uns aos outros, seja um homem compreender ou ouvir oque uma mulher quer e busca em questão de direitos, igualdade etc, ou oque é respeitar uma outra pessoa. Este processo é evolutivo e nunca há de acabar: dificilmente hei de pendurar um quadro na parede dizendo que acabou, que tenho um diploma nisso (se é que alguém tem). Em 10 anos é bem provável que olhemos pra traz e nos vejamos como ruínas, nos visitemos como escafandristas que visitam um navio em ruínas no fundo do mar, ou um templo no meio de uma selva pra pensar "como é que eles conseguiam viver assim, pensando dessa forma? Como ninguém falava pra eles?"

Assim então, cercado de pontos cegos, a gente tenta crescer, embora de tempos em tempos, se nos mantivermos de olhos abertos, conseguimos vislumbrar um pouco do que é ter percepção do outro, oque é ter dimensão que alguém mais está ali conosco, buscando espaço, atenção, igualdade. Numa das primeiras vezes que saí na mini-apple, logo que havia mudado pra lá e ainda habitava o sofá do meu anfitrião (mesmo sofá do post anterior!), saímos com uns amigos dele para um restaurante que em breve fecharia as portas: despedida!! Achei que todos os finais de semana na mini-apple seriam daquele jeito: só festa, como na foto debaxo da qual o sofá onde eu morava estava....festa, festa, festa2. Mas voltemos à realidade:  havia um karaoke no dia, ao que fui interpelado (para não dizer "forçado") a cantar "garota de ipanema", que eu nem gosto muito: uma música de homens velhos olhando como abutres as moças novinhas na praia de Ipanema.... sem falar que é o feijão com arroz de todo brasileiro, que já a ouviu 30 milhões de vezes.


[Frank Sinatra & Tom Jobim, Girl from Ipanema]


Não... não dá... 

Mesmo assim, havia um cara que cantava muito bem no local...a voz do Frank Sinatra mesmo, sabe? 

E quem não quer cantar com o Frank Sinatra?  

Bom... eu quero. Mas naquela dia não  queria muito: "Frank, let's call it a day... let's sing in another opportunity"... Eu, meio tímido, meio sem graça... mas ainda assim, empurrado ladeira abaixo, dei uma idéia/fagulha, e chegamos juntos à uma conclusão: façamos um dueto, eu em português, ele em inglês. Meus amigos (eu solteiro à época) me diziam "man, you gonna sing in English, all the girls will fall for you". Dei de ombros: o máximo de atenção que recebi de uma mulher ao dizer que era brasileiro foi um "so what language do do you speak... spanish?" 

Não.... nada mudaria. 

Mas lá fui eu.
Convidei o cara pra cantar comigo.
"-Yes, sure. I love garota dipanema"
Cantei.
Cantamos.
Tentamos cantar.
Eu não ouvia o músico.
Cantamos errado.
Fora do tom.
Um cantando em inglês sobre a voz do outro que cantava em português.
E vice versa 

Em resumo: foi horrível.

Meu amigo me recebeu na mesa depois do fracasso:

"man... let's go home... it was so horrible that nobody will even talk to you at this point"  Foi realmente engraçado: fomos do high-expectation às profundezas da fria realidade. Mas oque se passou depois foi mais curioso ainda. Eu, no limbo, olhei uma moça que achei interessante e, sem nada a perder, me aproximei e comecei a conversar. Ela, que não estava sozinha, começou a prosear... mas aí eu parei e disse "wait.. let's invite your friend too, so she doesn't stay on her own". Na sequência, meu amigo chegou e começou a conversar com a amiga (que ele havia achado interessante há tempos, mas não tinah tido coragem de chegar pra conversar com ela). "-Well... can I sit here then?", perguntei , ao que recebi permissão. Sentei ao lado dela, enquanto meu amigo conversava com a outra amiga. 

A primeira pergunta que ouvi foi "-Do you have a sister?" Aí eu ri: que pergunta inusitada. Pensei na minha irmã, nas minhas roommates do Rio, que também me são como irmãs. "-Yes.. I do... why?" A moça depois me explicou que é raro ver todo esse cuidado com alguém que não tenha consciência do outro lado, do que é ser uma mulher na noite, num bar, sendo "abordada" por um homem: do meu cuidado em não separá-la da amiga etc. Acabou que virou mais uma conversa sobre psicologia que qualquer coisa: meu amigo arrumou um date, e eu, que no fim tentei arrumar o telefone da moça (que nesse ponto já me parecia interessante) não consegui nada. Que que vem abaixo do limbo mesmo?... Voltamos pra casa.  Eu , no caso, pro meu sofá. 

Essa estória terminou em nada: meu amigo arrumou um date (e me deixou em casa, no sofá), a moça da conversa, apesar dos meus pedidos, nem me passou o número dela (e nem insisti): foi uma curiosidade que valeu pela conversa. E, acima de tudo, valeu por me "acordar" pra todas essas variáveis pras quais eu nem dava muita atenção até ali: sim, as pessoas notam, as mulheres notam, e lêem cada detalhezinho, nossos pequenos delitos de desrespeito uns com os outros... 3 

A conversa ficou enraizada: refleti por muito tempo sobre, me perguntando sobre o tema. A partir dali permaneci de ohos abertos não só para me observar, mas pra observar outros homens. E muitas vezes, quando os ouço, eu penso: "-ahhhh se o resto do mundo soubesse oque esse cabra pensa..."





1  Sim, há gente que só lava uma.
2  Preciso dizer que me enganei? hahaha. 
3  Será que elas conseguiriam acertar quem lava as mãos no banheiro na balada ou não? Isso daria um ótimo estudo científico, acho... estilo ignobel prize, mas daria um estudo interessante.





domingo, 24 de novembro de 2019

Direto da Terra do Sol Nascente # 77: "só mais cinco minutinhos" (parte 1)


[Jorge Ben, Cinco Minutos]

Tenho um grande amigo, que é como um irmão mais velho pra mim, que me recebeu na mini-apple quando mudei pra lá. Foi minha primeira casa naquela cidade: um sofá cinza, debaixo de um quadro enorme que era uma foto do "beco do rato", no Rio de Janeiro. Sabe-se lá o porque de nos darmos tão bem. Mas imagino que, pelo fato dele ter morado no Brasil por uns anos explique. Mas digo isso só pra introduzí-lo no post: oque queria dizer dele é que várias vezes ele me dizia que se sentia super americano no BRasil na hora de dar tchau em festas ou eventos; enquanto a namorada queria dar tchau pra todo mundo, dar abraço em todo mundo da mesa etc, ele queria virar as coisas e ...tchum, desaparecer! Eu como brasileiro entendia o lado dela. Como uma pessoa um pouco anti-social (às vezes, não sempre!) eu entendia o lado dele.

