segunda-feira, 29 de junho de 2020

Direto da Terra do Sol Nascente # 94: perfume

Hoje voltei a trabalhar no escritório. Aih lembrei de uma estoria. Com o mesmo colega desse post, com o qual as vezes almoçava (ha muito tempo, antes da pandemia). 
A estória foi a seguinte: numa das manhãs de trabalho, esquentei meu bentô (aquela marmita japonesa...que no meu caso de japonesa só tem o formato: dentro a comida é de qualquer outro lugar do mundo rsrs), e fui almoçar sozinho, por não vi meu amigo. Aí cheguei no lounge onde lanchamos e, de longe, já senti o cheiro da comida dele: um cheiro forte, de peixe, que empestiou o andar inteiro. Gritei de longe "não vou nem chegar perto, porque esse cheiro tá forte demais".

Fiquei meio arrependido depois... será que havia sido meio duro com ele? Soei preconceituoso, bruto? Feri alguém cuja cultura aprecia o cheiro forte na comida como uma qualidade? 

Só sei que os dias passaram, o final de semana passou. E um belo dia, quando voltava pra casa ao fim do dia, depois de ter cozinhado no dia anterior, abro a porta de casa e sinto um cheiro forte de tempero. 

...tempero que usara no dia anterior.

Fiquei me perguntando: "será que eu tenho o cheiro do meu apartamento? Da comida que cozinho?"

Aí fiquei imaginando, os japoneses olhando pra mim envergonhados, pensando "ihhh lá vem aquele brasileiro com cheiro de pão de queijo..", ou as pessoas meio nauseadas porque eu tenho cheiro de panqueca... sei lá...me vi indissociado daquele aroma/perfume que denunciava minha origem como uma pessoa não dali. Um ser que não cheira a gohan, ou peixe, ou tofu, mas que tem um cheiro que não se adequa às narinas locais. 

Curioso que esa pergunta me voltou à cabeça meses mais tarde ao assistir o filme sul-coreano "parasita", no qual ele fala sobre cheiro (há um artigo interessante no Guardian: Common scents: how Parasite puts smell at the heart of class war). Fiquei me questionando: "será que meu cheiro, se ele for mesmo diferente e existir, é apenas um sinal de que eu nunca farei parte de onde for, onde quer que seja?" 

Me sentir um pouco mais estrangeiro neste dia, denunciado pela minha própria existência privada, aquilo que não precisaria mostrar ao mundo sendo escancarado, anunciado: você é aquilo que você cozinha.

[" 'Me passa o tempêro?', disse ele entre lágrimas de rejeição.]
[me imaginei lendo isso num livro.]

No fim das contas eu fiquei pensando se deveria perguntar pra outros amigos gringos que moram fora de seus países. "Você acha que tem um cheiro engraçado, que as pessoas te olham estranho quando você passa por perto?".. mas acabou ali mesmo. Não perguntei pra ninguém... vai ver ninguém pensa nisso mesmo (ou acha que perfume resolve).

ps: no que refere a como meu amigo encara o cheiro da comida, e oque isso significa pra ele, a questão me traz à lembrança esse post de 2013:  Universo multiculturalista numa casca de banana (ou "Êsopidianas"). Recomendo
 

terça-feira, 23 de junho de 2020

ποιέω/Poiesis

 ποιέω == Poiesis. O processo de criar, de fazer. Que deu origem à palavra poesia.

Existe poesia no criar? 

Tenho me perguntado bastante isso nesses dias. Diante de tantos momentos de dúvida, de incerteza, tento me apegar a farelos de confiança que encontro jogados aqui e ali ao longo do caminho. "Estou perto de um rio", "vejo uma pegada".... sigo, vejo e percebo: não caminho sozinho.

Talvez oque tenha sido mais curioso nesses últimos dias é perceber que o processo de criação pode ser um tanto louco, cheio de arroubos e relâmpagos e fagulhas. No entanto, uma parte importante do processo, e que pouco se discute se chama "protocolo": criar métodos pré-concebidos para lidar com o construir.

Como casas pré-fabricadas, mesas da ikea, manuais de instrução, protocolos são manuais para gerenciar o procedimento humanos: por onde seguir, como fazer passo a passo. Talvez, mais que isso, são manuais de registro para nos dizer como seguimos no passado, como fizemos. São um registro, e no registro se encontra um método, um pequeno resquício de extrair poesia daquilo que não damos atenção, de um ato que nos parece simples acaso, mas que no fim contém denso conteúdo, de infinita profundidade.

