sexta-feira, 24 de setembro de 2021

Direto da Terra do Sol Nascente #116: A-RAS-SU-KA

 Alaska. A-RAS-SU-KA. Grande e vermelho. Vejo daqui, da minha janela.

Tão bom sair de casa. Andar por outras ruas. Desprogramar. Isso, desprogramar uma vida de rotina, de atalhos que nos fazem escorregar pelo mundo de maneira óbvia, sem mais explorá-lo. 

Alaska. A-RAS-SU-KA. Um pedaço de gelo sobre a cabeça. É que bati agora há pouco, numa quina de um móvel. Pqp. Sangue. Ao menos com tão pouco não fico mal. Aguento. Sigo. tomo rumo. Lá vou eu, pelas ruas com um saquinho de gelo na cabeça. Não mais perdido, pois as ruas começam a me ser um pouco mais as mesmas. 

Quanta gente mais velha... pouca gente nova. Me pergunto oque é crescer numa cidade tão pequena. Ando. Olho pra dentro dos poucos cafés. Crianças no pós escola, sentadas, estudando juntas. Uns poucos jovens, 20-30 e poucos anos, descolados.... "-Ahh você vem de AAAA você conhece XXX-san? Um que usa um chapéu bem grande? " Pelo visto todos os descolados de cidades pequenas se conhecem nessa pequena terra do sol nascente.  Me pergunto oque seria ter ficado. Oque seria andar sempre pelas mesmas ruas. Oque nos faz ir pra tão longe, ficar tão perto, partir, voltar....

Alaska... você já foi?! Dizem que é lindo. um casal de amigos estão com planos de se mudar pra lá. Uma amiga, ex-roommate, mudou pra lá uma época. Vivia me convidado pra ir visitá-la, conhecer o então namorado e curtir uma neve. Achei melhor não ir... ela era meio doida. Me perguntava oque levaria uma pessoa pra um lugar tão remoto. Beleza? Curiosidade? 

Será que o Japão é remoto? Será que eu sou descolado?

Estava lendo um livro, da Esther Duflo e do esposo dela, em que ela fala sobre as origens de tanta migração, do porque das pessoas migrarem etc. Comecei a me perguntar se o meu motivo para migrar não foi outro senão uma anomalia. Anomalus migrantis: espécie estpupida que percorre o mundo a esmo, não foge de guerra, de violẽncia, de perseguição política... hei... será que fujo? Da pobreza, da desigualdade abissal que separa ricos e pobres no Brasil, da fome estridente que salta aos olhos e dói na alma, da estupidez das elites aristocráticas e egoístas (bom...nisso o Brasil não está sozinho), da classe média sempre-assustada-com-medo-de-perder-o-pouco-que-tem, das favelas que sobem os morros?!?! 

Faz tempo que não nos vemos, Brasil.... será que você mudou algo? Será que estou sendo injusto contigo? Será que teus abraços mornos não viraram nada mais, nada menos que um toque frio "à la Alaska" de um parente distante que se ve uma vez a cada 3 anos?

Era só pra ser uma viagem. Marcar o fim de um ciclo. O fim de uma era. Alaska? Bem gostaria: ver um alce, um urso, tomar um suco de berrys com gelo da rua... férias...yasumi... pena que tá acabando.




quarta-feira, 15 de setembro de 2021

Intimidade

Foi num sonho. Uma moça com a qual saía enquanto no Brasil, há muitos e muitos anos. 
Conversávamos como se estivéssemos de saída, como se passássemos muito tempo próximos (emocionalmente). Confortáveis um com o outro, diria. 

Íntimos. Ou quase isso, como vocês verão em breve ;)

Ela me descrevia oque trouxera pr'aquela viagem, oque queria fazer, com a casualidade de encontros múltiplos que só o universo dos sonhos nos permite (dados tantos milhares de quilômetros de distância). "Trouxe o vestido...." e por aí vai..