Dar tchau é difícil. Principalmente quando se deixa algo pra trás. Eu só dei dos tchaus deixando algo pra trás na vida: quando mudei pros EUA, e quando mudei pro Japão. É sempre difícil. 

Agora é quase hora de se dar outro tchau: o sayonara a todos os projetos, idéias, planejamento de projetos que partem de mim mesmo, coisas do tipo. Já disse a mim mesmo diversas vezes "agora não vou fazer mais porra nenhuma, só estudar", ou "a partir de agora vou só procurar emprego", ou ainda " a partir de agora vou parar de ter idéias e só focar em ler"...

...engano, engano engano. Acabo fazendo um pouco dos 3 acima, e nenhum dos 3 acima ao mesmo tempo.

Mas como assim, como é que pode, você fazer e não fazer algo? É...nem eu sei. tentei colocar um limite, parar de querer produzir, de ter idéias... mas elas vêm,  chegam como uma coceirinha, aí você vai, experimenta, tenta algo, vê que faz sentido... aí dá um tempo pra "ler, estudar um pouco pra não emburrecer", mas se pega preso nessa incrível balança que a vida de cientista apresenta: 

  • você pode ser um magnânimo conhecedor do trabalho dos outros somente;
  •  um excelente conhecedor do seu próprio trabalho somente, no qual você se deleita tentando produzir algo;
  • ou um pouco dos dois acima.
O primeiro caso não é muito incomum: há muita, muita gente fenomenal em ciência que é extremamente literada sobre o trabalho dos outros, ou de uma área, mas que nunca produziu nada muito significativo. A pessoa no entanto tem uma qualidade enorme de "organizar o meio campo", de sintetizar e explicar as idéias dos outros. Acaba escrevendo um livro, que vira referência na área.

Tem o pessoal que se deleita tentando produzir coisas novas. Talvez eu caia nesse grupo: o que coloca as mãos em algo, tenta criar alguma coisa. Claro, há diferenças nesse grupo também, como diz um estudo de 2018 (Changing demographics of scientific careers: The rise of the temporary workforce), que nos diz que mais de 60% das pessoas que produzem ciência o fazem como colaboradores não principais, como suporte... os "sidekicks". E que hão de permanecer nessa posição ao longo de boa parte da carreira (se não durante toda a carreira!!). Nesse aspecto eu saio do grupo: felizmente eu rapidinho saí de baixo do guarda-chuva do meu orientador pra procurar meu próprio caminho. Oque é bom, mas também ruim: você está na chuva sozinho, brigando por uma marquize que o proteja. Você não tem mais o abrigo que outros que vieram antes de você construiram, e pode muito bem ficar abandonado/relegado ao esquecimento.

Qual é o caminho mais prático ou correto?

Não sei... talvez seja simplesmente uma escolha pessoal. Mas voltemos, por que digredi! Recentemente, nessas buscas por uma alternativa de vida não acadêmica, me deparei com essas questões de "onde focar por agora". Acontece que, infelizmente (ou não) idéias não param de nos visitar... a gente tenta, é gostoso ficar lendo o trabalho dos outros, aprendendo coisas, mas criar algo.... não sei, há alguma coisa aí... como cair de amores por alguém ou lugar, ou cruzar uma rua da qual se gosta ("alguma coisa acontece no meu coração.." como diria Caetano)


[Caetano Veloso, Sampa]


Me lembro até hoje de uma conversa que tive com um dos cientistas que mais admiro, um professor super carrancudo de onde estudei, um cara de uma clareza tão, mas tão grande, que dificilmente se encontrava alguma brecha no que ele dizia: dificil adicionar ou tirar uma palavra, ou mudar a ordem dentro de qualquer coisa que falava. Um cara meio zen, no que tange à matemática, super old school, mas muito, muito gente boa. Sentei com ele, falando sobre os próximos passos que poderia dar na minha carreira, e ele me disse: 

".... - agora você tem uma tese... imagina que  oque a gente sabe é esse círculo, e oque não sabe é oque está fora. Você agora chegou na fronteira desse círculo, e começou a se deslocar pra fora, mas ainda tangente ao círculo.... Teu orientador, por exemplo, está indo pra fora desse círculo.... e é esta direção que você quer ir também".

Nunca me esqueci disso. Por que, de certa forma se alinha a um mantra que sempre trouxe comigo desde que saí do Brasil: "não siga o passo dos que vieram antes de você, mas sim procure oque eles procuravam", de Matsuo Bashô (do qual falei sobre algumas vezes... mesmo há quase 10 anos atrás, em 2010!!!). Na hora que ele falou eu não me dei conta (ou talvez seja assim que me lembre da conversa, agora não sei mais), mas ele não me disse para ir na mesma direção do meu orientador, mas sim para ir pra fora desse círculo. E ... para ali adiante, o desconhecido, é onde me pego às vezes olhando, como alguém que olha o mar e, só vendo a praia e as ondas, se pergunta oque há mais ao fundo, mais pra além do horizonte. Dificilmente uma cabeça consegue parar de fazer isso... porque, no fim das contas, uma coisa move a outra: a nossa sede de conhecer mais e descobrir mais é oque nos move a entender melhor cada engrenagem daquilo com oqual lidamos. 

Curioso, por que esse processo de descobrir (ou tentar), desvendar (ou tentar), me trouxe consciência das minhas virtudes (das poucas que tenho, talvez haha) e defeitos (dentre os muitos que tenho), e diante disso saber perceber oque posso trazer de útil numa discussão: se sento na mesa com alguém, oque poderia dizer de relevante, que acrescente? Hoje, mesmo que não saiba a resposta por completo, e talvez nunca saiba, consigo vislumbrar um pouco melhor como responder essa indagação.

