domingo, 27 de outubro de 2019

...que poeira leve (solidão #I)



["Solidão", do [album "inventando o samba", por  Tom Zé]

Me lembro até hoje do primeiro show do Tom Zé no qual fui: ele tocou uma música chamada "solidão". A cada vez que o refrão dizia " o telefo..." ele fazia um sinal com a mão atrás da orelha, como se mostrasse aquela dúvida: "será que o telefone está tocando mesmo? Alguém me ligando?"

Sim, minha gente... o post de hoje é sobre ela: solidão. Algo - ou alguém- sobre a qual pouco falamos. Por que ninguém gosta de dizer "estou solitário", ou "estou só". É uma fraqueza pra muitos de mostrar sozinho, e discutir a questão é muito, muito difícil mesmo, pois as pessoas têm dificuldade de admitir que a solidão, como uma poeira leve, paira no ar cobrindo com uma tênue camada os móveis das nossas casas.

Anos atrás, logo que minha irmã havia saído da casa da minha mãe para morar com o marido, minha mãe me disse num telefonema: "-É tão estranho... vocês estiveram comigo a vida inteira, e mesmo ela, que nunca foi de conversar muito... agora sem ela essa casa fica tão vazia...". Claro, quando interpelada se aquilo era solidão, minha mãe rápidamente retrucava "..-não, claro que não..eu tenho um monte de amigos". Assim como eu, assim como muita gente: temos amigos, temos laços, temos pessoas que amamos. Mas que nem sempre estão presentes nas nossas vidas. 

Uma das coisas mais interessantes da solidão é oque ela é: é matéria prima pra alguns, que a transformam em poemas, poesias, em desenhos no instagram, em música; é motivo de desespero pra outros, motivo de choradeira e desvario. A solidão, como disse pra muitos amigos, é uma doença que há de afetar muita gente ao longo da vida, e talvez seja uma epidemia crônica muito grave, que poucos países e governos buscam tratar. E nos atinge quando menos esperamos: os amigos que resolvem todos se mudar de cidade, ou resolvem casar, ou nosso círculo de amizades e pessoas próximas que se reduz absurdamente ou depende de poucos elos que algum dia... pufff, simplesmente se desfazem. A solidão paira no ar, e vive como um monstro debaixo da cama, simplesmente esperando a fragilidade das relações humanas um dia ceder, dando lugar para pessoas como elas são quando longe uma das outras: frágeis e vulneráveis. 

Se eu já passei por isso?! Claro, muitas e muitas vezes!!! E sempre penso: como resolver a questão? 

Olha... eu não sei muito bem.... dia após dia eu tento e me esforço para não cair nesse poço: seja conversando com amigos, seja não criando dependência de elos específicos da minha rede de amizades (eu não disse "não criar vínculos", eu disse criar vinculos de dependência, oque não acho saudável), seja ouvindo podcasts enquanto sozinho (o top da minha lista e que tem me dado muito oque pensar é o "Modern Love", do Nytimes, um achado de humanidade neste mundo frio e cheio de guerras, impeachments, bolsonaros e trumps), seja me encantando com algo humano ou que vem da criação humana: quando isso acontece eu sinto mais uma vez que me lembro de onde vim e do que sou feito. Quanto à dependência dos outros da qual falei acima, me remete a um trecho de Fernando Pessoa no livro do desassossego:

A liberdade é a possibilidade do isolamento. És livre se podes afastar-te dos homens, sem que te obrigue a procurá-los a necessidade do dinheiro, ou a necessidade gregária, ou o amor, ou a glória, ou a curiosidade, que no silêncio e na solidão não podem ter alimento. Se te é impossível viver só, nasceste escravo. Podes ter todas as grandezas do espírito, todas da alma: és um escravo nobre, ou um servo inteligente: não és livre. E não está contigo a tragédia, porque a tragédia de nasceres assim não é contigo, mas do Destino para si somente. Ai de ti, porém, se a opressão da vida, ela própria, te força a seres escravo. Ai de ti, se, tendo nascido liberto, capaz de te bastares e de te separares, a penúria te força a conviveres. Essa, sim, é a tua tragédia, e a que trazes contigo.