Poiesis. Poesia. Criar. Produzir. Protocolar. Repetir... Uma cadeia de coisas que se ligam, se sucedem, se interrompem, se interferem. Me pergunto onde está a lição de cada tropeço, de cada evento, de cada arquivo apagado que continha a resposta,  cada margem rabiscada de livro que resumia o conteúdo do livro em 2 linhas e poucas palavras. Protocolamos para criar melhor, ou criamos melhor quando protocolamos, quando sabemos extrair método do óbvio, ou quando conseguimos perceber que no óbvio mora o tropeço, o erro,  a disparidade e a assimetria.

[É isso por esses dias]
[Não tenho muito a falar. ]
[Esses dias de corona infelizmente estão consumindo minhas boas energias]
[... mas estou ok, e as coisas vão melhorar ]

 


domingo, 14 de junho de 2020

Criar, iterar, tecer e tricotar

; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - > Nesses dias de uma quarentena que toma formas distintas ao redor do mundo - nos trópicos brasileiros, mais saidinha e desajustada, enquanto nipônica segue comedida mas abaixando a guarda - tenho conversado bastante com minha mãe ao telefone. E nessas ligações, conheço um pouco mais sobre ela (impressionado, pois não achava isso possível). Mais estarrecido ainda é me perceber tão similar a ela em diversos aspectos. ; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - > Enquartelada, numa torre de marfim cercada de prédios, concreto armado e desigualdade social, minha mãe passa os dias em São Paulo falando ao telefone com amigos, conhecidos, e familiares; estes últimos não necessariamente amigos, nem conhecidos. Passa-se ainda bastante tempo costurando (a époa das máscaras já passou) e, recentemente, tricotando. ; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - > Tricota-se. E com isso, tricotam-se as conversas de telefone entre nós dois: um fio, que se estende a um outro tema, que se embola numa vírgula, que se engole com uma fruta de café da manhã enquanto o outro janta. Dessa forma, "Nada se perde, tudo se transforma"  se transmuta em nada se entende, tudo se embola-emaranha. ; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - > Política vira discussão sobre desigualdade ; - - > Saúde vira bronca por não fazer ginástica na sala de casa ; - - > Presidente e ausência de governo vira suspiro angustiado de quem não tem vacina ou tem medo de golpe militar ; - - > Sobrinho vira árvore de natal acesa fora de época pra que o mesmo veja do outro lado da rua ; - - > Avó vira "iaia" ; - - > E saudade permanece saudade, porque isso não tem no que se transformar. ; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >  Minha mãe tricota de um lado, me fala sobre as viscissitudes da arte; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >  enquanto isso, eu teço (tricoto?) os paralelos com minha vida de criar e tecer a linha abstrata das idéias e números, com as agulhas rígidas, extensas mas finitas, da matemática.; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - > "Fiz e desfiz a blusa da Vana (minha irmã), usei regra, me afundei em números...a cada conta que faço errado vou e recomeço a carreira do começo", me diz ao telefone, num papo que me traz à cabeça a natureza repetitiva do criar, do pesquisar, do fazer, do criar. Repetir...repetir.... penso no "zen in the art or archery" e suas discussões sobre como "iterar" e o "entender" se imiscuem, num rio que desagua em si mesmo, ou como numa figura de Escher, dum rio que se acaichoeira em si mesmo, e desagua na sua própria nascente... Herrigel que li feliz, mas que me deixou triste, por não tê-lo lido mais jovem, enquanto ainda estudante.- - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; 
>; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >[Waterfall, por M.C. Escher] >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - > "Como pode.....tão díspares e tão similares?", me pergunto na hora, ao pensar nas inúmeras repetições, control+C, insatisfações, dias de abandono e lema em aberto, pesquisa em fórum pra automatizar fórmula, control+V, apaga mais, escreve mais, edita....- - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; de cada 5 blusas tricotadas, uma vira blusa- - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >;  pra cada trabalho que escrevo, na verdade tricoto outros quatro, emaranhados nas entrelinhas que só aquele que tricotou as palavras, as grudou, as combinou, sabe- - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; "hummmm isso é uma vírgula, mas na verdade é uma fissura, um dead-end do sobre o qual  não tive muito espaço pra falar" - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >;  me angustio, divido sobre os projetos que se finalizam por aqui: o supercomputador que de tanto supercomputar travou no meu trabalho (e teve que ser reinicializado).  - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; - - >; "o último trabalho por aqui", digo eu como tenho dito há meses, e que é traduzido pelo ouvido materno como um "tomara"... mas que me acalmo em acreditar que na verdade é só um novelo da minha natureza: que nunca vai deixar de ter ideias, curiosidade, e ser movido por elas, buscando transformá-las em algo novo... mas que no fundo ainda é só uma linha de idéias, um pouco emaranhadas.


