"Since I had nowhere permanent to stay, I had no interest whatever in keeping treasures, and since I was empty-handed, I had no fear of being robbed on the way"
[Matsuo Bashô , The records of a travel-worn Satchel]
-Tem um monte de pão no congelador, viu? - eu disse, numa tentativa de dissuadí-la de comprar pães. Ainda assim, ela saiu da fila do caixa e falou alto:
"-Quem disse que é pra você? Vou levar pros meus pais."
"-Nossa...que ríspida!", retruquei, num tom de piada para não causar briga.
O rapaz à minha frente, testemunhando o diálogo, resolveu participar e me disse:
"-Eu virei gay justamente achando que isso deixaria de acontecer mas não: ainda é tudo igual"
"-Sério? Não adianta eu virar gay então pra me livrar dessas agressões diminutas mas constantes?"
"-Não... não adianta."
Uma lágrima cai dos meus olhos... esse mundo está perdido.
É, pessoal... um ano nos trópicos. Um aninho desde que pisei novamente nessa terra.
Muita, mas muita coisa mudou desde então: profissionalmente, pessoalmente, em várias esferas. Difícil dizer se houve progresso, mas certamente eu mudei.
Algumas notas e observações inesperadas:
Me surpreende que ao estar mais perto de algumas pessoas eu acabaria por falar menos com elas.
Lidar com família tem sido mais fácil do que imaginava. Lidar com amigos também.
Como um lado oposto de uma moeda - Brasil versus Japão - hoje meus dias de semana têm menos gente, enquanto finais de semana são mais cheios.
Eu já imaginava que curtia trabalhar com mais pessoas e/ou em times. Aqui isso ficou ainda mais evidente.
Talvez por conta disso meu apreço pelo silêncio e tempo sozinho ficou ainda maior.
Sim, acho que tenho alguma forma de hyperacusis.
Descobri que engenheiros dominam o mundo. Matemáticos que querem ser ouvidos devem fazer amizades com eles.
Morar no Brasil é muito mais gostoso e fácil do que imaginava. Tem uma riqueza e simplicidade que não existe em outros lugares em que vivi. Talvez o único lugar que conheço que tenha isso - mas de uma outra forma, totalmente diferente - seja o Japão.
Por outro lado, muita gente aqui acredita que o que vem de fora é sempre muito melhor (vira-latismo rules).
Crescer no Brasil é muito mais difícil do que imaginava e, quando acontece, se dá em circunstâncias muito mais adversas. Sendo assim, se você vê alguém que consegue crescer por seu próprio esforço aqui você pode tirar o chapéu: essa pessoa pegou muito mais touros pelo chifre do que qualquer primeiro mundista bem sucedido.
Jovens são muito mais engajados politicamente do que em qualquer outro lugar que já vivi (exceto talvez pela Alemanha).
Infelizmente, as pessoas parecem ter uma crença gigantesca em tudo aquilo que vem pelo celular. Sendo assim, uma reportagem num jornal de renome e uma mensagem no WhatsApp têm a mesma credibilidade pra muita gente. Há uma carência de referências enorme. Às vezes temo viver num mundo dominado por tiktokkers, influencers no instagram e celebridades religiosas ou sertanejas.
Há muito mais pobreza do que imaginava dentre os que não têm nada. E muito mais riqueza do que imaginava dentre os que têm tudo.
Sei que várias vezes falei dessa nossa fase da vida como um capítulo novo a ser escrito. Ainda não me parece claro como ele começa, ou em que momento estou. Talvez seja por isso que tenho escrito tão pouco, atento que estou em desvendar os meandros dessa prosa que permeia o ar. Não sei, pareço entender tudo e logo perder o sentido das coisas, o que me dexa confuso.
Há muito ainda por se desvendar e fazer. Muito ainda por se depreender e refletir sobre.
Tipo de lucidez que nos visita aos poucos, sabe? Vai ver só preciso de paciência pra esperar.
É curioso como relacionamentos implicam em repetições. Ou como, em relacionamentos distintos, a gente acaba ouvindo as mesmas reclamações, ou cometendo os mesmos erros de outrora.
Será que, no fim das contas, estamos fadados a sermos sempre os mesmos, carregando nossas falhas e misérias de relacionamento em relacionamento?
Fiquei pensando sobre isso, até me lembrar de uma animação de uma cineasta que gosto muito (e que já visitou esse blog algumas vezes).