[Fernando pessoa , número [283] do Livro do Desassossego ]


E isso me leva a este ponto: é triste ser sozinho? ..Hummmm não acho que essa seja uma questão válida ou mesmo justa. A solidão é parte da existência humana, e muito dos caminhos que vamos percorrer durante nosso crescimento vão exigir de nós aquele pequeno passo onde ninguém segura nossas mãos. Há um pouco de solidão nisso, mas uma solidão necessária para nos distanciar da forma como vivíamos ou observávamos o mundo até então. E isso me permite comentar parte da questão "interessantíssima" 😋 que eu mesmo fiz: a solidão em alguns momentos deve ser vista como uma antítese à nossa dependência dos outros, um remédio amargo à nossa dependência (algo patológica) de alguém, de algo, ou de alguma relação. A solidão é uma dor que é parte deste andar pelo mundo; um pequeno duende que se joga na nossa mala escondido, pra se fazer presente e visível em qualquer lugar em que estivermos.  a solidão não é tristeza, ela é parte de ser humano e de existir uma vida de dor, de separação, e de plenitude em suas pequenas e belas coisas.   

sábado, 26 de outubro de 2019

Blind spots

Semana passada eu sentei e escrevi nesse blog, chorando as pitangas, dizendo que nada acontecia, que cheguei a questionar essa busca incessante por sair do Japão e, simultaneamente, da academia. Aconteceu de, na semana seguinte a isso, 4 entrevistas aparecerem em mãos: uma pra Mini Apple, outra do Canada, outra pra Inglaterra, outra pro Brasil.

Aí você pensa: wtf, Brasil? É... nem eu esperava por esta. 

Uma amiga da qual eu fui monitor no Rio (eu terminando o mestrado, ela entrando) está há tempos no mercado. Ao contar pra ela que estava nessa missão de sair da academia e que gostaria de ouvir uns conselhos,  ela, que está procurando por funcionários, me chamou pra uma entrevista. 

Até aqui eu nunca havia realmente considerado o Brasil como uma escolha viável. Na verdade ainda acho um país bastante inviável em diversos aspectos. Agora... voltar pra fazer algo que gosto, ou pra começar em algo novo, e com minha família e amigos por perto, como suporte? Talvez... vai saber....

As outras possibilidades ainda são boas e interessantes, e de maneira alguma as descarto. Infelizmente, ontem eu mandei muito mal numa entrevista técnica pra Mini-Apple. Caramba... como fiquei mal com isso: abri a prova e vi um monte de questões sobre coisas das quais sabia que deveria saber, mas nunca havia estudado. Coisas que sempre deixei pra depois, e depois... e... acabaram caindo no meu "blind spot". Bom, seria injusto dizer isso, por que o blind spot contém coisas das quais não vemos e nem sabemos que lá está, mas neste caso... ali estavam coisas cuja existência eu não ignorava, mas pras quais nunca havia dado a devida atenção. No fim das contas, perdi um bom tempo com oque não sabia, oque me deixou com pouquíssimo tempo para responder oque sabia com cuidado. Ou seja... bombei no exame: a resposta veio hoje cedo.

Bom... vocês "milhares de leitores" que acompanham as narrativas fantásticas desse nblog maravilhoso já devem imaginar qual foi minha reação: catastrofizei totalmente o resultado. Vi pontes queimando, carros atolados, noites em claro, jururuzice etc. Mas tentei, e ainda estou me esforçando, pra aprender com a situação. É realmente normal e comum irmos com um pouco mais de confiança ("overconfidence") para algo importante e.... não nos sairmos tão bem quanto imaginávamos. Mais ainda: esse excesso de confiança nos leva à arrogancia de menosprezarmos o simples, os probleminhas que se resolvem com um gesticular de mãos, quando são neles que tropeçamos, como foi meu caso. 

Anos atrás, eu tropecei num ensaio do Terence Tao (um baita matemático, fields medalist e tal) que disse que quase não passou no exame de qualificação. Essencialmente ele diz que respondeu um monte de coisa errado, quando questionado sobre alguns assuntos, não sabia responder, e quando respondeu, algumas vezes deu a resposta para outros problemas. O relato dele está abaixo, e é um pouco técnico para não matemáticos (ou para matemáticos não analistas), mas dá para se ter um pouco idéia do que se trata. Achei simplesmente muito bonito (e acima de tudo humano) ele discursando sobre isso durante o obituário do seu orientador Eli:

 ... A key turning point in my own career came after my oral qualifying exams, in which I very nearly failed due to my overconfidence and lack of preparation, particularly in my chosen specialty of harmonic analysis.  After the exam, he [Elias] sat down with me and told me, as gently and diplomatically as possible, that my performance was a disappointment, and that I seriously needed to solidify my mathematical knowledge.  This turned out to be exactly what I needed to hear; I got motivated to actually work properly so as not to disappoint my advisor again.
[Terence Tao falando sobre Elias Stein, em Dezembro de 2018]

Sim, é horrível se embananar (voltando a esta palavra) diante de coisas simples, nos sentimos péssimos depois, mas acontece. Foi, foi sim frustrante, e saí da experiência chateado. Diante do cenário passado que não posso alterar, me esforço pra aprender com o fracasso, o convertendo em matéria prima pra "pontes" futuras. Como eu mesmo dizia pros alunos que tive: errar é parte do processo de aprender. Erre o quanto você puder, por que só assim você vencerá este estágio. 

De fato, acho que não tenho errado o bastante. Algumas coisas a se mudar - NÃO TUDO!! - e seguir adiante: mais firme, remando com direção certa.

Semana que vem, mais duas entrevistas. Desta vez vou me preparar com mais cuidado. 

domingo, 20 de outubro de 2019

Direto da Terra do Sol Nascente # 75: belicosidades

"-Oque que você vai fazer no Brasil em Dezembro?"

Ouvi isso do meu chefe esta semana, ao comunicá-lo sobre uma viagem para ver minha família. Na hora, fiquei desacreditado. "-WTF.... será que respondo a uma pergunta tão idiota?", pensei. "-Vou no Brasil pegar concha na praia e comer tapioca, sua anta!". 

Me calei, contido: não disse nada. 

Fui desenrolando a conversa. Abordei o xis da questão, o workshop idiota da empresa acontecer quase no final do mês de dezembro (oque antes acontecera no começo do mês). Me senti afrontado diante disso: onde já se viu, uma empresa com um monte de estrangeiros, fazer um evento desses no final do mês, ferrando todo mundo que pensa em viajar e ver a família?! Fiquei simplesmente puto, e fui conversar mais puto ainda com ele, disposto a construir uma outra ponte além das que já tento construir no momento; dessa vez uma ponte que me permita não participar dessa palhaçada: será que realmente tenho que ir nesse evento?

"-Claro que tem!", disse meu chefe. 

Claro!!!!! Sim!! Justamente!! Faz todo o sentido mesmo: trabalho na empresa, então tenho que ir no evento, mesmo que ele seja totalmente em japonês (num japonês super formal, do qual entendo quase nada), e no qual eu devo falar - melhor, me apresentar- por no máximo 2 minutos, se é pra ser como foi no ano passado (frisando: 2 minutos num evento de 5 horas).

Sem sombra de dúvidas.... faz muito sentido! 😋

Diante dessa conversa absurda na sexta, passei o domingo meio estranho1... logo debaixo do coração parecia haver uma pedra, daquelas que não deixam o rio fluir em paz, sabe? Minha cabeça embebida em raiva, eu imaginando belicosamente como abordaria a questão na segunda de manhã, numa outra reunião. "-Se as coisas não saírem como eu espero eu viro a mesa, 'chutopaudabarraca'", pensei por boa parte da tarde.

Foi interessante, me pegar assim raivoso, chutando pedras e abatendo nuvens a tiros: raramente sinto isso, essa hostilidade por alguém ou algo. Assim que senti isso e não pude me desenredar dessa pedrinha dentro de mim, sabia: "- eu não estou agindo racionalmente..." Foi o momento de parar pra tentar entender melhor oque estava rolando, a não me precipitar, a ver oque está em jogo, a ver como, em uma possível conversa, não me deixarei levar pela raiva em me sentir roubado, mas sim ouvir e falar com tranquilidade, e aceitar oque devo aceitar, sem fazer do chefe, pelo qual não nutro admiração alguma, um indesejável inimigo.