A conversa se estende, e vai para o banheiro,  onde eu estou escovando os dentes e ela falando comigo. Aí, no auge da conversa-intimidade, ela se senta e faz xixi.

Isso. Como se não houvesse amanhã ou barreiras entre nós. 

No sonho, oque mais me deixou surpreso, foi a súbita sensação de estranheza daquela cena. Me senti como no "eyes wide shut", do Kubrick, logo no comecinho.



Eyes Wide Shut, by Stanley Kubrick (1999) 
Opening scene (with Nicole Kidman & Tom Cruise)

O mais curioso foi, dentro do sonho, ter essa percepção da camada de intimidade - meio não desejada, mas ainda assim intimidade - que aquilo implicava. 

Há uma cena parecida num outro lugar, um livro do Garcia Marques (o Amor nos tempos do cólera, acho): a esposa está passando mal, aí o marido a ajuda a vomitar e tudo o mais. Aí, ele também meio bêbado, se levanta cansado depois de acolhê-la, e agora ele vai e faz xixi na frente dela. Acho que nunca havia me dado conta da estranheza da cena. Se não me engano a cena é narrada sob o ponto de vista dela, que relata a força com a qual ele urina, a masculinidade daquele barulho, daquela brutalidade.... 

....vai ver só "acordei" pra esse detalhe enquanto dormia, ao sonhar.

domingo, 29 de agosto de 2021

A encantável geometria do desconhecido

 Já vi de tudo nessa vida. Bom, nem ouso enumerar e já me corrijo: já vi muita coisa. Não, me corrijo mais uma vez: já vi algumas coisas nessa vida. Umas poucas, digo mais humildemente. Vai ver por conta disso me surpreenda tão pouco com oque vejo: nada é novo, tudo é uma reelaboração de uma velha piada. Viver é um marasmo constante. Talvez, a arte de viver bem seja saber extrair poesia da seiva da mesmice.

Só sei que ontem, num repente de meio de conversa de vídeo, tive contato com algo novo: fui apresentado a um vibrador feminino.  
Fiquei intrigado: como é que.... por que será que.... como... porque tem esse formato? Fiquei mudo. 

Me senti como um ponto diminuto se deparando com uma geometria inimaginável. Como uma equação relativística que diz que espaço e gravidade se imiscuem como dois amantes inseparáveis, ali estava algo que - talvez mais surpreendente que qualquer desses fatos científicos - me estarreceu. Como será que um se conecta no outro? O peso de quem faz oque se curvar e mudar de forma? Incrível.... um objeto-pedacinho, ponto de curvatura infinita, vibrando sabe-se lá como e onde, em busca de uma orgasmica singularidade.  Nem Einstein explicaria como funciona.

Sei lá... tô meio perplexo ainda. 

[Um perplexo diferente do post anterior, diria.]

terça-feira, 17 de agosto de 2021

Pessoa-estátua

Por estes dias fiquei a me perguntar oque havia me deixado perplexo nessa vida. Na verdade me perdi um pouco mais, me perguntando como avaliamos um evento que nos atinge, previsível, ou algo inesperado, fora de qualquer horizonte de possibilidades vislumbradas. Me lembrei de uma surra que quase levei de um colega de escola que, eu então jurava, não seria pário para meus golpes fajutos de karate. Ou a prova de programação linear (otimização) durante a faculdade: fiz piada de todo o drama dos meus colegas de sala (que diziam que a matéria era difícil), disse que eram medos infundados, que a prova fora mais fácil do que imaginava, e até razoável.... e que jurava ter tirado no mínimo 8. Fui contemplado com um inesquecível 2.2., que carrego até hoje na memória.

Perplexidade, meus amigos...perplexidade. Um balde de água fria que nos demonstra o quanto nos aferramos a crenças infundadas, a idéias que no fundo não têm lastro. Talvez,nesse aspecto, a perplexidade seja um pouco como estarmos desnorteados: perdemos a total dimensão da direção que estamos indo ao nos darmos conta de que o compasso que nos guiava apontava na direção errada.