Interessante dizerem que Brasil e Japão estão em extremos opostos do mundo. Certamente não é o caso. Em todo caso, fico pensando em como minha vida parece ter mudado da água pro vindo desde que vim de laá pra cá: dias com gente viraram dias sem gente, enquanto finais de semana - em geral vazios e silenciosos- passaram a ser dias agitados com gente em casa, amigos por perto e família mimando.
Que diferença!!
Mesmo assim, tanto contato não é fácil. E aí mora o grande paradoxo de se ter as coisas: quando temos, parece em excesso; quando não temos, nos carece e dói na alma. Ter voltado tem sido uma grande lição. Uma ressocialização (que eu sempre insisti e dizer que todo doutorando deveria fazer! Independentemente da área!).
Só sei que estar longe não é fácil. Estar perto é igualmente difícil. Mas tudo é questão de escolhas. Não é legal se viver sozinho. Diante dos atritos que tantos contatos geram, paro e penso no silêncio dos dias sozinhos na terra do sol nascente e no grande exercício que era me forçar fora do meu casulo para ganhar asas. Já aqui... parece tudo me dado na mão, mas mesmo assim... me parece ainda assim que me encontro perdido e incompleto.
Oque falta? Ou melhor: será que era pra ser isso mesmo e que, no fundo, nada me falta?
Há um trecho no Alice in Wonderland do qual sempre me lembro.
Alice in Wonderland Queen of Hearts and King of Hearts
Ele me veio à cabeça hoje durante uma conversa. A empresa, como várias dessas tech companies pelo mundo, fez um lay-off massivo hoje. Minha cabeça foi poupada, mas a de alguns amigos não.
Foi triste. Foi triste demais.
É algo horrível ter que ficar pra trás e estar no meio de um monte de gente que discute de maneira unilateral o que aconteceu com uma pessoa que não tem mais voz ali. Isso sem falarmos em casos em que a decisão não parece ter sido motivada por nada lógico: produtividade? Ou seria corte de verbas? Ou seria falta de alinhamento com alguma política imaginária da diretoria? Não sei... me pareceu uma grande arbitrariedade que, por natureza, amanhã pode nos atingir pelos mesmos motivos desconhecidos.
Um dia cheio, que correu a passos lentos, vagarosos e pesados. Ao fim do dia, o corpo sobrevive em cansaço, um pouco de medo, onde várias pessoas se olham assustadas e pensam: será que serei o próximo?
Anos atrás, um amigo trabalhando numa empresa me relatou algo parecido. Disse-me então que vários colegas nem puderam entrar mais na empresa, que suas mesas foram limpas e suas coisas entregues a eles. E que, neste dia, ele chegou em casa tão cansado que nem acendeu as luzes de casa: foi direto pro sofá dormir.
À época - ainda na mini apple - eu ficava me perguntando oque seria aquilo e me via tão, mas tão distante daquele mundo. Hoje, pareço ter os dois pés nele. No caso, diferentemente do meu amigo, minha casa é meu escritório, e não tive um sofá pro qual chegar: suportei essa notícia aqui mesmo, embora quisesse tê-la deixado do lado de fora dessas paredes.
Infelizmente, não deu. As paredes, maculadas, agora parecem sujas dessa realidade que não consigo mais deixar de ver: sei que está ali, e que oque antes era desconforto agora virou uma quebra de confiança.Quem consegue ter voz num ambiente onde se tem medo?
Às vezes acho que já me adaptei, que já me misturo aos meus arredores como um camaleão, inotável. Como um papel de parede, lá vou eu, brasileiro até a alma seguindo pela cidade.
Cidade que me assusta, me surpreende.
Não sei se há um brasileiro médio. O típico comportamento brasileiro do qual outros brasileiros gostam de falar e criticar. Mas sei o seguinte: que o brasileiro que irrita tem o poder de irritar mesmo.
Por exemplo: é muito comum encontrar pessoas que ouvem celular alto no metrô. Ou que não tem o menor pudor em deixar o celular com aqueles barulhinhos horríveis, sem o menor respeito pelo espaço auditivo do outro.
É algo tipicamente tupiniquim? Definitivamente não: já vi isso na China, na França, nos EUA. Agora... no Brasil isso ocorre bastante também.
E isso faz daqui pior?
Não, não faz. Por outro lado, gera um desconforto estranho, uma desolação que me abate quando presencio essas coisas e penso que pouts, nem em 100 anos esse país vai conseguir vencer essas coisas, dar educação pra todos seus cidadãos, imbuir de bom senso e civilidade a maior parte da população que aqui vive.
