sexta-feira, 18 de junho de 2021

Direto da Terra do Sol Nascente #114: um passeio no jardim dos privilégios

 Tomei a vacina hoje cedo. Primeira dose.

Olhei ao redor: eu dentre tantas pessoas muito mais velhas, gente de cadeira de rodas, pessoas com seus filhos e cuidadores, entre outras coisas. Eu estava ali porque consto como pesquisador visitante numa universidade japonesa. Sou grupo prioritário.

Nem titubeei muito nessa corda bamba entre o prioritário e o privilegiado. Me vi e vejo neste último grupo. Me senti meio mal, mas feliz, muito feliz em estar ali. Acho que tão feliz que talvez explique o porque eu ter escrito errado meu email de todos os dias no formulário eletrônico (sorte que era o "email backup"), e ter esquecido no escritório o documento que comprova que moro aqui (que carrego todos os dias, mas que hoje precisei pra um outro evento).

Em suma: um privilegiado afoito, mas feliz. 

Mas afoito e provilegiado. 

Mas privilegiado e reflexivo.

Fiquei com tudo isso na cabeça enquanto olhava ao redor. Tudo tão rápido, mal tive tempo de processar. Será que fico feliz em ver isso como um vislumbre de dias mais "normais" no futuro.. Normal nada nunca é ou foi, né? Talvez um "normalmente mais igual ao que era antes" talvez aplique... 

Fiquei pensando no Brasil, no que as pessoas lá estão passando. Nos desvarios desse governo que lá impera, no que foi meu caminho pra chegar onde estou (fisicamente, não no que diz a status: esse é nulo)... sorte. Provilégio e sorte.

Por estes dias me lembrei do MAUS, do Art Spiegelman, Há uma parte do livro que poucas vezes discuti, em que ele comenta sobre o fato de ser filho de sobreviventes de campos de concentração. Ele narra uma conversa com seu terapeuta, onde eles se debruçam sobre essa tênue linha de argumentação sobre os pais deles estarem ali porque foram mais fortes e resistiram às intempéries dos campos onde estavam. Aí o terapeuta vira pra ele e pergunta/fala: " é claro que tua existência depende da existência dos teus pais, deles terem se encontrado... mas o quão fácil é pra você aceitar que eles simplesmente sobreviveram por sorte?"

Fiquei pensando nisso... nessa ilusão cognitiva que veio tentar flertar comigo hoje, a de um  "-estou aqui porque percorri o trajeto tal" e uma outra narrativa, a de que simplesmente tenho sorte, uma sorte indissociada de um privilégio, dentre os muitos outros que carrego comigo.

Parece que discuto, tento descrever a sensação, mas ando em círculos. Assim como entrei, saí como se a vida fosse a mesma, como se o sol ainda ardesse a minha pele, com as mesmas preocupações idiotas de sempre "oque vai ser de mim depois daqui? Oque vai vir depois daqui?". Me senti mal e bem pelo ocorrido. Me senti flutuando nesse mar de ambivalências que a vida é, onde navegarmos por dubiedades é requisito necessário a todos. Segui nublado ao longo do dia, com breves pitadas de sol: ainda que reflexivo, não sabia como fazer diferente senão celebrar comigo mesmo o fato. 

Talvez, de certa maneira, seja sim uma vitória dos humanos como espécie, que busca formas de não ser erradicada do planeta que esta incessantemente destrói. Talvez eu só tenha que ficar quieto, ir dormir mais cedo, e aguardar pela segunda dose.


sábado, 5 de junho de 2021

Repita comigo, pequeno gafanhoto...

Sabe uma coisa que me deixa meio impaciente? 

Sabe?

Gente repetitiva. 

Aquela tia que fica falando mil vezes que o presidente não presta (ok, é óbvio, concordo)... mas é mesma coisa que ficar repetindo "a Terra é redonda" infinitas vezes. 

Vai ver é coisa de família... como é a tua? Por exemplo: meu pai é uma pessoa que tem o dom supremo de ser super repetitivo. Toda vez que o vejo quando visito o Brasil lá vem uma enxurrada de perguntas estapafúridas: "-E aquele vizinho que morava no andar de cima... que tinha um cachorro e uma esposa?".Perguntando sobre um apartamento onde morávamos há 25 anos atrás. 

E como uma sequência de clássicos que um velho cantor deve cantar para agradar seu público, meu pai sempre traz consigo as perguntas clássicas: "-E o Júlio?"... (que faleceu há uns 10 anos, e há 10 anos eu falo pro meu pai que ele faleceu. 

Em vão. 

Tento me devencilhar do assunto, mas sou fisgado com um jeb no queixo que me joga às cordas: "-Te falei do dia que eu encontrei o Júlio ali na praça da República?

Olho pro teto.... me pergunto se há alguma toalha branca a ser jogada para me salvar daquela conversa.

Aí me bate aquela angústia de me ver nessas conversas rasas de boteco, vendo e ouvindo aquelas mesmas perguntas sempre ali, sentadas na mesa com a gente. "-Minha vez!", uma delas diz, e se joga na mesa, querendo ser perguntada... "-E a filha da Maria... como é que ela se chamava mesmo?"

Fico pensando nisso e me exaspero um pouco... onde está a poesia disso tudo? Será que existe uma pitada de absurdo nisso, um quê de Ionesco ou de Becket na minha vida/família? (Seriamos nós rinocerontes?!) 

No meio de tantas reflexões sobre o tema (uma das quais postei aqui) vim a perceber há um tempo qeu eu, também, sou um repetitivo inveterado. Daqueles sem conserto: frequento os mesmos restaurantes, conto as mesmas piadas (minha mãe é mestra nisso), uso as mesmas expressões, vou sempre nos mesmos cafés... carrego comigo uma inércia que muitas vezes me aparece anormal. Me pergunto se outros seres humanos... digo, seres mais humanos que eu sofrem isso também. 

Será?

Muitas vezes me questiono.. me pergunto se essa limitação na verdade é uma intransponibilidade de qualquer caminho. Uma pedra no meio da trilha pro cume de qualquer montanha que não pode ser removida. Me lembro com cautela do "Zen in the art of archery", quando o autor fala de quando seu mentor se dá conta de que ele estava tentando "enganá-lo", usando uma técnica de tiro (a maneira de pegar a arma) pra poder atirar flechas e, finalmente, melhorar sua pontaria: o professor pegou o arco, caminhou até um canto.. pensou... e disse pra ele ir embora. A repetição era oque ele poderia oferecer, e que se o objetivo dele era só "conseguir algo", um "diploma", que este já lhe estava dado. Nem preciso dizer: o autor se desculpou, voltando pro esquema japonês de repetir, repetir, tentar, até assimilar.

Talvez, no fundo, seja uma limitação da qual muitos sofrem mas poucos se dão conta. Ou poucos se dão conta de como as repetições são tão cruciais na construção de muita coisa. Uma aliteração, um efeito que reverbera quando usado em demasia, um fenômeno que se amplifica como um olho de furacão, a adoção de um outro ponto de vista depois de uma segunda, terceira, ou mais leituras. Vai ver repetir é um pouco oque Fernando Pessoa dizia: é entrar no mesmo rio, sem que este rio seja o mesmo.