"Since I had nowhere permanent to stay, I had no interest whatever in keeping treasures, and since I was empty-handed, I had no fear of being robbed on the way"
[Matsuo Bashô , The records of a travel-worn Satchel]
Me envergonho.... Sim, me envergonho: de sempre ter desdenhado daquela linha, ou nota de rodapé que dizia 1
"os povos..... inventaram o número zero em ....A.C."
Sempre dei de ombros. Inventaram? Descobriram? É um número, como pode ser encontrado?
Por estes dias uma amiga que trabalha com crianças autistas no Brasil veio me trazer a seguinte indagação: um dos pacientes que tem só sabe contar com a comida que gosta, no caso maçãs. Todo pro rapazinho é maçãs, e com elas ele aprendeu a contar. No entanto o desenvolvimento dele travou quando chegaram no número zero: como representar algo que "não existe" pra alguém cuja mente é extremamente dependente em representações (no caso, por maçãs)?
Talvez como muitos, ao tomar um simples "0" como algo que nos foi óbviamente dado, perdi a dimensão da grande abstração que ele é. Dei meu braço a torcer: não foi uma invenção óbvia, seja em importância, seja em idéia mesmo. Imagino o pobre inventor sofrendo as piadas dos colegas:
"-olha ali fulano(a) de tal!! Vamos chamá-lo(a) aqui pra nos contar a grande invenção dele(a)"...e todos caiam na risada, rindo do(a) pobre inventor(a).
Não acredito que seja uma pessoa que carrega os louros dessa invenção: acho que de tão controversa que sua utilidade é, talvez tenha sido inventado, utilizado, reinventado e reutilizado diversas vezes ao longo da história. Pra vocês verem como é algo interessante: li uma vez que alguns povos indígenas na amazônia conseguem contar, mas não têm representação pra números maiores que 3: quando passa de 3 eles representam como "muito" 2.
Não voltei no assunto com minha amiga. Até tentei procurar por algo na literatura que a ajudasse a explicar o ponto em questão pra criança, mas tudo é técnico demais (até Malba Tahan) pra uma audiência especial como essa. Ao menos neste post faço uma mea-culpa em busca de redenção: agora que escrevo sobre o assunto, o removo das notas de rodapé e o coloco um pouco mais em evidência.
"De agora em diante, serás não trivial para mim...."
2 Em matemática isso é o equivalente a se compactificar um espaço, i.e., dando uma representação "física", ou "simbólica", pra tudo aquilo que foge de certo controle; no caso, o "infinito" deles. ↩
Uma das coisas que ninguém gosta de admitir na vida e que teve sorte:
Chegou
onde chegou? Trabalho árduo!
Ganhou muito dinheiro na bolsa? Descobriu como functiona (me
ensina! rsrs)
Fez uma pós? Porque estudou muito!
É difícil, em alguns casos, se ver que há sorte nos casos acima, principalmente no último. Acredito que poucos estão dispostos a olhar cuidadosamente pro que lhes ocorre ao redor, ou suas trajetorias, e pensar: será que foi acaso? E quando há ganho, "sera que
tive sorte ao longo do caminho?"
Ha uns dias um amigo durante uma conversa comentava sobre a minha trajetoria: "você não teve sorte alguma, você ralou...bla bla bla". Aí o interrompi e discordei
dele... disse que havia sim sorte na equação. Na hora não me lembrava de
exemplos específicos, mas sem dúvida: sabia que existiam. Me lembrei então de um caso
muito curioso: ainda quando morava no Rio, tive um semestre horrível com um
professor que, apesar de aclamado pesquisador, deu um curso péssimo, tanto em termos de didática quanto em termos técnicos. 1 Em poucas palavras: todo mundo
se ferrou no curso, e a maioria passou com sufoco. Eu fui um deles. Pra piorar,
o professor era mentalmente afetado. Sériamente perturbado.2 De agora em diante o chamarei de professor X.