É curioso ter consciência da minha perplexidade. Talvez mais ainda é ver a perplexidade alheia. Vejo por estes dias a queda de Kabul, no Afeganistão, e a surpresa de todos que até então diziam que isso não aconteceria tão cedo (mesmo os jornais, até 2-3 dias atrás diziam que talvez demorasse um mês ou mais): Kabul jaz aos pés do Taleban neste momento. 

Me compadeço, me dói ver tudo isso.  Penso nessa surpresa toda e me pergunto o quanto dela não se dá por vermos as coisas superficialmente. Como as pessoas-iceberg que somos, assunto que discorri sobre no post anterior, há situações-iceberg, das quais achamos que se trata de um pequeno gelo mas que nos rompe o casco e nos naufraga em um piscar de olhos. Será que nos pautamos tanto assim em ver as coisas pela superfície? Nos aferramos tanto a imagens e a crenças que no fundo não tem valor quantitativo, qualitativo, ou causal, algum? 

Me lembrei de algo que ouvi o José Saramago falar há alguns anos, e que ele cita numa palestra que deu. Ele fala sobre suas obras, e faz umas referências ao livro Ensaio sobre a Cegueira:

"....durante catorze anos, me tivesse dedicado a descrever uma estátua. O que é a estátua? A estátua é a superfície da pedra, o resultado de retirar pedra da pedra. Descrever a estátua, o rosto, o gesto, as roupagens, a figura, é descrever o exterior da pedra, e essa descrição, metaforicamente, é o que encontramos nos romances a que me referi até agora. Quando terminei O Evangelho ainda não sabia que até então tinha andado a descrever estátuas. Tive de entender o novo mundo que se me apresentava ao abandonar a superfície da pedra e passar para o seu interior, e isso aconteceu com Ensaio sobre a Cegueira. Percebi, então, que alguma coisa tinha terminado na minha vida de escritor e que algo diferente estava a começar. 
O ensaio sobre a cegueira é a história de uma cegueira fulminante que ataca os habitantes de uma cidade. Poderia tratar-se de uma epidemia, de uma praga, isso não está explicado no livro nem importa, a única coisa que se diz é que a gente perde a visão. As consequências de uma cegueira com estas características são óbvias num mundo que, no fundamental, está organizado por e para o sentido da visão: todas as catástrofes imagináveis, e outras que nem queremos imaginar, acabariam arrasando a vida não apenas de um ponto de vista material, mas também destruiriam da noite para o dia todos os valores de consenso social, todas as regras, todas as normas. O homem converter-se-ia definitivamente em lobo do homem. Mas o autor crê que já estamos cegos com os olhos que temos, que não é necessário que nenhuma epidemia de cegueira venha a assolar a humanidade. Talvez os nossos olhos vejam, mas a nossa razão esteja cega. Não somos capazes de reconhecer que foi o ser humano quem inventou algo tão alheio à natureza como a crueldade. Nenhum animal é cruel, nenhum animal tortura outro animal. Têm de seguir as leis impostas pela vontade de sobreviver, mas torturar e humilhar os seus semelhantes são invenções da razão humana. O livro já não se empenha na descrição da estátua, é uma tentativa de entrar no interior da pedra, no mais profundo de nós mesmos, é uma tentativa de nos perguntarmos o quê e quem somos. E para quê. Provavelmente não existe uma resposta e, se existisse, seguramente não seria eu a pessoa capaz de oferecê-la. No fundo, o que o livro quis expressar é muito simples: se somos assim, que cada um se pergunte porquê."