É complexo isso: quando achamos que alguém se põe no nosso caminho por maldade ou por pura falta de consideração, agimos como bicho: voltamos a ser instintivos, protetores de nós mesmos. A sensação é tão desagradável, que hoje saí de casa só para tentar difundir isso no meio, me sentir menos preso e definido só por isso. Enquanto caminhava, me lembrei de que esse sentimento, que mais parece um veneno, já havia me visitado: uma vez, enquanto na pós nos eua, puto que estava com o departamento onde estudava, com os docentes pros quais trabalharia naquele semestre. Sim; havia ali também oque havia notado neste caso: alguém, me roubando de algo. No caso, me roubando do meu tempo com minha família. Incrível como temos uma memória emocional que funciona como músculo: em situações semelhantes, (re)agimos e interpretamos o momento da mesma forma.

Me custou dividir a questão. Me custou olhar pro outro lado. Me custou abrir mão da minha belicosidade, da minha vontade de ir à guerra e fazer meu chefe ouvir tudo aquilo que tenho a dizer e que acharia justo ele engolir goela abaixo... não: entrar em guerra não é a melhor maneira de se resolver um embate.

Meditei um pouco. Amanhã, antes do trabalho, tentarei meditar mais um pouco: logo cedo terei outra reunião para abordar a questão da ida descabida ao workshop desnecessário... desconforto que espero, com calma e sabedoria, poder remover daqui de dentro do meu peito, onde ainda sinto que ele me cutuca.

[Como dizem mesmo no serenity prayer:]
[God, grant me the serenity to accept the things I cannot change,
Courage to change the things I can,And wisdom to know the difference.]



1Curiosamente, pulou um dia, pois o sábado foi relativamente tranquilo, e mal pensei na questão.





Direto da Terra do Sol Nascente # 74: boundaries

Dear XXXX
Many thanks for contacting me.
Unfortunately, I have no interest in working in Japan any longer. If you know of a job opportunity in the field of A.I. outside of Japan, then please contact me: I will consider that.
Best regards, 
Rafaelllo

sábado, 19 de outubro de 2019

Direto da Terra do Sol Nascente # 73: entre geodésicas e notas, apenas uma fuga de Bach

Entre hesitar, tentar, voltar pra casa e quase me encontrar em choro, como em derrota, me ver sozinho, em momentos em que não sabia muito bem em que direção seguir, digo: foi uma semana difícil.

Hoje, um pouco mais calmo, tentando vislumbrar luz que existe no fim dos túneis que nossas vidas parecem muitas vezes conter, peguei meu violão como não fazia há meses. Os olhos quase fechando, começo a tocar a fuga do BWV 998, pra notar que o encadeamento das notas, a forma como os dedos correm pelo braço do violão como a buscar os caminhos mais curtos e ótimos, caminhos que parecem buscar geodésicas, uma sucessão de beleza e lógica que se dá como numa reação em cadeia, em que cada pedaço parece ser nada mais que a mesma reação exacerbada, amplificada em significado e forma.


[Juliam Bream, tocando a fuga do BWV 998]

Me lembrei de quando toquei essa peça pela primeira vez, inteira, anos atrás ainda no Rio. Mesmo hoje, em que a alcanço de memória aos pedaços, como uma fotografia da qual só me lembro alguns pedaços, consigo sentir oque me motiva a procurá-la, ainda sinto tudo aquilo que faz com que meu interesse se mantenha o mesmo: é, afinal de contas, o mesmo interesse que nutro por diversas outras coisas que orbitam minha vida - matemática, desenhos, desenhar etc. Enquanto dedilhava hoje me encontrei como numa ilha, onde toda a imensidão do que me cerca não conseguia siginificar mais do que o conforto que uma simples sombra (em forma de notas e ritmo) pôde me oferecer. 

Fazia tempo que não sentia isso... vai ver preciso de férias, mas férias em que tenha gente, família, pessoas que amo por perto. Por que, mais do que tudo, não foi apenas uma semana difícil: foi um ano inteiro difícil, que vislumbrei de uma forma mas se ofereceu pra mim de outra maneira; ano o qual ainda estou tentando entender e aceitar.


quinta-feira, 17 de outubro de 2019

Direto da Terra do Sol Nascente # 72: the great wave (aftermath)


[Nelson Cavaquinho, Juizo final]


Meio tarde já, mas aproveito pra dizer que, apesar dos milhares de alertas do governo dizendo que o mundo caía lá fora durante um tufão que passou por aqui, mensagens estas que mais tarde se transformaram num aviso de evacuação da área onde moro (que é próxima a um rio) não houveram danos: todos aqui em casa estão bem, eu, Gardênia e Kinoko-san.


domingo, 13 de outubro de 2019

Direto da Terra do Sol Nascente # 71: diferentes focos

Tão estranho essa semana,
ver o Brasil celebrando uma nova santa canonizada,
enquanto o Japão  celebra nos jornais mais um prêmio Nobel
(desta vez em química).