Isso dá um idéia do cenário. Oque aconteceu comigo foi o seguinte: uma bela manhã, após o curso ter terminado, eu passei onde estudava pra finalizar uma coisa ou outra. Avistei meu então orientador no saguão, que ao me ver dá um sorriso e me diz: "-te salvei!". Eu, meio sem entender, pergunto de
que.
"- Essa manhã, encontrei o professor X na sala da secretaria. Ele estava pra
entregar o resultado das provas. Aí perguntei como você havia ido, e ele viu a
prova e me disse que você havia sido reprovado. Aí, ao folhear a prova, ele
notou... 'ahhh esqueci de somar a nota dele'... e viu que você havia passado..
então, te salvei, embora, na verdade, não te salvei, porque você passou sozinho."
Lembrei
desse caso com um certo frio na espinha, um certo pavor... Fiquei me perguntando: e se, diante de todo aquele
abuso de poder,3 será que eu teria voz para reclamar daquilo, dos desmandos de um professor
maluco? Que rumo teria eu tomado à partir dali? Um colega de turma acabou sendo expulso do instituto na mesma época, e se não me engano, um outro que não me era tão próximo foi reprovado no curso.
É difícil não ver isso como sorte... a sorte de ter sido ouvido? Ou de não ter que tentar ser ouvido... não sei... Nesses tempos em que olho de longe os EUA, vendo que as fagulhas de tanto ressentimento quanto à morte de George Floyd começaram numa cidade que tanto gosto... não há como não se dar conta de que ter voz é, sim, um luxo. E as estatísticas são horripilantes quando se pensa em ser negro no Brasil, ou nos EUA: inimaginável aceitar que voltar pra casa vivo pra alguns pode ser simplesmente uma questão de sorte... a exemplo do caso de um homem que observava pássaros no Central Park em NY: oque separa o destino de tantos do destino de George Floyd?
Sorte, azar, injustiça .... são conceitos tão próximos assim?
Coloquei as coisas em termos de sorte, de azar...mas vejam que isso não acontece só lá: acontece em todo lugar. Lembro de, nos EUA, o caso de um colega de doutorado, mais senior que eu, cujo orientador, ao comentar sobre o seu trabalho de tese com um outro matemático, teve a idéia "roubada" por este último, que logo adiante escreveu e publicou um artigo sobre o tema. Não deu outra: meu colega ficou sem tese, e desistiu no sétimo ano de doutorado.
Reclamar pra quem?
Azar?
O orientador da minha ex teve um infarto durante o PhD dela. Não faço idéia de como terminou essa novela (pois rompemos antes). Mas lembro dela ter que empurrá-lo contra a parede e falar "vai orientar direito ou não?"... e não sei como continuou aquele drama. Desconfio que se aprofundou com o tempo, embora não saiba: se ter um orientador ativo já é difícil, que o diga um ausente. Sorte, azar?... Outro caso em que a rigidez acaba prejudicando o elo mais fraco dessa cadeia; no caso, o aluno.
Sei que existem outras formas de se observar e considerar azar numa vida, mas em todos os casos que citei acima eles tocam no ponto do azar entremeado a uma relação de trabalho. São casos que envolvem um lado com mais poder que o outro, onde o dar certo ou não de certa maneira se equilibra na corda bamba da sorte (ainda mais quando se está no começo de uma carreira).
1 Algo que só fui ter competência, e distanciamento emocional, pra perceber anos mais tarde. À época, pela quantidade que estava
aprendendo, não soube atestar se era por mérito dele ou meu. Mais curioso ainda é ver como isso me faz ter sentimentos ambivalentes quanto ao lugar, que ainda tem tantas pessoas que gosto, como o tal ex orientador da estória. ↩
2 A ponto de talvez nenhum aluno ter alguma conversa decente com ele à época, ou se sentir à vontade para discutir uma questão de prova. Houveram casos de notas negativas em questões!!! Hoje em dia, depois de passar por tantos outros sistemas, eu vejo como isso era um triste caso de abuso de poder. Em outros países e sistemas, note-se, isso também acontece. ↩
3 Onde dificilmente um professor era
questionado em suas decisões, ainda mais por um aluno ou funcionário, sem retaliação. ↩
Há coisas que acontecem pelo mundo que, seja por curiosidade ou por preocupação, eu acabo lendo sobre. Uma delas tem sido este estado de ascenção das extremas direitas pelo mundo. Acabou caindo na minha mão o interessante The Light that Failed: A Reckoning, do Ivan Krastev and Stephen Holmes, que fala sobre essa crise do mundo como uma crise do liberalismo/mundo ocidental, buscando as raízes do mesmo láááá na queda do muro de Berlim, na crise de 2008, dentre outras coisas.