Sabemos que somos propensos a uma infinitude de enganos, de apego a superficialidades, de jogadas de poeira pra debaixo do tapete, de apego a superficialidades... uma espécie de cegueira diante das atitudes dos outros, de situações, de nós mesmos, de fatos que ou  insistimos em negar ou que simplesmente não nos estão disponíveis naquele momento. Seria a superficialidade parte da condição humana? Parte da sua condição de pobreza intelectual, ou subserviência do seu pensar diante do seu sentir? Parte do avaliar só por cima, do achar que as pessoas são felizes pelas fotos que têm em rede social? De acharmos que alguém é importante pelos títulos que tem? 1

Em geral não existem miopia ao olharmos em retrospecto. Infelizmente, só quando olhamos pra trás, pois a cegueira parece ser algo intrínseco a nossa natureza... e vive nos nossos olhos a todo o momento.


1 Recentemente, lendo um jornal brasileiro, encontrei uma coluna de um "bonitão right-wing", presidente de um instituto do qual eu nunca ouvira falar (que, pelo vim a saber depois, é insignificante mesmo). Instituto este que ele mesmo fundou. Anyway, pelo visto a idéia atrai olhares, e sempre vai bem no Linkedin te o título de "head of", ou "presidente/CEO" 😛  

  

 

sexta-feira, 13 de agosto de 2021

Pessoa-iceberg

Pouca gente repara nisso, mas há algo muito comum nas pessoas que se expõe ou resolvem criar algo: oque elas mostram em geral é somente uma fração diminuta do que elas realmente criaram. E nem falo sobre o fato do trabalho ter sido reduzido, polido, enxugado a um produto final. Falo, isso sim, de só vermos aquilo que o autor considera digno (ou com algum valor) para chegar à luz do dia.


Acho que todos que criam tem isso, de uma maneira ou outra. Há algum tempo soube que o Prince tem um arquivo gigantesco de coisas que gravou em seu estúdio, mas que nunca considerou para divulgação (a família que está lucrando com essa estória). Adiciona-se a isso outros nomes: Jimi Hendrix, J.D. Salinger etc. Tudo oque essas pessoas publicaram em vida é uma ponta de iceberg diante daquilo que veio depois. É claro, há muita discussão sobre a legitimidade de alguém sair publicando coisas que estes consideravam indignas de serem vistas/ouvidas/lidas. Mas isso é outra discussão. 


Comecei a pensar nesta questão ao reparar em quanta coisa eu tenho que nunca achei que deveria ser finalizada, ou mesmo trabalhada a um produto final. Este blog, por exemplo: possui 694 posts publicados, e um total de 975 escritos, oque dá uns quase 30% de coisas que provavelmente nunca vou postar - ou por falta de vontade de terminá-las, ou por achar que não são boas, ou simplesmente por não ter mais tesão nelas. No que diz respeito a trabalho, a taxa fica por aí também: uns 30-40% em artigos esquecidos que nunca fui atrás de finalizar, de programas que não fui atrás de debugar, de pingos nos "i's" que deixei de dar.


Existe um equilíbrio enorme neste caso que tem dois extremos: uma pessoa que divulgue tudo oque faz (talvez este tipo de "artista" já exista; o Instagram está cheio deles haha) e, num outro extremo, um artista tão exigente consigo mesmo que não divulga nada.


Mas vamos fugir de extremos por agora e voltar ao mundo dos humanos "normais", que vivem num meio termo entre estes dois casos. Fico refletindo sobre as taxas de cada pessoa. Será que as pessoas têm isso? Será que existe um "quociente de aproveitamento/divulgação" de cada um? Talvez, como disse anteriormente, a questão nem seja o quanto se aproveita, porque ao sermos exigentes com oque deixamos "escapar" pro mundo damos sinal de senso crítico, de respeito por nós mesmos (e pelos outros), além de curarmos aquilo que criamos. 


Ao que parece, gerirmos nossas vidas como uma ponta iceberguiana que os outros vêem e uma parte "obscura", longe de olhos alheios ("longe de olhos alheios".... vou virar cantor de lambada depois dessa :) que pode até parecer inútil, ou lixo, mas talvez sirva como uma base de sustentação a tudo aquilo que chega ao crivo do mundo.