Motivo de orgulho varia drasticamente a depender do país/cultura geral.

Ler sobre o  Brasil às vezes corta meu coração 💔

sábado, 12 de outubro de 2019

Direto da Terra do Sol Nascente # 70: the great wave



Aquela chuva do post anterior não parou até agora. Oque era uma chuvinha pela manhã virou uma torrente de água non-stop caindo do céu: tufões realmente são algo à parte... não exatamente chuva.

Meu celular recebeu umas 10 mensagens de alerta da prefeitura hoje, dizendo que certas áreas da cidade deveriam ser evacuadas. Uma delas, traduzida pelo google translator, indicou a área perto do rio onde moro "evacuate do the nearest strong building or evacuation center..." Me pergunto oque fazer. Alguns amigos japoneses me enviaram mensagens perguntando se estava tudo bem, disseram que eu deveria sair ... será que o rio pode subir 10 metros?!

Um terremoto pequenininho apareceu por hoje: dentre chuvarada interminável é o menor dos males. Leio sobre a visita indesejada do tufão no jornal... é desastre atrás de desastre nesse lugar... como pode?

Bom...se é pra ser desalojado de casa, ao menos vou escovar meus dentes, arrumar um lugar seguro pra gardênia e kinoko-san (uma girafa e uma kokeshi de madeira que moram aqui em casa) e ir.

Envio notícias em breve (do fundo do mar?)

[The Beatles, Yellow Submarine]

Direto da Terra do Sol Nascente #69: Endurance II (colaboradores)



[foto do Endurance preso no gelo, por  Frank Hurley]


Uma semana de pleno marasmo, de brisas que vem do sul se intensificarem num tufão que assola grande parte da mainland japonesa. O céu lá fora amanheceu e permanece cinza, com pitadas de chuva que intermitentemente se tornam fortes ou fortíssimas... especialmente quando você está na rua sem guarda-chuva. 

Sigo, aqui na terra-do-sol-nascente-que-na-verdade-hoje-não-nasceu, lendo Shackleton, estarrecido diante de uma viagem de tantas dores e com uma riqueza de interações humanas tão grandiosa: uma equipe se desentendendo à beira da fome, os momentos em que a ordem superior era admirada, as horas em que as decisões superiores desandavam em discórdia e dúvida sobre o quão efetivas realmente eram, o medo à beira da morte, o frio, um homem que quase chora ao ver seu leite derramado (literalmente), a compaixão... Me admiro ao ver (sob meus olhos, claro) tantas analogias entre essa jornada e meu caminho, que parece não ter rumo fixo e ter que ser recalibrado no compasso de tempos em tempos a depender da direção que o vento sopra. 

Esta manhã acordei com um email de um colaborador da época de doutorado, que me perguntava se gostaria de estender um projeto que fizemos a um novo projeto, oque me fez refletir sobre o grande contraste que são/foram minhas colaborações em terras nipônicas e em águas americanas/européias. Escrevo na minha cabeça a resposta: "não poderei, sigo um outro rumo agora... " mas busco não cair em ansiedades de antecipar minhas palavras, que hão de chegar no momento adequado. Tento refletir se é algo cultural "-é mais fácil colaborar com ocidentais", mas me repreendo por pensar algo assim: uma cultura influencia, mas não molda integralmente o caráter dos que vivem nela. Minha mente se prende em memórias: sentar numa mesa com um grupo e só ouvir silêncio do outro lado, que se olham entre eles à espera de alguma palavra do "chefe", é realmente algo estranho/novo... a hierarquia interna de outros grupos, o porquê das pessoas trabalharem em algo... me pergunto, como me perguntei várias vezes nesta semana, se essa dinâmica em que eu acabo tendo que tomar mais espaço do que gostaria numa colaboração (ou seja, uma relação de trabalho "desequilibrada") nasce em virtude da minha natureza, ou por conta da natureza interdisciplinar do que tenho feito e buscado ultimamente. Há ainda outras questões em paralelo: "-será que gosto de trabalhar com quem trabalho? Os admiro, admiro o input deles?" Às vezes é difícil ser honesto consigo mesmo e procurar, dentro de si, a verdade, se é que existe uma. 