O livro tem uma parte interessante que fala sobre normalidade. "Oque é o normal", quando o normal é apenas uma idéia?
Eles citam o triste período de normalização, na República Tcheca, onde o país teve que se adentrar aos conformes do mundo Soviético pra, logo após a queda do muro, ter que começar a seguir um outro modelo: o capitalista, cujas regras lhes eram alheias. Nesta parte o livro envereda por explicar meio que por anedotas alguns casos em que o conceito de propina tinha que ser mostrado como algo ilegal para os líderes de países que antes estavam sob a cortina de ferro: "propina, dar ou receber, não é legal", assim dizia o ocidente para os líderes dos recém chegados países, que se perguntavam o porque do mesmo, e penavam pra se adequar aos novos "costumes".
Enfim... porque estou falando isso? Por que ontem estava nadando (finalmente, as coisas estão voltando ao "normal" aqui).. mas nem é desse o normal ainda que quero abordar. Aconteceu foi o seguinte: estava nadando, com ear plugs, mal conseguindo ouvir qualquer coisa lá fora. então, antes de sair da piscina, os tirei e.... pra minha surpresa, reconheci os acordes..
.."lua... estrada nua... olha pro céu imensa e amarela..."
[Luíza, por Tom Jobim e Edu Lobo]
[Pra você ter uma idéia do que tento descrever, você pode assistir o vídeo acima junto com o vídeo abaixo (este último, no mudo)]
E pensei "wow... essa música é linda... "... mas realmente, não é música de academia.
Fiquei pensando nessa estranheza, nessa "frase" mal colocada... me lembrei então da época do natal aqui no Japão, onde os japoneses, culturalmente disjuntos do conjunto "Natal", vão à loucura nessa época, com árvores de natal, com músicas natalinas em todos os cantos... "I.... lo-ve Chri-sss-tmas.." é o máximo que eu consigo me recordar de uma das canções que ouvi enquanto num café em Tókyo.
"-Pqp, será que não tem lugar nessa cidade que não tente celebrar um natal que não é parte da cultura deles?"
Não, não havia: os japoneses tentam celebrar algo que não faz parte da cultura deles o fazendo da maneira que eles acham que os outros fazem. Em outras palavras: eles tentam se "adequar" ao "normal" do ocidente... que eles devem imaginar, é tão insano quanto esse "I-lo-ve-Chrissss-tmas... tchu-bi-dooo" em cafés, embaixo da cama, no chuveiro, no trabalho, nos karaokes....
Pra falar a verdade, é um comentário meio injusto este acima. Na verdade não me emputece (não que eu esteja..mas faltou outra palavra agor ahaha... ) eles celebrarem o Natal- brasileiros até produzem neve falsa em shoppings!!! Oque me pega é essa overdose santa-claudiana que não nos poupa seja lá onde estivermos.
No entanto, é algo curioso imaginarmos que nada, no fim das contas, é original de lugar algum, que toda cultura na verdade tenta emular uma outra, que na verdade tirou de outra, que na verdade começou com algo muuuuito diferente que talvez nem fosse aquilo. É como uma evolução das culturas por mimetismo, adaptação, é mutação. Uma reinterpretação do normal (ou daquilo que se concebe como normal em outro lugar) de maneira "anormal" para os que já viram o evento em outro lugar, mas para os locais.... normal é.
E claro: não pude deixar de pensar se eles nos imaginam ouvindo bossa-nova em estádios de futebol, ou nas academias de ginásticas, ou em botecos apinhados de gente em vielas escuras....