Bom... divaguei, divaguei e não muito sobre oque queria falar. Fica  pra parte 2.



terça-feira, 19 de novembro de 2019

Direto da Terra do Sol Nascente # 76: eles e nós

É interessante pensar que, quando escrevemos, adotamos um pronome.

Você notou? Você viu ali em cima "escrevemos". Nós, terceira pessoa do plural. Embora quem tenha escrito tenha sido um "eu", Rafaello, no alto do meu barquinho aqui de longe, remando e remando: "eu", um único ponto, escrivinhando pelos 4 mares como se fosse uma multitude de pontos, "nós", ou mesmo uma reta! 

Megalomaniaco? Não, não... linguagem mesmo.

Enquanto em literatura inventou-se a figura do narrador, em ciência temos uma situação meio estranha: o narrador ali está para narrar toda a aventura lógica do descobrimento: "numa certa manhã de segunda eu entrei no escritório, quando o segundo autor do paper me disse..." É... ciência "infelizmente" ainda não deu romance científico ou desandou em prosa com narradores e tudo de maneira não subjetiva.... aconteceu então de, em algum momento da História,  os cientistas matarem o narrador: abre-se qualquer artigo hoje em dia (veja o site da Nature, por exemplo, onde muitos artigos são open source) e dificilmente se lê uma estorinha fofa. Lê-se, em contraste, coisas como "as amostras foram preparadas com 5% de fosfatolipidiônicoproteico, 4% de manganêzionosfosforito..." ou "the singularity in the equation allows for the formation of a black-hole, an effect that had in fact been discovered by [1-5,23, 34]", etc. 

Não muito tempo atrás a coisa era outra. Veja o "Dialogue Concerning the Two Chief World Systems", de Galileu Galilei, por exemplo: dois caras1 conversam sobre opiniões distintas que têm sobre o universo, e um tenta convencer o outro com argumentos. Em resumo: um artigo científico que acontece numa mesa de bar, onde dois cientistas chegam a um ponto em comum sobre uma querela. A ciência ao alcance de todos! A ciência-novela, a ciência-poesia!

Hà também, e acho até que falei sobre anos atrás, a ciência sobre os olhos de filósofos: aí a coisa realmente muda de figura, e pode ser super abstrata (como Espinoza, que provava as coisas como teoremas, lemas etc), ou onde o filósofo chuta o pau da barraca e escreve borbulhas de loucura ininteligíveis2 , deixando o leitor dividido entre a esperança e a razão, onde o leitor busca passar as noites em claro, lendo, lendo, lendo, saciando sua curiosidade e loucura dentro daquelas páginas... Sim, o filósofo ludibria e enche o coração de leitor de amargura por não lhe oferecer explicação alguma, mas sim, ... aff... ouvi a música e me embananei todo 🙈 Em resumo: o filósofo proseia e dá voltas, tantas, tantas e mais tantas, que a cabeça do leitor dá um nó: tão forte que o mesmo acha que entendeu algo, quando na verdade ele já nem sabe mais oque é: um donuts, um quadro surrealista, ou mesmo um peixe que busca mergulhar num aquário límpido a fazer borbulhas ainda menos lógicas do que aquelas que leu!

Há, ainda, casos como o dos matemáticos que, em sendo um, somente um, ou poucos, a trabalhar fazendo doodles pelas lousas do mundo, escrevem tudo como se fossem todos: "nós provamos", " nosso resultado"... é um pouco como a estória do "all at one point", do Italo Calvino nas cosmicomics: os autores são aqueles ali na primeira página, gente que mal te conhece, mas que, de certa forma, fala de "nós" como se você estivesse ali, escrevendo o artigo com eles, escrevendo o paper lado a lado, ou segurando a tua mão para que você os acompanhe naquela trajetória racional pelo universo científico: tudo, vocês-eu-eles-nós, no mesmo ponto.


Enfim... ciência é um pouco isso. E há casos não raros de uns cientistas lerem o trabalho de outros e falarem
"
1:"we". this is inappropriate in scientific journal as i mentioned before.
2: Related to "we", you use "we would like to".
This totally makes sense, however, this is more like "chatting" or "blog" like term.
"
[isso veio de um email que recebi recentemente]

Ou seja: nem mesmo cientistas entendem um aos outros, e se tratam com condescendência. "Eu sou genérico, sempre uso minhas proposições pela manhã, após meu english-tea, e só uso 'nós' quando acompanhado por um adulto"...

É pessoal... a vida de cientista é dura...especialmente quando você tenta transgredir a barreira da intedisciplinaridade (tão preconizada nos dias de hoje!!) pra descobrir que no fundo, bem no fundo, ciência é uma lingua cheia de dialetos. :)


ps: vale à pena ler o interessante "The two cultures", do C.P. Snow, especificamente sobre a falta de diálogo entre humas e exatas, do qual eu ouvi falar depois de ler um interessante artigo do Tim Gowers, um matemático britânico ganhador da Fields medal anos atrás


1 Pelo que me lembre são dois... li um pouquinho desse livro há anos, mas não dei conta =P

2 Lembrei da maravilhosa  💙💙💙💙💙💙 


quinta-feira, 14 de novembro de 2019

"Herrar é umano"

Enquanto estivermos sobre essa terra, incorreremos em erros. Em enganos. Machucaremos os outros.

É muito difícil no entanto, quando você é a parte que sai ferida na estória. Mais ainda, quando a dor que te causaram lhe foi afligida de maneira intencional. Nessas horas a gente se pergunta: por que? Será que mereci, será que fiz algo de errado?

Recentemente algo do tipo aconteceu comigo, sendo eu a parte "açoitada" sem compreender porque. A conclusão que cheguei, depois de não ver razão alguma pro acontecido, é: não me cabe entender os porquês de algumas pessoas, mas sim tomar decisões que me protejam. E, no caso, minha decisão foi a de não guardar mágoa ou rancor, perdoar oque tiver que ser perdoado, mas me manter distante. 

Talvez seja melhor assim. Talvez não: será melhor assim! 

De alguma maneira, essa estória me lembrou de uma animação do Koji Yamamura.