terça-feira, 9 de junho de 2020

O não óbvio, numa devida nota ("Ode ao número zero")

Me envergonho.... Sim, me envergonho: de sempre ter desdenhado daquela linha, ou nota de rodapé que dizia 1 

"os povos..... inventaram o número zero em ....A.C."

Sempre dei de ombros. Inventaram? Descobriram? É um número, como pode ser encontrado? 

Por estes dias uma amiga que trabalha com crianças autistas no Brasil veio me trazer a seguinte indagação: um dos pacientes que tem só sabe contar com a comida que gosta, no caso maçãs. Todo pro rapazinho é maçãs, e com elas ele aprendeu a contar. No entanto o desenvolvimento dele travou quando chegaram no número zero: como representar algo que "não existe" pra alguém cuja mente é extremamente dependente em representações (no caso, por maçãs)? 

Talvez como muitos, ao tomar um simples "0" como algo que nos foi óbviamente dado, perdi a dimensão da grande abstração que ele é. Dei meu braço a torcer: não foi uma invenção óbvia, seja em importância, seja em idéia mesmo. Imagino o pobre inventor sofrendo as piadas dos colegas: 

"-olha ali fulano(a) de tal!! Vamos chamá-lo(a) aqui pra nos contar a grande invenção dele(a)"...e todos caiam na risada, rindo do(a) pobre inventor(a).

Não acredito que seja uma pessoa que carrega os louros dessa invenção: acho que de tão controversa que sua utilidade é, talvez tenha sido inventado, utilizado, reinventado e reutilizado diversas vezes ao longo da história. Pra vocês verem como é algo interessante: li uma vez que alguns povos indígenas na amazônia conseguem contar, mas não têm representação pra números maiores que 3: quando passa de 3 eles representam como "muito" 2.

Não voltei no assunto com minha amiga. Até tentei procurar por algo na literatura que a ajudasse a explicar o ponto em questão pra criança, mas tudo é técnico demais (até Malba Tahan) pra uma audiência especial como essa.  Ao menos neste post faço uma mea-culpa em busca de redenção: agora que escrevo sobre o assunto, o removo das notas de rodapé e o coloco um pouco mais em evidência. 

"De agora em diante, serás não trivial para mim...."



1 "-...merece mais que isso", diria hoje.

 Em matemática isso é o equivalente a se compactificar um espaço, i.e., dando uma representação "física", ou "simbólica", pra tudo aquilo que foge de certo controle; no caso, o "infinito" deles. 

sábado, 6 de junho de 2020

Por um triz (parte 1)

Uma das coisas que ninguém gosta de admitir na vida e que teve sorte:

Chegou onde chegou? Trabalho árduo!
Ganhou muito dinheiro na bolsa? Descobriu como functiona (me ensina! rsrs) 
Fez uma pós? Porque estudou muito!

É difícil, em alguns casos, se ver que há sorte nos casos acima, principalmente no último. Acredito que poucos estão dispostos a olhar cuidadosamente pro que lhes ocorre ao redor, ou suas trajetorias, e pensar: será que foi acaso? E quando há ganho, "sera que tive sorte ao longo do caminho?" 

Ha uns dias um amigo durante uma conversa comentava  sobre a minha trajetoria: "você não teve sorte alguma, você ralou...bla bla bla". Aí o interrompi e discordei dele... disse que havia sim sorte na equação.  Na hora não me lembrava de exemplos específicos, mas sem dúvida: sabia que existiam. Me lembrei então de um caso muito curioso: ainda quando morava no Rio, tive um semestre horrível com um professor que, apesar de aclamado pesquisador, deu um curso péssimo, tanto em termos de didática quanto em termos técnicos. Em poucas palavras: todo mundo se ferrou no curso, e a maioria passou com sufoco. Eu fui um deles. Pra piorar, o professor era mentalmente afetado. Sériamente perturbado.2 De agora em diante o chamarei de professor X.