Acho que foi ontem que o nytimes postou o nome de 100 mil mortos por covid19 só nos EUA. Vi a chamada, com aqueles nomes que mudavam, mudavam, e mudavam, sem nunca repetir....essa longa, enorme lista que se alterava em forma, nomes, estórias, vidas subtraídas... meu coração deu uma afundada: por algumas horas não consegui dormir direito.
A mãe de uma amiga de infância faleceu, mais uma vítima das ingerências do governo brasileiro.
Li recentemente que bilionários americanos ficaram 15% mais ricos durante a pandemia, e 16 novos bilionários surgiram. Me pergunto como pode, alguém poder lucrar diante de tanto sofrimento humano?
Tento não me fechar numa ostra e sofrer sozinho diante de tanta brutalidade: tenho ligado pra minha mãe todos os dias, tenho procurado falar com amigos. Em princípio, não estou mal. Mas dizer que esbanjo felicidade seria mentira: me sinto como um esporo, vivendo em estado latente à espera de uma vida que não vem, que não chega, não acontece, que pegou o trem errado e foi descer numa outra estação que não a que espero por ela.
Acho que só fui encontrar palavras pra isso quando recentemente me apontaram um texto do Damin Linker na the week, When time stops, quando, dentre outras coisas interessantes, ele diz
Human beings live their lives in time. Our sense of ourselves in the present is always in part a function of our remembrance and constant reinterpretation of our pasts along with our projection of future possibilities. We live for the person we hope to become. We look forward to who we will be a month or a year or a decade or more from now — and we commemorate the transitions from present to future with rites of passage celebrated in public with loved ones and friends. This makes us futural creatures. A high school senior applying for a university is living for the college student he hopes to be a year in the future. But what is a high school senior who can no longer look forward to a first day on campus next fall?
Mas talvez oque tenha resoado em mim mais fortemente é quando ele diz
A life without forward momentum is to a considerable extent a life without purpose — or at least the kind of purpose that lifts our spirits and enlivens our steps as we traverse time. Without the momentum and purpose, we flounder. A present without a future is a life that feels less worth living, because it's a life haunted by a shadow of futility.
É...pessoal... tá entrando água no barco... mas mantenhamos a calma. Tentemos abraçar (à distância) aqueles que podemos, tentemos ter consciência da dádiva que se é estar bem e vivo agora.... tentemos ser grato por tudo que temos (eu, agora, por estar aqui, sob o sol e brisa da manhã escrevendo), sem nos deixarmos perecer e cair diante de tanta, tanta dor pela qual o mundo passa agora. Infelizmente, não acredito que como sociedade sairemos melhores dessa crise. No entando, como indivíduos, torço pra que ganhemos uma visão mais clara sobre oque é justo, e sobre oque não é.
Estava refletindo sobre recentemente: nenhuma mulher que namorei, achei bonita logo de cara. Mas acho que todas tinham algo em comum: todas me deixaram com essa dúvida, uma curiosidade, do "é ou não é bonita? Por que me sinto atraído por ela?" Talvez, no fim das contas, eu sejo movido muito mais pela curiosidade em entender esse sentimento de dúvida, do que qualquer outra coisa. E.. quando menos espero, acabo gostando, ou aprendendo a gostar. Não sei... quanto a isso não sei mesmo. Só sei que o post nasceu dessa sementinha de memória, e da impossibilidade de desemaranhar beleza/atração e "cuteness". Interessante, não?
Mas, continuando de onde paramos: oque torna uma palavra aceitável, menos aceitável, ou mais aceitável que outra? Oque faz nos empolgarmos com uma palavras, ao mesmo tempo que preterimos outras que não nos empolgam... ou até nos "desanimam"?
Tem uns meses já que isso me veio à cabeça: por que o sexo é tão diferente de intimidade...ou intimidade auditiva...ou ainda, só com a fala, você saber explorar os desejos da outra pessoa? Fiquei pensando, pensando, e comecei a lembrar desse "dirty talking". Me lembrei de como, anos atrás, me era dificílimo me abrir a isso. Muito, muito. Essa "intimidade", de me arriscar a dizer algo que não se sabe muito bem em que terreno há de cair: bem aceito(?) ou mal interepretado?... É realmente uma aula que, formalmente, ninguém tem (ou mesmo discute).