[Koji Yamamura - The Old Crocodile (2005)]


Nela, por sua natureza, o crocodilo vai "matando" aqueles que estão perto dele, e não se dá conta do mesmo. No fim das contas, o crocodilo acaba como um deus de uma tribo. Quando assisti esse vídeo pela primeira vez eu me perguntei o porque desse final: seria a sociedade nos louvando pelo nosso egoísmo, pela nossa capacidade de nos desvincularmos, de nos alimentarmos a custa do sofrimento alheio? Seria isso uma ode ao nosso egocentrismo, onde não importa a dor que causamos aos outros: estarmos bem (no caso, nutridos) está acima de tudo e de todos?

Não sei. Só sei que minha interação acabou na triste decisão de, ao menos por agora, querer me afastar. Mas o que me deixa triste nessa situação não é dor nem nada (isso passa): me dói ver que a história em conjunto (com o agressor(a)) fica maculada. E talvez seja um pouco oque pessoas que vivem relacionamentos abusivos sintam: como olhar pra tras? Com que cores pintar as memórias, mesmos as boas? Como uma memória atual pode borra ruma foto antiga? 

Sim, a pior parte de ser agredido por alguém que se ama ou ja foi parte da sua vida é você não saber muito bem como processar oque já passou com aquela pessoa. "Será mesmo que aqueles picnics foram bons? Será que o outro lado também estava gostando? Será qeu havia mesmo respeito?... " Você não sabe... ou fica na dúvida, se equilibrando numa tênue e trêmula linha de certeza....

Mas sabe... todos nós cometemos erros, e não são eles que nos definem como pessoas. Eu já cometi os meus, e vou continuar os cometendo aos montes. Mas, acima de tudo, me permito errar porque também me permito admitir erros e me desculpar quando sinto que me enganei, que agredi, ou que machuquei. Meu orgulho, minha vontade de estar correto, nunca-em-momento-algum se encontra acima de qualquer outra pessoa: quando sinto que errei não hesito em pedir desculpas. 

Talvez seja isso que distingua as pessoas uma das outras: a maneira que elas escolhem se relacionar com outras é um pouco a maneira que elas escolhem crescer (ou não crescer, que também é possível).

[Bom, essa é a reflexão da semana:]
[tá tudo corrido por aqui porque as entrevistas de emprego]
[acreditem ou não]
[estão chegando e chegando =)]

domingo, 3 de novembro de 2019

Meandering rivers


[Alice in Wonderland - Dave Brubeck & Paul Desmond]

Adoro como essa música começa: o Dave Brubeck começa levando-a em uma direção, como que seguindo um coelho pro rabbit hole... aí totalmente muda de curso quando o Paul Desmond entra com o sax. Sempre que ouço é como se eu prendesse a respiração quando chega nessa parte, esperando esse clímax. Depois disso a música parece pular de um estado pra outro, como um vôo de borboleta, seguindo tanto um curso próprio quanto o curso do vento: a melodia e a harmonia se expandem como um delta de rio, indo do melancólico ao alegre/nada melancólico. 

Na semana passada, numa dessas idas para o trabalho, caminhava pelo parque ao lado de casa. Olhei para o rio que, desde o tufão do qual falei há alguns dias, teve sua forma um pouco alterada: os bancos de pedras mudaram de lugar, a água flui e escoa de outra forma, como se fosse um outro rio aos meus olhos... embora ainda seja o mesmo rio.

Penso na tartaruga que vi algumas vezes, nadando curiosa, saindo mansa e duvidosa pras pequenas ilhas que parecem flutuar na correnteza: como uma monja durante um "walking meditation", a pequena adentra em passinhos diminutos o mato alto, até se perder dentro dele e fugir da minha vista. "Será que ela tem uma casa de campo ali?", penso comigo mesmo. Nunca fui lá pra averiguar; nem acho que deveria: em casa de tartaruga ser humano algum deveria pôr os pés.

Ao longo do dia fiquei com essa imagem na cabeça, do rio que muda sua forma ao longo do tempo, que segue por meandros, se emaranha em outros e em si mesmo. Olho pra mim mesmo, penso no porque nunca pude seguir em linha reta. Penso no final do livro "wizard of oz" (que, não sei porque, li recentemente), quando dizem para a Dorothy que  a passagem para voltar pra casa estava ao dispor dela a todo o instante: bastava ela bater os sapatos mágicos que você estaria de volta ao Kansas. Logo em seguida, ouve-se o protesto do espantalho:

-Mas se você tivesse ido logo cedo eu nunca teria um cérebro.
- E eu nunca teria coragem, diz o leão.
- E eu nunca teria um coração, acrescenta o homem de lata.

É... a vida, mesmo por sofrimento e linhas tortas, no final parece fazer sentido. Mais ainda quando, adiante, podemos ver que sim, as respostas estavam ali, diante dos nossos olhos desde o princípio.

Essa semana que vem é aniversário da minha ex. Pela primeira vez em quase um ano entrei em contato, para dizer que gostaria de falar com ela, de ligar para dar parabéns ou algo assim. Estranho isso: entrar em contato para saber se posso entrar em contato... como um algoritmo que entra em loop, ou uma contradição que já existe na sua raíz. Pensei nisso por um tempo, mas não me apeguei a tais contradições: de tantas que vivo e vejo, seria das menores. Enviei a mensagem, embora no fundo, não saiba muito bem oque dizer. "- Happy birthday, I wish you all the ..." não sei o quão casual consigo ser... mesmo pra enviar uma mensagem já foi difícil, meu coração parecia querer se jogar pra fora de mim, que o diga numa ligação, falando-falado mesmo.

