quarta-feira, 1 de junho de 2022

5 dias entre o oriente e o ocidente: "uprooting" + dissociação + resignação + aceitação

É muito comum no processo de ficar longe de alguém que se goste de você se fragmentar: teu corpo está aqui, mas você está em outro lugar. Quando isso acontece vive-se num estado de dissociação: teu corpo te envia um informação, teu cérebro outra. Senti muito isso em diversos momentos da vida e não recomendo pra ninguém.

Acho que a coisa que mais me foi difícil nesse trajeto pra nova casa (Brasil) foram os perrengues ligados a esse estado de ouvir uma coisa, ver outra, e não saber bem como me situar. O barco estava a afundar, eu a ver que  estava entrando água... enquanto nos meus arredores ouvia coisas como "-que nada, é só uma cachoeira natural de água do mar", ou quando manifestava meu medo de que o barco viesse a afundasse, ouvia coisas como "-que é isso, pequeno gafanhoto...esperemos até esse barco aportar em terras brasileiras, aí conversaremos com calma e resolveremos isso..." Enquanto isso, a tripulação ia arrumando seus brinquedos nos barcos de resgate na surdina, eu a tentar estancar as rachaduras no casco do navio. Esse é o pior tipo de dissociação, pois vem de quem você confia: em casos assim, não sabemos bem oque fazer e passamos a duvidar de nós mesmos.

Em suma, um processo que gera algo do qual falei antes: uma espiral de destruição. Mas também gera dor.

Por um tempo carreguei mágoa disso. Pra que? Por que não primar pela transparência? Por que não sair a distribuir coletes salva-vidas a todos? Durou uns dias, eu a vilanizar parte da tripulação... até entender que isso não serve pra classificarmos uma pessoa com boa ou ruim: eu, talvez, teria feito o mesmo. 

Acho que aí está a chave da questão. Às vezes nos vemos tão violados por algo que nos fizeram que não conseguimos ver que somos igualmente capazes de machucar os outros. Isso porque não se trata de algo da pessoa, mas sim da estrutura do evento em si. E em condições iguais, faríamos o mesmo. 

[É um pouco como aquela idéia do hospedar o opressor, da qual o Paulo Freire fala: quando nos é dada a chance de agir e fazer diferente, a estrutura que nos cerca é a mesma daquele que nos oprimiu. Assim, agimos da mesma maneira. Vê-se isso em diversos processos históricos de etnias oprimidas que tomam o poder, e quando o fazem, dirigem a seus antigos opressores o mesmo processo de massacre e dor que lhes foi infligido.]

Vi que, no fim das contas, não há muito a se entender mais nessa estória. Isso por, simplesmente, não ser algo a ser depreendido pelo racional: essas coisas acontecem. Não há heróis nem vilões, nem tiranias injustificadas, nem repreensões das quais devamos nos envergonhar ou querer esquecer. Há, isso sim, lições enormes sobre o quão longe podemos ir diante da dúvida e da dor: no fundo, sucumbimos rápido.. somos humanos, oque fazer? Não conseguimos viver fragmentados, ou crescer em inconsistência.

Ontem, então, parece que me veio uma lucidez súbita que há dias vinha me tomando e não entendia muito bem. Consegui olha um pouco mais pra essa estória, com os olhos da gratidão, compaixão, e respeito... desde que essa viagem começou passei pelos vales da angústia, da incompreensão, do medo de perder, da resignação, do ciúmes, da incerteza, do sofrer, do ter em mãos oque se precisa mas não oque se quer, da mágoa …. até chegar aqui, ao vale do que talvez seja serenidade e aceitação....

..que se mistura a esse outro evento que me acontece: o de ser puxado pela raiz, "uprooting"...

Ontem e hoje deixei pra trás parte da minha estória. Mais um monte de gente veio me ver, passou na minha sala pra dar tchau. Meu colega indiano com os olhos marejados enquanto arrumava minhas coisas, me deu um abraço e me agradeceu pelos primeiros anos em que esteve aqui: me disse que não sabia oque teria sido caso eu não estivesse por perto pra rir das coisas junto com ele. Minha colega de natação caiu no choro depois do jantar de despedida. A secretária com os olhos cheio de lágrimas quando dei tchau... ninguém levou numa boa essa estória. Nem eu.

Fui embora pro hotel a passos lentos, tentando entender essa outra dissociação: como pode, ter sido um lugar tão estranho e desconfortável enquanto, ainda assim, envolto a laços tão significativos? E esse desenraizamento...porque tão difícil? O Japão, nessa cultura tão ambígua e de poucas palavras, me surpreendeu até nesses últimos minutos... uma outra amiga - antiga "language exchange partner" - me disse "-Raffaello... life is a mirror.. you get back from people what you give to them..." ouvi em silêncio.. me parecia justo demais pra ser errado. 

Hoje, no Shinkansen, vim meio que dormindo de cansaço das poucas horas de sono da semana... acordo desconfortável tentando entender esses sentimentos ambivalentes em relação a essas despedidas, a esse pedacinho do mundo que um dia disse que era meu, que um dia chamei de casa... será que vivi o tempo todo dissociado? Em meio a tantas questões sem resposta (respostas que há tempos parei de procurar) páro, e volto a rascunhar uma carta que há dias escrevo: meu aviso pra tripulação do barco que, diante de tanta informação desencontrada, agora sou eu que me embebedo de serenidade e começo a preparar meu barquinho pra sair mar a dentro:

"..eu sei... eu entendo oque vocês fizeram... eu também o faria, e na verdade, já o faço. Tanto que hoje deixo essa carta de despedida. 

Sigam em paz, que eu seguirei meu caminho em serenidade. Não culpo ninguém, nem tempestade tropical alguma... a estrutura das coisas nos forçou a isso... todo barco cede a intempéries e vem a afundar um dia. E, no todo, um barco é um reflexo da tripulação que o serve.

Guardemos as boas lembranças dos dias que aproveitamos na proa, a alimentar as gaivotas, a pular na água e brincar com os peixes, a voltar descalços caminhando pela praia...só nos resta a resignação de saber que de hoje em diante nosso barco há de morar no fundo do oceano, debaixo de água e sonhos.. Temos então que aceitar que esses dias debaixo d'água também são parte dessa estória de ventos fortes,  risadas e sorrisos que um dia construímos. 

Não deixo joinhas nem obrigados, pois não os trataria assim: saudadenorme, abraços e beijos a todos, 

Raffaello

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