Claro, pareço estar sendo dramático ao falar só de um celular barulhento. Antes fosse só isso: o Brasil mostra seu subdesenvolvimento em diversas facetas. Pra piorar, mostra o quão desenvolvido é também em diversas outras coisas.
E aí, nesse turbilhão de contradições, eu não sei mais oque pensar. Pareço viver num grande páis desenvolvido-em-subdesenvolvimento, um oxímoro que só quem pisou nesta terra pode entender. Ou melhor: muitas vezes nem entende (como eu), mas testemunha.
Um bagunça... uma confusão... ainda estou por entender, mas acho que nunca vou fazer sentido desse país.
Eu ainda me lembro do dia em que, logo após voltar ao Brasil, estava num Uber indo pra sei lá onde e tocava no rádio uma música... "-cacete...que país inacreditávelmente doido...", pensei comigo mesmo. No caso, tratava-se de uma música onde o cantor era um homem com evidente sobrepeso, cantando chocolate, chocolate, eu só quero chocolate.... realmente... as pessoas não prestam atenção no que ouvem.... Por um minuto fiquei imaginando aquele homem rechonchudinho cantando na TV nos anos 80-90, falando sobre chocolate, as pessoas aplaudindo, a inflação lá no alto etc etc.
[Vai, Brasil!!]
Mas porque falo dessa lembrança? Por que ela me remete a uma outra, mais recente e também cheia de açúcar: conversava com um amigo numa mesa de bar, logo após o trabalho. Meu amigo abria o coração me dizendo como não consegue resistir a panetones e chocolates. "-Os compro pra durarem uma semana e, num piscar de olhos, os mesmos desaparecem na mesma tarde que são abertos.""-Cara... te entendo.. não sou muito diferente", disse a ele. Momento fofo de terapia profunda: dois homens brancos, héteros, mostrando toda sua vulnerabilidade e dificuldades para se conterem diante de iguarias adocicadas, panetones etc.
(Mesa 37) auto-controle per capita == 0.
Aí, no meio desse papo de trabalho, vida de adulto, ascenção na carreira etc, me lembrei de uma coisa engraçada: "-cara... você sabia que há vários experimentos que fizeram acompanhando pessoas durante uma vida; em vários deles dividem pessoas em grupos com comportamentos distintos com relação a uma variável X (como um grupo controle e outro experimental, apesar de ser um experimento observacional). "
Aí continuei, explicando que os experimentadores tentam ver oque os dois grupos têm de diferente e igual, apesar daquela variável X diferir. "Há um desses experimentos que é muito interessante: os experimentadores davam um doce (chocolate?) pra crianças e diziam pras mesmas
'se eu voltar daqui a 10 minutos e você ainda tiver esse chocolate, você vai ganhar um segundo chocolate'.
À partir dali a população estudada se dividia em duas: o grupo dos que resistiam e não comiam a iguaria; e o outro grupo, dos afoitos que comiam tudo e não recebiam."
"-A parte curiosa desse experimento é a seguinte:", disse pro meu amigo, "-As pessoas do grupo que espera pelo segundo chocolate - evidentemente o grupo do qual não faríamos parte - sao aquelas que, anos após o experimento, viram CEOs de empresas multibilionárias, ganharam prêmios disso e aquilo, viram grandes inventores ou empreendedores. Já o outro grupo - no qual suspeito que a gente cairia - são aquelas pessoas que se casam 3 vezes, levam uma vida instável, pulam de emprego em emprego, têm uma taxa de mortalidade milhares de vezes maior que a do grupo anterior." Aí os dois começamos a rir meio sem graça, meio que em desespero. Oque será que o futuro nos guarda de surpresas?
Agora que penso nessa conversa eu fico me perguntando o quão desesperador é tudo isso: se imaginar dentro de uma vida à qual você não quer pertencer. Ou uma existência em que se tem a plena consciência de ter tantos fatores contra ela mesma que cada vitória é e deve ser celebrada como se fossem 10... com muita festa, gratificação... (e chocolates, claro!)
No fundo, sou um besta em pensar isso: nenhum chocolate vai ser tão gostoso como antes se eu continuar tirando reflexões inúteis como esta de cada mordida que der nesses doces. Vai ver, isso sim, quem tava certo era aquele cantor gordinho cantando serelepe e feliz sobre chocolate e a felicidade que o mesmo nos trás.