Não tive muitos colaboradores e, como disse antes, tento me abster de generalizações quanto à cultura baseadas só no que vivi: recrimino essas linhas de raciocínio por que sei que afunilam a idéias errôneas sobre oque realmente se passa e margeiam raciocínios simples e enganosos sobre os outros. 
[Lá fora, mais chuva...]
Leio, procuro entender o porquê das minhas colaborações com ocidentais terem fluído melhor ("-... porque sou ocidental?") do que com japoneses. Me recordo de leituras sobre retratações de artigos científicos ao redor do mundo  e sobre ética e fraude em ciência (este último focado em acedmia japonesa). Tento encontrar uma luz pra tudo isso, pra natureza de interações de grupo tão fracas, em contraste com outros grupos em que a conversa flui e cada parte parece querer  ajudar as outras, além de ter a clareza dos seus afazeres. Recordo de um artigo antigo do nytmes, What Google Learned From Its Quest to Build the Perfect Team, sobre toda a complexidade por trás de gerir, crescer e criar em grupo... me pergunto se a culpa é minha...

Minha mãe sempre disse que meu pai gostava de ser o melhor dentre os piores. Nunca entendi bem essa frase, e sempre a achei mais "bitterness" entre pais separados do que qualquer coisa do tipo. Mas me surpreendi, anos depois, ao conversar com meu orientador de mestrado, logo antes de eu ir pros EUA estudar, que me dizia que eu nunca deveria me deixar abater por não ser o melhor, mas sempre olhar ao redor para e perceber ver se/que trabalho dentre (ou com) os melhores1. Ouvi um pouco minha mãe ali; como uma antítese sobre duas personalidades distintas, a frase ressoou em minha cabeça umas tantas e tantas vezes... ainda mais vezes desde que cheguei aqui. Frase que me vinha à mente enquanto tentava entender (oque levou os  4 ou 5 primeiros meses) que a falta de ar e angústia que eu sentia ao ir trabalhar com um grupo gerido por um matemático bem sênior daqui (que se aposentou já) era não outra coisa senão falta de admiração pelos que me cercavam. Todas as vezes que isso acontecia era acordar de um sonho na mini-apple, e cair aqui, preso com aquelas pessoas em silêncio, esperando o chefe deles dizer algo. 

Realmente, uma situação tão sufocante que beirou a depressão. E como disse, levou uns 4 meses e diversas idas à terapia pra entender oque buscava, para poder "break away" da segurança em manter laços com antigos colaboradores "overseas" que me serviam, de certa forma, como porto seguro, e para romper com oque vinha daqui, que mais parecia vir pra afundar meu barco doque qualquer coisa.  Encontrar paz em mim mesmo, aceitar que em algumas jornadas eu estaria sozinho, e procurar entender quando devo ceder por humildade, quando devo me resguardar e remar meu barco pra um outro lugar. 

Talvez o Japão tenha vindo no meu caminho pra me ensinar um pouco de tudo isso. 



1 Ele na verdade não falou exatamente isso, embora tenha sido dessa forma que depreendi suas palavras

terça-feira, 8 de outubro de 2019

Direto da Terra do Sol Nascente #68: Endurance

Nesse ínterim em que construo meu navio de saída dessa ilha, mas ainda em contato com o meio acadêmico, me bate aquela angústia gigante em querer ir embora o mais rápido possível. Mas a vida parece ter sua inércia, e querer que tudo leve mais tempo do que eu gostaria. Paciência.... minha jangada vai levar mais tempo para ser construída.