Esse deve ser oque... o terceiro relacionamento no estilo começo-meio-fim com este blog como diário de bordo? É curioso.. a gente nunca acha que vai passar, e nunca acha que vai gostar de novo de alguém, que vai deixar alguém se adentrar nas nossas vidas de novo, que vai ver esse rio de idéias, vontades, sentimentos e sonhos tomar outro curso, pra ir encontrar outro rio que, sabe-se lá de onde, apareceu para nos dizer que ali adiante há uma nascente, ou nos encantar com convites pra mergulhar e observar peixes. Sabe, ao longo desse pós relacionamento eu pensei e desejei, muito muito mesmo, poder ter deixado essa estória pra traz: estar em outro estado de espírito num bater de calcanhares, pronto pra outra. Mas... um rio não muda de curso assim tão rápido... quem sabe mais adiante me venha um "ahhh fez todo o sentido!" Não, até aqui não fez muito. Talvez para ela tenha, e seja bom pra mim ver, ouvir, e sentir alguma indiferença da parte dela em mensagens, se perceber como uma simples casualidade na vida do outro, ou mesmo na ligação que não rolou ainda. Talvez aí eu consiga colocar uma pedra nisso: "- por aqui não passa mais rio algum, bradou um gigante em protesto, ao colocar uma pedra no meio de um rio." Well... diferentemente das estórias gregas, poemas, contos, a vida tropeça nas suas próprias não linearidades. Às vezes, na verdade, a vida parece um teatro do absurdo, em que me pego com medo de falar oque sinto pra uma pessoa que, até pouco tempo atrás, era um rio emaranhado no meu, querendo desaguar no mesmo mar. Hoje nem sei pra que lado esse rio corre, em que nascente bebe, onde se emaranha. Que o diga eu, do meu próprio caminho.



ps: esse tópico me remete a uma outra música que adoro



[Can't We Be Friends? - Ella Fitzgerald & Louis Armstrong]


domingo, 27 de outubro de 2019

...que poeira leve (solidão #I)



["Solidão", do [album "inventando o samba", por  Tom Zé]

Me lembro até hoje do primeiro show do Tom Zé no qual fui: ele tocou uma música chamada "solidão". A cada vez que o refrão dizia " o telefo..." ele fazia um sinal com a mão atrás da orelha, como se mostrasse aquela dúvida: "será que o telefone está tocando mesmo? Alguém me ligando?"

Sim, minha gente... o post de hoje é sobre ela: solidão. Algo - ou alguém- sobre a qual pouco falamos. Por que ninguém gosta de dizer "estou solitário", ou "estou só". É uma fraqueza pra muitos de mostrar sozinho, e discutir a questão é muito, muito difícil mesmo, pois as pessoas têm dificuldade de admitir que a solidão, como uma poeira leve, paira no ar cobrindo com uma tênue camada os móveis das nossas casas.

Anos atrás, logo que minha irmã havia saído da casa da minha mãe para morar com o marido, minha mãe me disse num telefonema: "-É tão estranho... vocês estiveram comigo a vida inteira, e mesmo ela, que nunca foi de conversar muito... agora sem ela essa casa fica tão vazia...". Claro, quando interpelada se aquilo era solidão, minha mãe rápidamente retrucava "..-não, claro que não..eu tenho um monte de amigos". Assim como eu, assim como muita gente: temos amigos, temos laços, temos pessoas que amamos. Mas que nem sempre estão presentes nas nossas vidas. 

Uma das coisas mais interessantes da solidão é oque ela é: é matéria prima pra alguns, que a transformam em poemas, poesias, em desenhos no instagram, em música; é motivo de desespero pra outros, motivo de choradeira e desvario. A solidão, como disse pra muitos amigos, é uma doença que há de afetar muita gente ao longo da vida, e talvez seja uma epidemia crônica muito grave, que poucos países e governos buscam tratar. E nos atinge quando menos esperamos: os amigos que resolvem todos se mudar de cidade, ou resolvem casar, ou nosso círculo de amizades e pessoas próximas que se reduz absurdamente ou depende de poucos elos que algum dia... pufff, simplesmente se desfazem. A solidão paira no ar, e vive como um monstro debaixo da cama, simplesmente esperando a fragilidade das relações humanas um dia ceder, dando lugar para pessoas como elas são quando longe uma das outras: frágeis e vulneráveis. 

Se eu já passei por isso?! Claro, muitas e muitas vezes!!! E sempre penso: como resolver a questão? 

Olha... eu não sei muito bem.... dia após dia eu tento e me esforço para não cair nesse poço: seja conversando com amigos, seja não criando dependência de elos específicos da minha rede de amizades (eu não disse "não criar vínculos", eu disse criar vinculos de dependência, oque não acho saudável), seja ouvindo podcasts enquanto sozinho (o top da minha lista e que tem me dado muito oque pensar é o "Modern Love", do Nytimes, um achado de humanidade neste mundo frio e cheio de guerras, impeachments, bolsonaros e trumps), seja me encantando com algo humano ou que vem da criação humana: quando isso acontece eu sinto mais uma vez que me lembro de onde vim e do que sou feito. Quanto à dependência dos outros da qual falei acima, me remete a um trecho de Fernando Pessoa no livro do desassossego:

A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti, se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.

[Fernando pessoa , número [283] do Livro do Desassossego ]


E isso me leva a este ponto: é triste ser sozinho? ..Hummmm não acho que essa seja uma questão válida ou mesmo justa. A solidão é parte da existência humana, e muito dos caminhos que vamos percorrer durante nosso crescimento vão exigir de nós aquele pequeno passo onde ninguém segura nossas mãos. Há um pouco de solidão nisso, mas uma solidão necessária para nos distanciar da forma como vivíamos ou observávamos o mundo até então. E isso me permite comentar parte da questão "interessantíssima" 😋 que eu mesmo fiz: a solidão em alguns momentos deve ser vista como uma antítese à nossa dependência dos outros, um remédio amargo à nossa dependência (algo patológica) de alguém, de algo, ou de alguma relação. A solidão é uma dor que é parte deste andar pelo mundo; um pequeno duende que se joga na nossa mala escondido, pra se fazer presente e visível em qualquer lugar em que estivermos.  a solidão não é tristeza, ela é parte de ser humano e de existir uma vida de dor, de separação, e de plenitude em suas pequenas e belas coisas.   

sábado, 26 de outubro de 2019

Blind spots

Semana passada eu sentei e escrevi nesse blog, chorando as pitangas, dizendo que nada acontecia, que cheguei a questionar essa busca incessante por sair do Japão e, simultaneamente, da academia. Aconteceu de, na semana seguinte a isso, 4 entrevistas aparecerem em mãos: uma pra Mini Apple, outra do Canada, outra pra Inglaterra, outra pro Brasil.

Aí você pensa: wtf, Brasil? É... nem eu esperava por esta. 