Claro, diferentes pessoas aceitam e praticam "dirty talking" de maneiras diferentes. Acima de tudo, cada relação é um universo em si só: podemos levar muito bem tal brincadeira com um parceiro(a), mas não com outra pessoa.
Quando comecei a pensar nisso, pensei: como será que duas pessoas "mapeariam" esse terreno tão pantanoso? Aí imaginei um diagrama em 2D. Um eixo contem "arousal", excitação, e o outro contém aceitação.
Poderíamos começar com umas palavras exemplo. Como "safado". Safado é uma palavra cuja empregabilidade é múltipla: num contexto político, denota roubo, num contexto de briga, indica que um lado fez algo que o outro considera inaceitável, num contexto mais caliente... hummm depende do casal. Talvez o colocasse assim: positivamente aceito, e empolgável/excitável.
Há pessoas que aceitam palavras com conotação infantil. "docinho", "meu bebê". Essas coisas. eu possuo aceitação Ok:difícilmente pararia a encenação toda com um "corta!!!" e sairia do quarto hahaha Mas não, não me empolga.
Mais exemplo, coisas que não devem excitar alguém "at all": perguntarem teu número de passaporte. É uma pergunta ok, não é repugnável, mas... empolga? Acho que não... e soa tão estranho que você começa a se perguntar se a pessoa é louca. "E se eu estiver correndo algum risco?" ou perguntas do tipo podem passar pela cabeça, oque faz com que a palavra ranqueie mal em excitabilidade e, por mais indefesa que soasse em outro contexto, beira ao inaceitável.
Cada casal, acredito, tem uma topografia própria (e adoraria ouvir de amigos sobre o assunto, mas acho que tal conversa não seria muito confortável pra maioria). Dessa forma, existem coisas que podem ser difíceis de colocar nesse mapa, como coisas que vêm de contextos ou estórias particulares, ou coisas engraçadas, que remetem a outros contextos. Pode ser algo como o nome de uma fruta (não, nunca aconteceu comigo rsrsrs) ou um termo engraçado, como "bonitezo", ou "meu bombeiro" (caso bombeiros te empolguem).
Há também aquelas palavras que são parecidas, mas não são iguais. Por exeplo: penetrar, introduzir, meter; segundo um dicionário, talvez sim, mas para uma pessoa, talvez não. Coloco aqui como lilustração as palavras "puto" e "safado"...são iguais? Interessantemente, me soam diferentes. "Puto" me remete a estar bravo: "- Estou puto contigo!", ou a prostituição, sexo por interesse ou dinheiro (com todo respeito ao trabalho de prostituto(a)s). Há tanta conotação negativa atrelada à palavra, que ela acaba bem lá embaixo, inaceitável/repugnável, e não excitável.
Esse post, como muito desse blog, é de uma contribuição científica única para a humanidade...talvez até mude o status do meu trabalho: de não essencial, para essencial... ou mesmo "quase essencial"? Não sei.... mas o fiz pensando em debatê-lo, querendo discutí-lo, querendo saber de duas pessoas mapeando/descobrindo juntas as topografias dos seus diagramas de aceitação/excitação.
Se você estiver passando essa quarentena em par (oque (in)felizmente, não é meu caso), talvez seja uma boa diversão.
Essa semana me bateu uma saudades de São Paulo.... pra ser mais exato, das pessoas que fazem parte da minha vida, e que lá ainda moram. Lembrei de Tom Zé descrevendo as dicotomias da cidade
São oito milhões de habitantes
De todo canto em ação
Que se agridem cortesmente
Morrendo a todo vapor
E amando com todo ódio
Se odeiam com todo amor
São oito milhões de habitantes
Aglomerada solidão
Por mil chaminés e carros
Caseados à prestação
Porém com todo defeito
Te carrego no meu peito
...