Sempre há coisas para se mudar, e caminhos outros que podem ser percorridos: emails que podem e devem ser enviados, mais "nãos" a serem ouvidos antes de um "sim" etc etc. Recentemente li mais sobre Shackleton (explorador marinho) em sua tentativa de cruzar a Antártica, pra qual foi com um navio chamado "Endurance". No entanto tudo sai diferente do planejado, ou melhor dizendo, tudo dá errado: a viagem não só termina em beco-sem saída como todos quase morrem. A situação era tão, tão tensa, que só uma pessoa com tanta fibra pra poder manter um grupo à beira da morte em coesão; para tanto Shackleton  buscava fazer teatros, jogos e até, nos dias de fome e falta de comida, fazerem uma leitura do livro de receitas em voz alta, ao que todos os homens presentes davam sugestões de como aprimorar o prato. E os percalços não param por aí: uma estória mais complexa e difícil segue a outra. No livro (do Alfred Lansing) lê-se que o navio que os levou pra Antártica em certo ponto teve que ser abandonado no meio do gelo, pois os icebergs, depois de prendê-los no gelo durante um inverno inteiro, comprimiram e comprimiram o navio até quebrá-lo... imagina, você ver a sua única chance de ir embora pra casa se desfazendo diante dos seus olhos?!! Pqp, isso não é pra qualquer um... "Endurance"...  nunca vi nome mais adequado. Penso em mim, e nos mínimos paralelos de uma vida de um homem que se nutre de algumas lembranças que dão força pra que ele continue a seguir adiante e buscar voltar à "civilização" (ocidental).

Estou em Sapporo hoje, que me traz memórias vívidas da Mini-apple, cidade distante mas que ainda guardo comigo. Difícil não andar pelas ruas largas daqui, sentir o frio de Outubro, e não lembrar de tanta coisa, não me imaginar ao fim do dia pegando minha bicicleta, passando na frente do café onde estudo nuns fins de semana, e chegando em casa são e salvo pra salvar energias e abraçar o dia que está por vir. 

Ontem jantei no topo de um prédio, não pude deixar de olhar pras luzes lá embaixo e me lembrar de São Paulo, com seu caos de dias de chuva. Lembrei do vídeo que me chegou essa semana, do sobrinho dando os primeiros passos. Uma alegria estranhamente triste ver as coisas acontecendo de tão longe, sem ter a perspectiva de diminuir tanta distância... ao menos antes a previsão de visitas pra mitigar a saudade eram mais claras. Aqui no Japão... a coisa muda de figura. A cada vez que penso nisso me bate uma angústia maior ainda, que tento serenar com mais esforços pra sair daqui. 

Bom, senhor momo.... nada de mimimi: vou lá fazer mais coisas pro meu portfólio/cartão de saída da academia. 


sexta-feira, 4 de outubro de 2019

Com os pés, com as mãos, e com a cabeça

Há anos atrás aconteceu algo inusitado no Brasil: logo no final do ano, uma emissora de TV colocou em suas vinhetas natalinas pessoas em suas roupas de trabalho desejando feliz natal para os expectadores. Uma dessas vinhetas, com lixeiros desejando feliz natal, foi ao ar antes de um telejornal diário, e sem saber que o áudio estava vazando para os ouvintes, o apresentador do programa começou a esculhambar a vinheta e os lixeiros nela, dizendo que eram os seres mais baixos na sociedade etc etc

Claro, o público caiu em cima, e o apresentador se retratou (não sei se fez mais que isso, ou se realmente pensou no peso do que havia dito).

Na mesma época, o Chico Buarque apareceu num trecho de um de seus DVDs falando sobre uma babá que trabalhava na casa dele:



Os dois casos vieram à tona há um tempo já, e ficaram na minha cabeça ali no final do doutorado começo do pós doc, quando estava numa baita crise quanto ao que fazia: sentia que precisava voltar às origens, a colocar a mão em algo, ver algo acontecendo, sendo criado. E interessante que, pra mim, havia um grande valor em alcançar o palpável, ausente de abstrações matemáticas, diametralmente oposto à minha pesquisa na época, que ia daquele jeito,  pesquisa de um pós-graduando inseguro e assustado ("-Será que conseguirei criar algo? Entender algo?", era uma pergunta que me fazia reiteradas vezes). Ao encontrar o motorista de caminhão durante a viagem recente, senti dentro de mim mesmo o contraste que vivia ao fim do doutorado: o contraste entre o homem que eu era, que trabalhava a cabeça, e o homem que eu gostaria de ser naquele momento, trabalhando com as mãos0 .

Foi uma época bem estranha, em que ter uma tese, um paper, parecia brincar de bolha de sabão: não conseguia sentir nada em minhas mãos (curiosamente, dizia bastante em terapia sobre sentir os braços fracos). Esse encontro durante a viagem foi um pouco isso: eu me ver diante de mim mesmo mais uma vez, e essa pergunta " -Oque tenho nas mãos? Oque eu realmente faço pro mundo? Oque posso oferecer pros outros?"