Uma amiga da qual eu fui monitor no Rio (eu terminando o mestrado, ela entrando) está há tempos no mercado. Ao contar pra ela que estava nessa missão de sair da academia e que gostaria de ouvir uns conselhos,  ela, que está procurando por funcionários, me chamou pra uma entrevista. 

Até aqui eu nunca havia realmente considerado o Brasil como uma escolha viável. Na verdade ainda acho um país bastante inviável em diversos aspectos. Agora... voltar pra fazer algo que gosto, ou pra começar em algo novo, e com minha família e amigos por perto, como suporte? Talvez... vai saber....

As outras possibilidades ainda são boas e interessantes, e de maneira alguma as descarto. Infelizmente, ontem eu mandei muito mal numa entrevista técnica pra Mini-Apple. Caramba... como fiquei mal com isso: abri a prova e vi um monte de questões sobre coisas das quais sabia que deveria saber, mas nunca havia estudado. Coisas que sempre deixei pra depois, e depois... e... acabaram caindo no meu "blind spot". Bom, seria injusto dizer isso, por que o blind spot contém coisas das quais não vemos e nem sabemos que lá está, mas neste caso... ali estavam coisas cuja existência eu não ignorava, mas pras quais nunca havia dado a devida atenção. No fim das contas, perdi um bom tempo com oque não sabia, oque me deixou com pouquíssimo tempo para responder oque sabia com cuidado. Ou seja... bombei no exame: a resposta veio hoje cedo.

Bom... vocês "milhares de leitores" que acompanham as narrativas fantásticas desse nblog maravilhoso já devem imaginar qual foi minha reação: catastrofizei totalmente o resultado. Vi pontes queimando, carros atolados, noites em claro, jururuzice etc. Mas tentei, e ainda estou me esforçando, pra aprender com a situação. É realmente normal e comum irmos com um pouco mais de confiança ("overconfidence") para algo importante e.... não nos sairmos tão bem quanto imaginávamos. Mais ainda: esse excesso de confiança nos leva à arrogancia de menosprezarmos o simples, os probleminhas que se resolvem com um gesticular de mãos, quando são neles que tropeçamos, como foi meu caso. 

Anos atrás, eu tropecei num ensaio do Terence Tao (um baita matemático, fields medalist e tal) que disse que quase não passou no exame de qualificação. Essencialmente ele diz que respondeu um monte de coisa errado, quando questionado sobre alguns assuntos, não sabia responder, e quando respondeu, algumas vezes deu a resposta para outros problemas. O relato dele está abaixo, e é um pouco técnico para não matemáticos (ou para matemáticos não analistas), mas dá para se ter um pouco idéia do que se trata. Achei simplesmente muito bonito (e acima de tudo humano) ele discursando sobre isso durante o obituário do seu orientador Eli:

 ... A key turning point in my own career came after my oral qualifying exams, in which I very nearly failed due to my overconfidence and lack of preparation, particularly in my chosen specialty of harmonic analysis.  After the exam, he [Elias] sat down with me and told me, as gently and diplomatically as possible, that my performance was a disappointment, and that I seriously needed to solidify my mathematical knowledge.  This turned out to be exactly what I needed to hear; I got motivated to actually work properly so as not to disappoint my advisor again.
[Terence Tao falando sobre Elias Stein, em Dezembro de 2018]

Sim, é horrível se embananar (voltando a esta palavra) diante de coisas simples, nos sentimos péssimos depois, mas acontece. Foi, foi sim frustrante, e saí da experiência chateado. Diante do cenário passado que não posso alterar, me esforço pra aprender com o fracasso, o convertendo em matéria prima pra "pontes" futuras. Como eu mesmo dizia pros alunos que tive: errar é parte do processo de aprender. Erre o quanto você puder, por que só assim você vencerá este estágio. 

De fato, acho que não tenho errado o bastante. Algumas coisas a se mudar - NÃO TUDO!! - e seguir adiante: mais firme, remando com direção certa.

Semana que vem, mais duas entrevistas. Desta vez vou me preparar com mais cuidado. 

domingo, 20 de outubro de 2019

Direto da Terra do Sol Nascente # 75: belicosidades

"-Oque que você vai fazer no Brasil em Dezembro?"

Ouvi isso do meu chefe esta semana, ao comunicá-lo sobre uma viagem para ver minha família. Na hora, fiquei desacreditado. "-WTF.... será que respondo a uma pergunta tão idiota?", pensei. "-Vou no Brasil pegar concha na praia e comer tapioca, sua anta!". 

Me calei, contido: não disse nada. 

Fui desenrolando a conversa. Abordei o xis da questão, o workshop idiota da empresa acontecer quase no final do mês de dezembro (oque antes acontecera no começo do mês). Me senti afrontado diante disso: onde já se viu, uma empresa com um monte de estrangeiros, fazer um evento desses no final do mês, ferrando todo mundo que pensa em viajar e ver a família?! Fiquei simplesmente puto, e fui conversar mais puto ainda com ele, disposto a construir uma outra ponte além das que já tento construir no momento; dessa vez uma ponte que me permita não participar dessa palhaçada: será que realmente tenho que ir nesse evento?

"-Claro que tem!", disse meu chefe. 

Claro!!!!! Sim!! Justamente!! Faz todo o sentido mesmo: trabalho na empresa, então tenho que ir no evento, mesmo que ele seja totalmente em japonês (num japonês super formal, do qual entendo quase nada), e no qual eu devo falar - melhor, me apresentar- por no máximo 2 minutos, se é pra ser como foi no ano passado (frisando: 2 minutos num evento de 5 horas).

Sem sombra de dúvidas.... faz muito sentido! 😋

Diante dessa conversa absurda na sexta, passei o domingo meio estranho1... logo debaixo do coração parecia haver uma pedra, daquelas que não deixam o rio fluir em paz, sabe? Minha cabeça embebida em raiva, eu imaginando belicosamente como abordaria a questão na segunda de manhã, numa outra reunião. "-Se as coisas não saírem como eu espero eu viro a mesa, 'chutopaudabarraca'", pensei por boa parte da tarde.