[Tom Zé, São, São Paulo]
Aí acabei encontrando este programa ensaio, no qual ele discute um pedaço da música que havia me passado despercebido
...
Salvai-nos por caridade
Pecadoras invadiram
Todo centro da cidade
Armadas de rouge e batom
Dando vivas ao bom humor
Num atentado contra o pudor
A família protegida
Um palavrão reprimido
Um pregador que condena
Uma bomba por quinzena
Porém com todo defeito
Te carrego no meu peito
[Tom Zé, programa ensaio, de 1990]
[Deixei no frama quase certo já...você não vai ter que ver tudo, relaxa :P]
Fiquei rindo sozinho, encantado com a habilidade dele em extrair poesia de algo tão prosaico como ir à banca de jornal, e com a destreza poética em construir com palavras algo que, como tópico, seria totalmente inaceitável aos ouvidos das ricas cocotas paulistanas. Isso sem falar meu estarrecimento em perceber que aqueles que mais professaram amor pela cidade onde nasci são não outros senão "estrangeiros" a ela, e que por ela foram/se sentiram acolhidos.
Aí você sabe: uma coisa leva à outra...e me lembrei de algo que passou na minha cabeça no começo desse ano: sobre como uma palavra pode ser "suja" ou "limpa", a depender da forma e contexto em que a mesma é dita. Na hora eu ria sozinho de uma memória que me passou na cabeça: uma vez, durante um momento mais..assim ...picante, minha então namorada disse um "-fuck me". E não sei... continuei/continuamos ali (quem pararia, afinal haha) mas alguma coisa não desceu bem.
Aonde estava o "erro"?
Na verdade não havia erro. Em todo caso, aquilo me fez pensar por alguns dias. Claro, acho que ela também notou que, ao menos na relação que tínhamos, aquilo não cabia muito bem. Tanto que nunca mais foi dito (ao menos não daquela forma). Me lembrei então de um curta muito bom de um casal que se esforça pra sair da mesmisse, mas...encontra barreiras em várias coisas, dentre elas a dificuldade de se encontrar palavras "adequadas" durante o sexo.
Oque torna uma palavra aceitável, menos aceitável, ou mais aceitável que outra? Oque faz nos empolgarmos com uma palavras, ao mesmo tempo que preterimos outras que não nos empolgam... ou até nos "desanimam"?
Ao colocar a cabeça no travesseiro ontem à noite eu me perdi nos meus pensamentos, que logo foram afugentados por alguém tossindo sabe-se lá a quantos apartamentos de distância. Será que sempre fui auditivamente sensível a tossidas ruidosas, ou espirros? Me perguntei. Logo, me perdi em pensamentos mais uma vez, pra então me lembrar que, logo no começo da segunda-feira, enquanto corria
1 , levei uma bronca de um velhinho que caminhava no sentido contrário e que, ao me ver sem máscara, gritou vorazmente por alguns segundos
"MA-SSU-KU!! MA-SSU-KU!!"
oque, "claramente" (já que traduzo), denotava em bom japonês que ele estava puto porque eu não usava máscara enquanto corria debaixo de um calor já abafado dessa cidade.
Fiquei meio chateado comigo. "-Pouts, como pude..." Pensava, corria, e dava passadas de remorso... Me lembrei rapidamente de uma amiga brasileira que veio me dizer que estava com o mesmo problema por lá: tentou correr duas vezes com máscara e desistiu. Pensei no que deveria fazer: pesquisar à respeito, descobrir oque deveria fazer... correr com máscara à partir da próxima vez, correr com a máscara abaixada, só a usando quando passasse alguém...
Todos esses pensamentos passando pela minha cabeça nuns 30 segundos após a bronca. E mais ou menos nessa hora, quando o meu lado racional começou a "kick-in", eu me perguntei meio cientificamente: "bom... conhecendo esse pessoal daqui e como humanos são tendenciosos, é bem provável que ele tenha me dado essa bronca como uma 'lição moral', na qual ele demonstra pra mim - estrangeiro desaculturado e inferior - toda a sua superioridade japonesa, ensinando os valores de civilidade que sua sociedade deve mostrar ao mundo".
