domingo, 27 de outubro de 2019

...que poeira leve (solidão #I)



["Solidão", do [album "inventando o samba", por  Tom Zé]

Me lembro até hoje do primeiro show do Tom Zé no qual fui: ele tocou uma música chamada "solidão". A cada vez que o refrão dizia " o telefo..." ele fazia um sinal com a mão atrás da orelha, como se mostrasse aquela dúvida: "será que o telefone está tocando mesmo? Alguém me ligando?"

Sim, minha gente... o post de hoje é sobre ela: solidão. Algo - ou alguém- sobre a qual pouco falamos. Por que ninguém gosta de dizer "estou solitário", ou "estou só". É uma fraqueza pra muitos de mostrar sozinho, e discutir a questão é muito, muito difícil mesmo, pois as pessoas têm dificuldade de admitir que a solidão, como uma poeira leve, paira no ar cobrindo com uma tênue camada os móveis das nossas casas.

Anos atrás, logo que minha irmã havia saído da casa da minha mãe para morar com o marido, minha mãe me disse num telefonema: "-É tão estranho... vocês estiveram comigo a vida inteira, e mesmo ela, que nunca foi de conversar muito... agora sem ela essa casa fica tão vazia...". Claro, quando interpelada se aquilo era solidão, minha mãe rápidamente retrucava "..-não, claro que não..eu tenho um monte de amigos". Assim como eu, assim como muita gente: temos amigos, temos laços, temos pessoas que amamos. Mas que nem sempre estão presentes nas nossas vidas. 

Uma das coisas mais interessantes da solidão é oque ela é: é matéria prima pra alguns, que a transformam em poemas, poesias, em desenhos no instagram, em música; é motivo de desespero pra outros, motivo de choradeira e desvario. A solidão, como disse pra muitos amigos, é uma doença que há de afetar muita gente ao longo da vida, e talvez seja uma epidemia crônica muito grave, que poucos países e governos buscam tratar. E nos atinge quando menos esperamos: os amigos que resolvem todos se mudar de cidade, ou resolvem casar, ou nosso círculo de amizades e pessoas próximas que se reduz absurdamente ou depende de poucos elos que algum dia... pufff, simplesmente se desfazem. A solidão paira no ar, e vive como um monstro debaixo da cama, simplesmente esperando a fragilidade das relações humanas um dia ceder, dando lugar para pessoas como elas são quando longe uma das outras: frágeis e vulneráveis. 

Se eu já passei por isso?! Claro, muitas e muitas vezes!!! E sempre penso: como resolver a questão? 

Olha... eu não sei muito bem.... dia após dia eu tento e me esforço para não cair nesse poço: seja conversando com amigos, seja não criando dependência de elos específicos da minha rede de amizades (eu não disse "não criar vínculos", eu disse criar vinculos de dependência, oque não acho saudável), seja ouvindo podcasts enquanto sozinho (o top da minha lista e que tem me dado muito oque pensar é o "Modern Love", do Nytimes, um achado de humanidade neste mundo frio e cheio de guerras, impeachments, bolsonaros e trumps), seja me encantando com algo humano ou que vem da criação humana: quando isso acontece eu sinto mais uma vez que me lembro de onde vim e do que sou feito. Quanto à dependência dos outros da qual falei acima, me remete a um trecho de Fernando Pessoa no livro do desassossego:

A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti, se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.

[Fernando pessoa , número [283] do Livro do Desassossego ]


E isso me leva a este ponto: é triste ser sozinho? ..Hummmm não acho que essa seja uma questão válida ou mesmo justa. A solidão é parte da existência humana, e muito dos caminhos que vamos percorrer durante nosso crescimento vão exigir de nós aquele pequeno passo onde ninguém segura nossas mãos. Há um pouco de solidão nisso, mas uma solidão necessária para nos distanciar da forma como vivíamos ou observávamos o mundo até então. E isso me permite comentar parte da questão "interessantíssima" 😋 que eu mesmo fiz: a solidão em alguns momentos deve ser vista como uma antítese à nossa dependência dos outros, um remédio amargo à nossa dependência (algo patológica) de alguém, de algo, ou de alguma relação. A solidão é uma dor que é parte deste andar pelo mundo; um pequeno duende que se joga na nossa mala escondido, pra se fazer presente e visível em qualquer lugar em que estivermos.  a solidão não é tristeza, ela é parte de ser humano e de existir uma vida de dor, de separação, e de plenitude em suas pequenas e belas coisas.   

2 comentários:

Jessica disse...

Penso que há várias formas de interpretar a solidão. Tendemos a relacioná-la à tristeza e fragilidade, mas gosto da sua conotação no final do texto, trazendo-a para perto, vendo-a como uma oportunidade para crescer.
Estar bem consigo, ser seu próprio companheiro e ter com quem compartilhar suas vulnerabilidades talvez seja o melhor jeito de lidar com essa poeira leve e solta... Belo post, Dr! :)

Rafael disse...

Obrigado :)