Foi interessante, me pegar assim raivoso, chutando pedras e abatendo nuvens a tiros: raramente sinto isso, essa hostilidade por alguém ou algo. Assim que senti isso e não pude me desenredar dessa pedrinha dentro de mim, sabia: "- eu não estou agindo racionalmente..." Foi o momento de parar pra tentar entender melhor oque estava rolando, a não me precipitar, a ver oque está em jogo, a ver como, em uma possível conversa, não me deixarei levar pela raiva em me sentir roubado, mas sim ouvir e falar com tranquilidade, e aceitar oque devo aceitar, sem fazer do chefe, pelo qual não nutro admiração alguma, um indesejável inimigo.

É complexo isso: quando achamos que alguém se põe no nosso caminho por maldade ou por pura falta de consideração, agimos como bicho: voltamos a ser instintivos, protetores de nós mesmos. A sensação é tão desagradável, que hoje saí de casa só para tentar difundir isso no meio, me sentir menos preso e definido só por isso. Enquanto caminhava, me lembrei de que esse sentimento, que mais parece um veneno, já havia me visitado: uma vez, enquanto na pós nos eua, puto que estava com o departamento onde estudava, com os docentes pros quais trabalharia naquele semestre. Sim; havia ali também oque havia notado neste caso: alguém, me roubando de algo. No caso, me roubando do meu tempo com minha família. Incrível como temos uma memória emocional que funciona como músculo: em situações semelhantes, (re)agimos e interpretamos o momento da mesma forma.

Me custou dividir a questão. Me custou olhar pro outro lado. Me custou abrir mão da minha belicosidade, da minha vontade de ir à guerra e fazer meu chefe ouvir tudo aquilo que tenho a dizer e que acharia justo ele engolir goela abaixo... não: entrar em guerra não é a melhor maneira de se resolver um embate.

Meditei um pouco. Amanhã, antes do trabalho, tentarei meditar mais um pouco: logo cedo terei outra reunião para abordar a questão da ida descabida ao workshop desnecessário... desconforto que espero, com calma e sabedoria, poder remover daqui de dentro do meu peito, onde ainda sinto que ele me cutuca.

[Como dizem mesmo no serenity prayer:]
[God, grant me the serenity to accept the things I cannot change,
Courage to change the things I can,And wisdom to know the difference.]



1Curiosamente, pulou um dia, pois o sábado foi relativamente tranquilo, e mal pensei na questão.





Direto da Terra do Sol Nascente # 74: boundaries

Dear XXXX
Many thanks for contacting me.
Unfortunately, I have no interest in working in Japan any longer. If you know of a job opportunity in the field of A.I. outside of Japan, then please contact me: I will consider that.
Best regards, 
Rafaelllo

sábado, 19 de outubro de 2019

Direto da Terra do Sol Nascente # 73: entre geodésicas e notas, apenas uma fuga de Bach

Entre hesitar, tentar, voltar pra casa e quase me encontrar em choro, como em derrota, me ver sozinho, em momentos em que não sabia muito bem em que direção seguir, digo: foi uma semana difícil.

Hoje, um pouco mais calmo, tentando vislumbrar luz que existe no fim dos túneis que nossas vidas parecem muitas vezes conter, peguei meu violão como não fazia há meses. Os olhos quase fechando, começo a tocar a fuga do BWV 998, pra notar que o encadeamento das notas, a forma como os dedos correm pelo braço do violão como a buscar os caminhos mais curtos e ótimos, caminhos que parecem buscar geodésicas, uma sucessão de beleza e lógica que se dá como numa reação em cadeia, em que cada pedaço parece ser nada mais que a mesma reação exacerbada, amplificada em significado e forma.


[Juliam Bream, tocando a fuga do BWV 998]

Me lembrei de quando toquei essa peça pela primeira vez, inteira, anos atrás ainda no Rio. Mesmo hoje, em que a alcanço de memória aos pedaços, como uma fotografia da qual só me lembro alguns pedaços, consigo sentir oque me motiva a procurá-la, ainda sinto tudo aquilo que faz com que meu interesse se mantenha o mesmo: é, afinal de contas, o mesmo interesse que nutro por diversas outras coisas que orbitam minha vida - matemática, desenhos, desenhar etc. Enquanto dedilhava hoje me encontrei como numa ilha, onde toda a imensidão do que me cerca não conseguia siginificar mais do que o conforto que uma simples sombra (em forma de notas e ritmo) pôde me oferecer. 

Fazia tempo que não sentia isso... vai ver preciso de férias, mas férias em que tenha gente, família, pessoas que amo por perto. Por que, mais do que tudo, não foi apenas uma semana difícil: foi um ano inteiro difícil, que vislumbrei de uma forma mas se ofereceu pra mim de outra maneira; ano o qual ainda estou tentando entender e aceitar.


quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Direto da Terra do Sol Nascente # 72: the great wave (aftermath)


[Nelson Cavaquinho, Juizo final]


Meio tarde já, mas aproveito pra dizer que, apesar dos milhares de alertas do governo dizendo que o mundo caía lá fora durante um tufão que passou por aqui, mensagens estas que mais tarde se transformaram num aviso de evacuação da área onde moro (que é próxima a um rio) não houveram danos: todos aqui em casa estão bem, eu, Gardênia e Kinoko-san.


domingo, 13 de outubro de 2019

Direto da Terra do Sol Nascente # 71: diferentes focos

Tão estranho essa semana,
ver o Brasil celebrando uma nova santa canonizada,
enquanto o Japão  celebra nos jornais mais um prêmio Nobel
(desta vez em química).

Motivo de orgulho varia drasticamente a depender do país/cultura geral.

Ler sobre o  Brasil às vezes corta meu coração 💔

sábado, 12 de outubro de 2019

Direto da Terra do Sol Nascente # 70: the great wave



Aquela chuva do post anterior não parou até agora. Oque era uma chuvinha pela manhã virou uma torrente de água non-stop caindo do céu: tufões realmente são algo à parte... não exatamente chuva.

Meu celular recebeu umas 10 mensagens de alerta da prefeitura hoje, dizendo que certas áreas da cidade deveriam ser evacuadas. Uma delas, traduzida pelo google translator, indicou a área perto do rio onde moro "evacuate do the nearest strong building or evacuation center..." Me pergunto oque fazer. Alguns amigos japoneses me enviaram mensagens perguntando se estava tudo bem, disseram que eu deveria sair ... será que o rio pode subir 10 metros?!