Me estendo então, e penso num outro iceberg - visível/invisível - que fica entre oque dizemos ou não. Claro, se não digo nada do que penso eu viro uma pedra. Por outro lado, se disser tudo oque penso - sem freios  ou amarras - posso acabar em sérios problemas (na verdade este último caso se trata de uma doença chamada "sindrome de Tourette"). 


[Mas por que comecei a falar disso tudo mesmo?] 

[Bom, ao menos dessa vez vou dar um destino diferente a este post, tirando-o do submundo dos posts que nem ouso publicar....]

terça-feira, 27 de julho de 2021

Entusiasmos numéricos, ma non troppo (parte 1)

Há algum tempo atrás aconteceu interessente: numa conversa por telefone com minha mãe, esta me contava entusiasmada sobre um presente que comprara para o seu neto (meu sobrinho). "-São uns bichinhos de esponja que crescem na água!! Ele vai adorar! Poderá brincar no banho e quando for pra praia. Diz na embalagem que eles crescem 600%!! ".

Ouvi aquilo e fiquei quieto. Quem sou eu pra ficar dando aulas de porcentagens e seus significados pra alguém? Fiquei na minha... a Matemática te dá essa virtude meio ambivalente (pra não dizer chata): a de te roubar a poesia de algumas coisas e de adicionar mais cor à outras... um tradeoff meio estranho mas que, no fim das contas, quem trabalha com números acaba por aceitar.

Até aí tudo bem. Conversa vai, conversa vem.... e minha mãe volta a insistir nesses 600%. Aí começou a dar coceira... pqp... será que eu falo algo? Fui desviando a conversa, andando pelas beiradas para não cair nesse abismo das divergências familiares. Oque: eu, ser chato? Nunca! Eu estava na minha, e ali fiquei enquanto pude. 

Resisti mais um pouco: ouvia minha mãe animada com a próxima visita do neto. Num ato zen, ouvia, imaginando como meu sobrinho deve estar, e me perdi em saudades de tudo e todos. Sustentei-me firme e bravamente. Mas aí, quando menos esperava, palavras duras me atingem como uma flecha. Uma não: 600. 

"-Mãe, me desculpe te dizer, mas 600% não é muita coisa... não sei como mediram isso, mas isso é no máximo 6-7 vezes o tamanho do brinquedo... não vai ficar do tamanho de...sei lá, um tiranossauro que não vai caber na banheira..."

[Silêncio]

Por alguns segundos ficou aquele silêncio no ar... um clima de decepção, como num presente de natal que não corresponde com o imaginado, como se uma esperada bicicleta acabasse virando uma meia mal embrulhada.... ou um eterno 7 a 1 que não acaba. 

Me senti um chato.

Mãe, me desculpe... da próxima fico quieto e falo pra vocês tomarem cuidado. 
Digo que é capaz do boneco crescer tanto que não caberá no apartamento. 
Ou que ganhará vida, e que com um carnívoro tão mortífero não se brinca.
Ou que o peso do boneco pode colocar a da criança em risco....


sexta-feira, 9 de julho de 2021

Direto da Terra do Sol Nascente #115: dias de marcenaria e patchwork

Essa semana foi bem estranha: estava angustiado até ontem, tentando resolver um problema absurdo que parecia sair do meu controle a todo o momento. Uma hora parecia que tudo funcionava,  noutro você tinha um boicote evidente, eu versus um supercomputador. Me senti, por alguns minutos, como Kasparov diante do DeepBlue. A máquina saiu ganhadora neste caso também (digo: ganhou diante da minha paciência).

Ou não.

Ontem eu saí do trabalho transtornado. Pensei: "vou pra casa chorar" hahaha Não, não foi pra tanto. Mas tava um dia daqueles, cheio de bugs até nas coisas mais simples que, até ontem, funcionavam. Aí disse pra mim mesmo "hora de ficar longe, ir escalar um pouco, tentar desanuviar a mente". E assim fiz. 