Isso dá um idéia do cenário. Oque aconteceu comigo foi o seguinte: uma bela manhã, após o curso ter terminado, eu passei onde estudava pra finalizar uma coisa  ou outra. Avistei meu  então orientador no saguão, que ao me ver dá um sorriso e me diz: "-te salvei!". Eu, meio sem entender, pergunto de que. 

"- Essa manhã, encontrei o professor X na sala da secretaria. Ele estava pra entregar o resultado das provas. Aí perguntei como você havia ido, e ele viu a prova e me disse que você havia sido reprovado. Aí, ao folhear a prova, ele notou... 'ahhh esqueci de somar a nota dele'... e viu que você havia passado.. então, te salvei, embora, na verdade, não te salvei, porque você passou sozinho." 

Lembrei desse caso com um certo frio na espinha, um certo pavor... Fiquei me perguntando: e se, diante de todo aquele abuso de poder,3 será que eu teria voz para reclamar daquilo, dos desmandos de um professor maluco? Que rumo teria eu tomado à partir dali? Um colega de turma acabou sendo expulso do instituto na mesma época, e se não me engano, um outro que não me era tão próximo foi reprovado no curso. 

É difícil não ver isso como sorte... a sorte de ter sido ouvido? Ou de não ter que tentar ser ouvido... não sei... Nesses tempos  em que olho de longe os EUA, vendo que as fagulhas de tanto ressentimento quanto à morte de George Floyd começaram numa cidade que tanto gosto... não há como não se dar conta de que ter voz é, sim, um luxo. E as estatísticas são horripilantes quando se pensa em ser negro no Brasil, ou nos EUA: inimaginável aceitar que voltar pra casa vivo pra alguns pode ser simplesmente uma questão de sorte... a exemplo do caso de um homem que observava pássaros no Central Park em NY: oque separa o destino de tantos do destino de George Floyd?

Sorte, azar, injustiça .... são conceitos tão próximos assim? 

Coloquei as coisas em termos de sorte, de azar...mas vejam que isso não acontece só lá: acontece em todo lugar. Lembro de, nos EUA, o caso de um colega de doutorado, mais senior que eu, cujo orientador, ao comentar sobre o seu trabalho de tese com um outro matemático, teve a idéia "roubada" por este último, que logo adiante escreveu e publicou um artigo sobre o tema. Não deu outra: meu colega ficou sem tese, e desistiu no sétimo ano de doutorado. 

Reclamar pra quem? 
Azar?

O orientador da minha ex teve um infarto durante o PhD dela. Não faço idéia de como terminou essa novela (pois rompemos antes). Mas lembro dela ter que empurrá-lo contra a parede e falar "vai orientar direito ou não?"... e não sei como continuou aquele drama. Desconfio que se aprofundou com o tempo, embora não saiba: se ter um orientador ativo já é difícil, que o diga um ausente. Sorte, azar?... Outro caso em que a rigidez acaba prejudicando o elo mais fraco dessa cadeia; no caso, o aluno.

Sei que existem outras formas de se observar e considerar azar numa vida, mas em todos os casos que citei acima eles tocam no ponto do azar entremeado a uma relação de trabalho. São casos que envolvem um lado com mais poder que o outro, onde o dar certo ou não de certa maneira se equilibra na corda bamba da sorte (ainda mais quando se está no começo de uma carreira)


1 Algo que só fui ter competência, e distanciamento emocional, pra perceber anos mais tarde. À época, pela quantidade que estava aprendendo, não soube atestar se era por mérito dele ou meu. Mais curioso ainda é ver como isso me faz ter sentimentos ambivalentes quanto ao lugar, que ainda tem tantas pessoas que gosto, como o tal ex orientador da estória.  

2 A ponto de talvez nenhum aluno ter alguma conversa decente com ele à época, ou se sentir à vontade para discutir uma questão de prova. Houveram casos de notas negativas em questões!!! Hoje em dia, depois de passar por tantos outros sistemas, eu vejo como isso era um triste caso de abuso de poder. Em outros países e sistemas, note-se, isso também acontece. 

3 Onde dificilmente um professor era questionado em suas decisões, ainda mais por um aluno ou funcionário, sem retaliação.