Fiquei me perguntando isso, meio que como um predicado que não pode ser verificado. Paciência: morreria sem saber, eu também com meu viés de me abraças a essa nesga de dúvida, mesmo que aceitando meu erro: apesar da violência como o velhinho vociferou, ele estava de certa forma certo.
Mas a estória não termina aí. Como um twist of fate Bob(i)Dylli(c)ano, o loop da minha corrida se faz no meio, e volto para completá-lo. Mas... olho adiante e vejo não outro que não... o velhinho bravo, meio distante ainda (tanto que ele não me nota). Em sua direção, passa um corredor caminhando, este japonês.
O velhinho-vociferador-superior não abre a boca.
Mas como: só porque o outro corredor era um japonês superior como ele? Será que ele não precisaria ser "disciplinado" também?
Fiquei rindo por dentro, e meio triste em constatar que "o experimento saiu como o previsto"...Melhor dizendo: é um tanto estranho "aprender" algo, ou ter dimensão dos próprios erros
2 de uma maneira preconceituosa como esta. Diante desse acontecido, me questiono o quanto esse traumaprendizado invalida a informação: se isso nos leva a rejeitármos oque nos foi dito (por honra, por vaidade, por orgulho) por fim dando foco a toda essa discussão secundária e distorcendo a questão principal do "aprender", do "reconhecer-se errado".
Pra essas questões, no entanto, não tenho experimentos... nem verificações empíricas.
2 Pois não tiro a razão dele: eu estava relativamente errado e poderia ser mais precavido. Poderia, como citei acima, ter uma máscara a tira-colo e colocá-la rapidamente caso visse um velhinho perto↩
Uma coisa que sei há anos, e que recentemente tem sido assunto de piada, é o fato de eu ser catastrófico. Já escrevi sobre aqui, acho. Sou super dramático, e entro nessas tocas de coelho em que o maior vilão da estória sou eu, minha fraquezas, etc etc.
Só que nem sempre é assim. Como, a exemplo, a útlima estória que eu falei.
Depois li as mensagens: eu fui tranquilo e amistoso, meu amigo também. Do começo ao fim, nada de excessos, de vaidade, de nada.
Então, por que? Por que será que entrei em loop e fiquei pensando naquilo tudo?
Bom...vai ver é a natureza desse momento mesmo: nos isolar e, ao mesmo tempo, permitir que nos aproximemos de nós mesmos, investigando, perscrutando e perguntando "será que sou isso? Será que sou aquilo?"
Acima de tudo, uma coisa é certa: a de que eu mereço um Oscar de melhor post dramático rsrs
Estou com a garganta doendo. Sei lá como, sei lá quando começou: só sei que me parece estranho. Procuros sinais outros de que um vírus esteve aqui... ou a alguns metros de mim: meu pé doi, meu coração bate mais rápido... palpitações, febre? Me traz à lembrança o dia em que, ao notar a estranheza sutil dos móveis da minha casa, "milimetricamente fora do lugar", pude perceber que alguém estivera ali (em 1984 + estudo em vermelho para um monstro que vive no espelho).
É só a garganta?
Foda...acabo de tossir também. Aiii...caraleo... só faltava essa. A saúde indo pelo ralo, e o humor, do qual pretendia inicialmente falar, indo pras cucúias também. O digo porque ontem enviei uma mensagem upra um amigo, pra quem eu falei no começo da semana que finalmente descobri o disco "kind of blue", do Miles Davis.
["Kind of blue" (1959), Miles Davis]
Ao que meu amigo falou "sei que você não gosta de John Coltrane, mas ele tem muita coisa boa também". Aí fiquei meio puto, e quis retificar a situação. "Como assim, não gosto de Coltrane?!"
Me senti ofendido. O Coltrane é tão matemático quanto músico... ouvir essa heresia meio que me deixou...sei lá...impaciente? Seria essa a palavra?