Ao que parece, no entanto, eu fiquei desajustado diante do desconforto do rapaz, que ficou nitidamente em choque diante do contraste entre esses dois mundos (embora muita gente fique). Mas me perguntei na hora: será que reagimos assim por conta de prestígio social que, sem nem percebermos, invade a forma como  vemos um o outro? Será que ele me achou um esnobe arrogante simplesmente por ser um homem que não trabalho criando nada, que não trabalha com as mãos? 

É raro falarmos sobre isso: relação de status social de profissões é algo histórico que perdura há gerações. Nobres nunca trabalhavam, e a nobreza portuguesa então, que há pouco mais de 100 anos ainda mostrava suas penas à alta sociedade brasileira, era das mais preguiçosas possíveis. Isso sem falar na escravidão, que o Brasil foi o último país do planeta a extinguir.  Em resumo: nós brasileiros nascemos num berço de mau-exemplos, onde o trabalho de mãos estava concentrado nas mãos dos menos favorecidos.

E então voltemos a mim. Sempre achei um pouco estranho esse trabalho sem as mãos, que só sei e sinto que é trabalho por que me cansa (sim, cansa muito). Lido bem com esses contatos entre mundos díspares: com marceneiros, construtores e artistas em geral eu sempre consigo encontrar analogias óbvias entre oque fazem e oque faço. Mas no caso recente... fui pego de surpresa com a reação do rapaz, e me vi sem analogias quaisquer nas mangas: parecíamos sim dois seres que se avistam pela primeira vez numa manhã escura e, por mais que se pareçam, são ainda estranhos. Ainda assim, mesmo diante dessa barreira, desse "oque será que tem do outro lado?",  tentei puxar conversa e encontrar alguma similaridade. Mas não rolou: o rapaz (italiano) não se fez muito interessado em mim, ou no que tinha a dizer. Ou ficou estarrecido mesmo.... talvez eu ficasse assim se encontrasse um youtuber, ou um influenciador digital (uma amiga encontrou um uma vez, disse que não sabia muito bem oque pensar).

Terminado o café da manhã na mesa comunal, seguimos cada um pra tuk-tuk1 diferente, para seguir viagem pro mesmo nascer-do-sol em Angkor Wat, um longe da vista um do outro.2
.


0  Talvez não necessariamente isso, mas sim criando algo. 

1 Se você não sabe oque é um tuk-tuk, é como nesse vídeo.





Curiosamente, o encontrei várias vezes ao longo da tarde. Nos cumprimentávamos amistosamente com um "hello", até mais do que com muitas outras pessoas que reconhecia de vista do hostel.

Direto da Terra do Sol Nascente #67: mais um dos mesmos dias de um pesquisador

É sexta-feira. O dia amanheceu coberto de cinza, o céu esbranquiçado que nunca parece ter visto sol e azul na vida.

O dia me enche de sono.

Persisto no trabalho, tentando aprender algo, tentando me interessar por algo. Mas sou atacado pelo torpor dos finais de semana, que me impede de fazer muito, que o diga de fazer algo de útil.

Olho para os colegas ao redor: um lê notícias; outros, com uma máscara nos olhos, tira uma soneca vespertina. Produtividade à la Nihon: um tanto diferente do que se ve no ocidente. Enfim... não posso dizer muito, pois entre uma crítica virulenta e um olhar de soslaio, olho pro meu note e me dou a liberdade de escrever sobre a vida como funcionário no Japão de uma empresa japonesa.

Os últimos dias me trouxeram mudanças. Abri um pouco mais os olhos para olhar ao redor e pude tirar umas lições. Adicionei cores, cortei palavras, poli até chegar a um estado mais "vendível" de mim mesmo e meus skills. Vai ver a melhor maneira de se sair do Japão é substituir o tempo da soneca sagrada que eles tiram por horas dedicadas a olhar pro mundo lá fora em busca de atenção. "-Eiii!!! Olhem pra mim!!! Estou aqui no Japão, mas quero sair daqui!!!" Talvez, como um náufrago perdido num farol, este sou eu fazendo sinais a navios pelas suas atenções.

Mas bom.. acabou os 10-15 minutos de desculpa: preciso ir, encarar um notebook que enrolo há dias para terminar de implementar.

Que a força esteja comigo (e me proteja do sono).