Hoje acordei mais tranquilo, fui com calma, vendo como eu poderia resolver tantos problemas ao mesmo tempo de maneira efetiva. E assim foi, de maneira meio infinitesimal, quase como se faz em escalada "na pedra" (fora): vai-se ganhando espaço/altura aos pouquinhos, conquistando terreno aos poucos... à tarde, já confiante do "xeque-mate" que preparava, fiquei pensando no que estava rolando. Qual era a lição maior por trás disso tudo?

Talvez seja a de que não existe como ficar harmonizando uma cadeia enorme de pequenas coisas conflitantes, pois ao se tentar arrumar uma acabamos por desencadear outras inconsistências. A "ordem do dia", que teci logo no começo do dia, foi a de colocar um protocolo único que todas as coisas deveriam seguir. Aí pronto: nada de ter que brincar de patchwork, emendando/consertando aqui e ali coisas que no fundo não se conectam. 

É interessante pensar nisso olhando pra trás, pois muitas vezes acredito que matemática (aplicada) é um pouco isso, uma sucessão de tecnicalidades que não difere muito do trabalho de um marceneiro ou artesão, que corta uma tábua, faz as marquinhas na madeira de onde vão os pregos, vê que deu errado, vai corta de novo outra madeira, dessa vez medindo(!), até dar forma àquilo que no começo era só uma idéia abstrata: uma cadeira, um teorema, uma desigualdade, um móvel...

quinta-feira, 8 de julho de 2021

Adultescência

Pensei há alguns dias em perguntar pra minha mãe quando ela havia se dado conta de que era uma adulta. Quando saíra de casa? Quando teve o primeiro filho? Quando uma conta de telefone chegou no nome dela? Mas mudei de idéia.... acho que minha mãe sempre foi adulta, não consigo imaginá-la criança...

Acho que, dessa pandemia, vamos todos levar algo: todos ficamos mais velhos e adultos depois dela. Será que por conta da nossa proximidade com a morte? Por termos sido lembrados constantemente de como somos finitos, de como todos os que amamos um dia vão morrer? A pandemia foi isso: um balde de água fria em todos, nas horas mais inoportunas. É vírus isso, é virus pegando no pé de jovens, de adultos, de idosos e crianças.... se você lê isso agora, acredite: você, assim como eu, só sobreviveu por sorte. 

É... eu fico meio assim de aceitar tal idéia. Acho que minhas medidas ultra higiênico-sanitárias foram uma barreira intransponível que vírus algum poderia vencer... quando na verdade não: bem provável que, se estivesse em algum outro país (por ex., Brasil, EUA, Índia) estaria lá eu, na maca do hospital, doente, temendo pela minha própria existência, e pensando em todos os 5 filhos que não tive. "-Eu pelo menos deveria ter casado e deixado um livro pra eternidade", aposto que pensaria. 

Pois bem... aqui me encontro com a sorte de um náufrago que passou pelo pior, mas agora se vê cercado de água, água e mais água. O desconhecido que nos cerca e no qual nos mergulhamos de corpo inteiro chamado... vida. 

Mas nem era bem por isso que comecei a escrever.... era mais pra comentar a sorte de estar aqui, e em como envelhecemos. Divagação não de agora, pois me colocou a lembrar de outra que tive quando adolescente, vendo aqueles livros de História com aquelas fotos antigas do Brasil, com aquelas pessoas de 30 e poucos anos usando bengala, barbas tão grandes que mais pareciam velhos de 60 anos. Por que será que eles queria envelhecer? Ou oque será que fez que envelhecessem tanto? Será que daqui a 100 anos alguém vai olhar pra nós e dizer "-Nossa... olha como eles eram antiquados...será que eles não tinham vergonha, gente de 20 anos andando com essa geringonça desse celular... mexendo no instagram?