Imediatemente percebi que me senti mal... com a situação, e comigo mesmo: será que sou tão vaidoso assim, a ponto de não conseguir me calar, e deixar meu amigo assumir isso? Me lembrei da última visita ao Brasil, quando um tio de uns 80 e tantos anos veio me "catequizar" falando de deus e eu só fiquei no "arrãm...arrãm..." com a cabeça... sem me dar ao trabalho de discordar abertamente. Por que não aqui? Seria pela idade? Impaciência?
Me envergonhei... deve ser vaidade... "sou tão vaidoso assim?" Fiquei meio chateado comigo mesmo. Como uma confissão a mim mesmo "você tem a vaidade de não deixar os outros assumirem que você..." Rafaello, sob o controle da imagem que fazem dele? Seria isso? Ou seria da ordem intelectual das coisas, emocional, ou musico-matematico-emocional-coltraniana? Fiquei pensando depois que diferença faria eu "defender minha honra" em desgostar de Coltrane, em não apreciar a matemática que brota por de trás das notas de Giant Steps, nesse ciclo que se repete infinitamente entre subir, descer e reaproximar as notas de novo... me senti besta. "Será que foi a presunção de desconhecência que me incomodou?" Penso na lei dos direitos humanos, tão esquecida em dias como esses... "todo homem tem o direito de desconhecer, de ignorar, e de se calar ate mesmo diante do que já conhece"... reinvento minhas leis, leis de um homem que vive longe dos seus, num apartamente com vista só pra um rio e pássaros.
Será que foi o meu amigo ter assumido que eu não gostava? Será que foi o tom professoral da conversa?...
["Giant Steps", John Coltrane]
Fiquei me perguntando em loops... como no solo acima: sobre, desce, repete, dobra... chega-se ao mesmo ponto, diverge-se. Não tive coragem de reler a conversa ainda. Acho que... não, tenho a certeza que essa distânciamente está me fazendo mal. De alguma maneira fazendo mal. "-Volta!!! Eu sei que fui hostil, mas na verdade te queria perto! Queria meus amigos próximos. Abraço. Coxinha. Tapioca..." Me sinto um homem das cavernas, tentando aproximar, enquanto na verdade acabo enviando pra mais longe aqueles que quero próximos.
Faz alguma diferença eu gostar? Me machuca ver os outros assumindo coisas?
Não sei.... só sei que tenho sido um boicotador de tudo: de correntes (porque as pessoas começaram com correntes de tudo por estes tempos?...bom, isso é papo pra outro post; já adiando que tenho sido o mais grumpy dos grumpies, e extinguido todas que a mim chegam), de palavras que descem tortas, de suposições descabidas (grandes ou pequenas)... o covid me torna difícil.... covidifícil, não co(n)vidativo.
Hoje recebi uma ligação de uma amiga que perdeu um tio médico na pandemia. A avó dela, ainda vida, não pode nem ir no enterro, nem receber o filhos para um consolo. A resposta de todos os irmãos (outros tios) e da avó foi matar o tio de outras formas: "ahhh mas ele teria morrido de acidente, com certeza... ele tinha aquela moto lá, tava pegando estrada muito.... ahh mas ele teria morrido de acidente cirúrgico: um bisturi revoltado pularia da mesa de instrumentação e se alojaria no seu peito, furando uma artéria..." Em tempos de crise nos brutalizamos.... nem as perdas podemos sentir mais... oque é perder, em dias como esse, em que já estamos de luto por um mundo que deixamos pra trás, e pro qual não voltaremos mais.
Você sabe oque é abraço? Posso presumir que você se lembra disso?
Você sabe oque é ouvir um sax ao vivo? Ou posso dizer com quase-certeza que você odeia?
Você sabe oque é perder? Sabe oque é sentir? Sabe oque é a dor de não ter pra onde fugir ou nos braços de quem chorar?
Me emaranho em pequenezas... as notas de Miles, Coltrane, afloram minha alma e tentam me aimentar de novo de uma poesia de mundo que, temo, pareço não conseguir sentir. "-Por que se impacientar por tão pouco?".. me pergunto.
Sei lá... vou dormir e torcer pra acordar num outro mundo, em que minha garganta esteja melhor.