sábado, 18 de abril de 2020

Direto da Terra do Sol Nascente # 88: um por vez

Há poucos dias recebi uma mensagem de áudio de uns amigos me falando das condições de vida por onde moram: filas para se entrar em supermercados, prateleiras vazias, filas com lugares marcados no chão para delimitar pessoas.   Ouvi a mensagem, mas não acredito ter depreendido muito do conteúdo ou da imagem que queriam me passar. Talvez só tenha tido mesmo uma real percepção do que me diziam na semana passada, ao ver marcas no chão do supermercado visando distanciar pessoas na fila; isso sem falar  numa espécie de "bolha" de plástico separando os caixas de supermercado dos clientes. A vida parece ter mudado a forma de processar as coisas: um por vez, bem longe; nada simultâneo, concomitante, nem tudo-junto-ao-mesmo-tempo ou mesmo em paralelo. Se antes vivíamos um "live together, die alone" sinto viver num "live together, relatively apart, and die alone". Distância deixou de ser medida pra virar simplesmente um verbo que permeia nossas relações sociais: "we should all practice social distancing".

Pensei bastante sobre o assunto, sobre o nosso desespero em querer fazer tudo ao mesmo tempo: em amar pensando em prazer, em ver pensando em postar no instagram, em postar no instagram pensando em trabalhar, em trabalhar pensando em não trabalhar, em não trabalhar pensando em dinheiro, em estar longe quando estamos perto, em fazermos tudo agora quando se há tempo no nosso horizonte. Me senti vivendo uma vida de dubiedades, onde nada parece ter o valor que, por si mesmo, deveria ter.

Dentro dos meandros da minha alma e existência recente, esse assunto se perdeu na correnteza e acabou desaguando em outros. Fiquei refletindo sobre o errar, sobre anteciparmos erros em algo que fazemos pela primeira vez, na sua insuficiência, como se nunca nos fosse o bastante aprendermos com  experiências anteriores. Será que toda dificuldade terá seu próprio sabor de dificuldade nova? Ou será que, sem nos darmos conta, aprendemos algo com os erros, algum resquício de partículaprendizado, que nos fica inserida na alma-chapa-de-chumbo, como um raio-X, ou como um anticorpo/antierro,  pronto pra pular na frente do trem e nos defender de qualquer dificuldade patogênica mundo a fora. Lembrei um pouco daquela cena da borboleta no Memórias Póstumas de Bras Cubas, onde o narrador encontra uma borboleta brincando no quarto:
" 
No dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para descer, entrou no meu quarto uma borboleta, tão negra como a outra, e muito maior do que ela. Lembrou-me o caso da véspera, e ri-me; entrei logo a pensar na filha de Dona Eusébia, no susto que tivera, e na dignidade que, apesar dele, soube conservar. A borboleta, depois de esvoaçar muito em torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ela foi pousar na vidraça; e, porque eu sacudisse de novo, saiu dali e veio parar em cima de um velho retrato de meu pai. Era negra como a noite. O gesto brando com que, uma vez posta, começou a mover as asas, tinha um certo ar escarninho, que me aborreceu muito. Dei de ombros, saí do quarto; mas tornando lá, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo logar, senti um repelão dos nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.

Não caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça. Apiedei-me; tomei-a na palma da mão e fui depô-la no peitoril da janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.

-- Também por que diabo não era ela azul? disse eu comigo.

E esta reflexão, -- uma das mais profundas que se tem feito, desde a invenção das borboletas,-- me consolou do malefício, e me reconciliou comigo mesmo. Deixei-me estar a contemplar o cadáver, com alguma simpatia, confesso. Imaginei que ela saíra do mato, almoçada e feliz. A manhã era linda. Veio por ali fora, modesta e negra, espairecendo as suas borboletices, sob a vasta cúpula de um céu azul, que é sempre azul, para todas as asas. Passa pela minha janela, entra e dá comigo. Suponho que nunca teria visto um homem; não sabia, portanto, o que era o homem; descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu que me movia, que tinha olhos, braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal. Então disse consigo: «Este é provavelmente o inventor das borboletas». A idéa subjugou-a, aterrou-a; mas o medo, que é também sugestivo, insinuou-lhe que o melhor modo de agradar ao seu creador era beijá-lo na testa, e beijou-me na testa. Quando enxotada por mim, foi pousar na vidraça, viu dali o retrato de meu pai, e não é impossível que descobrisse meia verdade, a saber, que estava ali o pai do inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe misericórdia. 
[Machado de Assis, Memórias Póstumas de Brás Cubas, Capítulo XXXI A borboleta preta]
Seríamos nós essa borboleta, voando pela vida e pousando em cada problema, tentando reconhecer neles o pouco de mundo que já conhecemos/carregamos às costas (ou melhor, debaixo das nas nossas asas)? Borboleteamos, pousamos, fazeos de tudo o possível, mas somos repelidos e  não sabemos o porque: antes fossemos azuis? Fiquei divagando-viajando, pensando em mim...  refletindo  sobre os meus perrengues e entraves escrevendo, criando. Pouso num problema e me pergunto: "seria esse a causa maior de tantos empecilhos"?  Simplesmente não sei. 

O criar, desfazer, melhorar, refazer, aprimorar... toda dificuldade a olhos virgens é como um novo abismo. Pondero sobre o meu esforço em descrever a  complexidade do que faço agora e  se, por tentar resolver todos os problemas ao mesmo tempo, em todos os capítulos, acabo incorrendo em tantos tropeços: "pouso na testa, ou pouso no retrato? Onde está o senhor das borboletas?"". Não seria melhor ir sanando os problemas  um por vez, consertando-os pacientemente? Me pergunto se nos dois processos de criação e elaboração de algo novo se existe uma  maneira mais fácil de se "evoluir", de se chegar a um processo final: um-por-vez, todos-de-uma vez? 

Mas claro, uma borboleta nunca pode pousar em dois lugares ao mesmo tempo..


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