Em suma: será que nós já usamos bengalas e não sabemos?

Fiquei na dúvida... ainda mais quando me peguei no espelho há alguns dias com a barba mal feita.... vi ali um prenúncio de Prudêncio de Morais ou algo assim (well... mais pareço aquele meu comparsa da pringles)... a vida me pregando uma peça, puxando meu tapete...e me envelhescendo sem que eu nem mesmo perceba. Talvez isso tudo explique essa dorzinha nas costas que ando sentindo...


sexta-feira, 18 de junho de 2021

Direto da Terra do Sol Nascente #114: um passeio no jardim dos privilégios

 Tomei a vacina hoje cedo. Primeira dose.

Olhei ao redor: eu dentre tantas pessoas muito mais velhas, gente de cadeira de rodas, pessoas com seus filhos e cuidadores, entre outras coisas. Eu estava ali porque consto como pesquisador visitante numa universidade japonesa. Sou grupo prioritário.

Nem titubeei muito nessa corda bamba entre o prioritário e o privilegiado. Me vi e vejo neste último grupo. Me senti meio mal, mas feliz, muito feliz em estar ali. Acho que tão feliz que talvez explique o porque eu ter escrito errado meu email de todos os dias no formulário eletrônico (sorte que era o "email backup"), e ter esquecido no escritório o documento que comprova que moro aqui (que carrego todos os dias, mas que hoje precisei pra um outro evento).

Em suma: um privilegiado afoito, mas feliz. 

Mas afoito e provilegiado. 

Mas privilegiado e reflexivo.

Fiquei com tudo isso na cabeça enquanto olhava ao redor. Tudo tão rápido, mal tive tempo de processar. Será que fico feliz em ver isso como um vislumbre de dias mais "normais" no futuro.. Normal nada nunca é ou foi, né? Talvez um "normalmente mais igual ao que era antes" talvez aplique... 

Fiquei pensando no Brasil, no que as pessoas lá estão passando. Nos desvarios desse governo que lá impera, no que foi meu caminho pra chegar onde estou (fisicamente, não no que diz a status: esse é nulo)... sorte. Provilégio e sorte.

Por estes dias me lembrei do MAUS, do Art Spiegelman, Há uma parte do livro que poucas vezes discuti, em que ele comenta sobre o fato de ser filho de sobreviventes de campos de concentração. Ele narra uma conversa com seu terapeuta, onde eles se debruçam sobre essa tênue linha de argumentação sobre os pais deles estarem ali porque foram mais fortes e resistiram às intempéries dos campos onde estavam. Aí o terapeuta vira pra ele e pergunta/fala: " é claro que tua existência depende da existência dos teus pais, deles terem se encontrado... mas o quão fácil é pra você aceitar que eles simplesmente sobreviveram por sorte?"

Fiquei pensando nisso... nessa ilusão cognitiva que veio tentar flertar comigo hoje, a de um  "-estou aqui porque percorri o trajeto tal" e uma outra narrativa, a de que simplesmente tenho sorte, uma sorte indissociada de um privilégio, dentre os muitos outros que carrego comigo.

Parece que discuto, tento descrever a sensação, mas ando em círculos. Assim como entrei, saí como se a vida fosse a mesma, como se o sol ainda ardesse a minha pele, com as mesmas preocupações idiotas de sempre "oque vai ser de mim depois daqui? Oque vai vir depois daqui?". Me senti mal e bem pelo ocorrido. Me senti flutuando nesse mar de ambivalências que a vida é, onde navegarmos por dubiedades é requisito necessário a todos. Segui nublado ao longo do dia, com breves pitadas de sol: ainda que reflexivo, não sabia como fazer diferente senão celebrar comigo mesmo o fato. 