Um terremoto pequenininho apareceu por hoje: dentre chuvarada interminável é o menor dos males. Leio sobre a visita indesejada do tufão no jornal... é desastre atrás de desastre nesse lugar... como pode?

Bom...se é pra ser desalojado de casa, ao menos vou escovar meus dentes, arrumar um lugar seguro pra gardênia e kinoko-san (uma girafa e uma kokeshi de madeira que moram aqui em casa) e ir.

Envio notícias em breve (do fundo do mar?)

[The Beatles, Yellow Submarine]

Direto da Terra do Sol Nascente #69: Endurance II (colaboradores)



[foto do Endurance preso no gelo, por  Frank Hurley]


Uma semana de pleno marasmo, de brisas que vem do sul se intensificarem num tufão que assola grande parte da mainland japonesa. O céu lá fora amanheceu e permanece cinza, com pitadas de chuva que intermitentemente se tornam fortes ou fortíssimas... especialmente quando você está na rua sem guarda-chuva. 

Sigo, aqui na terra-do-sol-nascente-que-na-verdade-hoje-não-nasceu, lendo Shackleton, estarrecido diante de uma viagem de tantas dores e com uma riqueza de interações humanas tão grandiosa: uma equipe se desentendendo à beira da fome, os momentos em que a ordem superior era admirada, as horas em que as decisões superiores desandavam em discórdia e dúvida sobre o quão efetivas realmente eram, o medo à beira da morte, o frio, um homem que quase chora ao ver seu leite derramado (literalmente), a compaixão... Me admiro ao ver (sob meus olhos, claro) tantas analogias entre essa jornada e meu caminho, que parece não ter rumo fixo e ter que ser recalibrado no compasso de tempos em tempos a depender da direção que o vento sopra. 

Esta manhã acordei com um email de um colaborador da época de doutorado, que me perguntava se gostaria de estender um projeto que fizemos a um novo projeto, oque me fez refletir sobre o grande contraste que são/foram minhas colaborações em terras nipônicas e em águas americanas/européias. Escrevo na minha cabeça a resposta: "não poderei, sigo um outro rumo agora... " mas busco não cair em ansiedades de antecipar minhas palavras, que hão de chegar no momento adequado. Tento refletir se é algo cultural "-é mais fácil colaborar com ocidentais", mas me repreendo por pensar algo assim: uma cultura influencia, mas não molda integralmente o caráter dos que vivem nela. Minha mente se prende em memórias: sentar numa mesa com um grupo e só ouvir silêncio do outro lado, que se olham entre eles à espera de alguma palavra do "chefe", é realmente algo estranho/novo... a hierarquia interna de outros grupos, o porquê das pessoas trabalharem em algo... me pergunto, como me perguntei várias vezes nesta semana, se essa dinâmica em que eu acabo tendo que tomar mais espaço do que gostaria numa colaboração (ou seja, uma relação de trabalho "desequilibrada") nasce em virtude da minha natureza, ou por conta da natureza interdisciplinar do que tenho feito e buscado ultimamente. Há ainda outras questões em paralelo: "-será que gosto de trabalhar com quem trabalho? Os admiro, admiro o input deles?" Às vezes é difícil ser honesto consigo mesmo e procurar, dentro de si, a verdade, se é que existe uma. 

Não tive muitos colaboradores e, como disse antes, tento me abster de generalizações quanto à cultura baseadas só no que vivi: recrimino essas linhas de raciocínio por que sei que afunilam a idéias errôneas sobre oque realmente se passa e margeiam raciocínios simples e enganosos sobre os outros. 
[Lá fora, mais chuva...]
Leio, procuro entender o porquê das minhas colaborações com ocidentais terem fluído melhor ("-... porque sou ocidental?") do que com japoneses. Me recordo de leituras sobre retratações de artigos científicos ao redor do mundo  e sobre ética e fraude em ciência (este último focado em acedmia japonesa). Tento encontrar uma luz pra tudo isso, pra natureza de interações de grupo tão fracas, em contraste com outros grupos em que a conversa flui e cada parte parece querer  ajudar as outras, além de ter a clareza dos seus afazeres. Recordo de um artigo antigo do nytmes, What Google Learned From Its Quest to Build the Perfect Team, sobre toda a complexidade por trás de gerir, crescer e criar em grupo... me pergunto se a culpa é minha...

Minha mãe sempre disse que meu pai gostava de ser o melhor dentre os piores. Nunca entendi bem essa frase, e sempre a achei mais "bitterness" entre pais separados do que qualquer coisa do tipo. Mas me surpreendi, anos depois, ao conversar com meu orientador de mestrado, logo antes de eu ir pros EUA estudar, que me dizia que eu nunca deveria me deixar abater por não ser o melhor, mas sempre olhar ao redor para e perceber ver se/que trabalho dentre (ou com) os melhores1. Ouvi um pouco minha mãe ali; como uma antítese sobre duas personalidades distintas, a frase ressoou em minha cabeça umas tantas e tantas vezes... ainda mais vezes desde que cheguei aqui. Frase que me vinha à mente enquanto tentava entender (oque levou os  4 ou 5 primeiros meses) que a falta de ar e angústia que eu sentia ao ir trabalhar com um grupo gerido por um matemático bem sênior daqui (que se aposentou já) era não outra coisa senão falta de admiração pelos que me cercavam. Todas as vezes que isso acontecia era acordar de um sonho na mini-apple, e cair aqui, preso com aquelas pessoas em silêncio, esperando o chefe deles dizer algo. 

Realmente, uma situação tão sufocante que beirou a depressão. E como disse, levou uns 4 meses e diversas idas à terapia pra entender oque buscava, para poder "break away" da segurança em manter laços com antigos colaboradores "overseas" que me serviam, de certa forma, como porto seguro, e para romper com oque vinha daqui, que mais parecia vir pra afundar meu barco doque qualquer coisa.  Encontrar paz em mim mesmo, aceitar que em algumas jornadas eu estaria sozinho, e procurar entender quando devo ceder por humildade, quando devo me resguardar e remar meu barco pra um outro lugar. 

Talvez o Japão tenha vindo no meu caminho pra me ensinar um pouco de tudo isso. 



1 Ele na verdade não falou exatamente isso, embora tenha sido dessa forma que depreendi suas palavras