Talvez, de certa maneira, seja sim uma vitória dos humanos como espécie, que busca formas de não ser erradicada do planeta que esta incessantemente destrói. Talvez eu só tenha que ficar quieto, ir dormir mais cedo, e aguardar pela segunda dose.


sábado, 5 de junho de 2021

Repita comigo, pequeno gafanhoto...

Sabe uma coisa que me deixa meio impaciente? 

Sabe?

Gente repetitiva. 

Aquela tia que fica falando mil vezes que o presidente não presta (ok, é óbvio, concordo)... mas é mesma coisa que ficar repetindo "a Terra é redonda" infinitas vezes. 

Vai ver é coisa de família... como é a tua? Por exemplo: meu pai é uma pessoa que tem o dom supremo de ser super repetitivo. Toda vez que o vejo quando visito o Brasil lá vem uma enxurrada de perguntas estapafúridas: "-E aquele vizinho que morava no andar de cima... que tinha um cachorro e uma esposa?".Perguntando sobre um apartamento onde morávamos há 25 anos atrás. 

E como uma sequência de clássicos que um velho cantor deve cantar para agradar seu público, meu pai sempre traz consigo as perguntas clássicas: "-E o Júlio?"... (que faleceu há uns 10 anos, e há 10 anos eu falo pro meu pai que ele faleceu. 

Em vão. 

Tento me devencilhar do assunto, mas sou fisgado com um jeb no queixo que me joga às cordas: "-Te falei do dia que eu encontrei o Júlio ali na praça da República?

Olho pro teto.... me pergunto se há alguma toalha branca a ser jogada para me salvar daquela conversa.

Aí me bate aquela angústia de me ver nessas conversas rasas de boteco, vendo e ouvindo aquelas mesmas perguntas sempre ali, sentadas na mesa com a gente. "-Minha vez!", uma delas diz, e se joga na mesa, querendo ser perguntada... "-E a filha da Maria... como é que ela se chamava mesmo?"

Fico pensando nisso e me exaspero um pouco... onde está a poesia disso tudo? Será que existe uma pitada de absurdo nisso, um quê de Ionesco ou de Becket na minha vida/família? (Seriamos nós rinocerontes?!) 

No meio de tantas reflexões sobre o tema (uma das quais postei aqui) vim a perceber há um tempo qeu eu, também, sou um repetitivo inveterado. Daqueles sem conserto: frequento os mesmos restaurantes, conto as mesmas piadas (minha mãe é mestra nisso), uso as mesmas expressões, vou sempre nos mesmos cafés... carrego comigo uma inércia que muitas vezes me aparece anormal. Me pergunto se outros seres humanos... digo, seres mais humanos que eu sofrem isso também. 

Será?

Muitas vezes me questiono.. me pergunto se essa limitação na verdade é uma intransponibilidade de qualquer caminho. Uma pedra no meio da trilha pro cume de qualquer montanha que não pode ser removida. Me lembro com cautela do "Zen in the art of archery", quando o autor fala de quando seu mentor se dá conta de que ele estava tentando "enganá-lo", usando uma técnica de tiro (a maneira de pegar a arma) pra poder atirar flechas e, finalmente, melhorar sua pontaria: o professor pegou o arco, caminhou até um canto.. pensou... e disse pra ele ir embora. A repetição era oque ele poderia oferecer, e que se o objetivo dele era só "conseguir algo", um "diploma", que este já lhe estava dado. Nem preciso dizer: o autor se desculpou, voltando pro esquema japonês de repetir, repetir, tentar, até assimilar.

Talvez, no fundo, seja uma limitação da qual muitos sofrem mas poucos se dão conta. Ou poucos se dão conta de como as repetições são tão cruciais na construção de muita coisa. Uma aliteração, um efeito que reverbera quando usado em demasia, um fenômeno que se amplifica como um olho de furacão, a adoção de um outro ponto de vista depois de uma segunda, terceira, ou mais leituras. Vai ver repetir é um pouco oque Fernando Pessoa dizia: é entrar no mesmo rio, sem que este rio seja o mesmo.