quinta-feira, 18 de agosto de 2022

Terra Brasilis : despachante

"- Imagina, Pedrinho, que na verdade , agora nesse momento, há num universo paralelo a este onde a gente na verdade trabalha num escritório de despachante.

- E que na verdade na nossa frente não temos computadores, e sim máquinas de datilografar.

- E que na verdade você se chama Nogueira, a Lily é a dra Casavelha, eu me chamo Alves, e que este escritório fashion é na verdade um velho depósito com um daqueles calendários vagabundos de oficina mecânica na parede.

- E que a gente leva a vida como heterônimos de Fernando Pessoa, a falarmos mal do chefe, a viver vidas incompletas, pegando o bonde lotado pra chegar ao trabalho...

- ...imagina... imagina...."

[De uma conversa de escritório no meio da tarde]
[num dia nublado e frio]
[na cidade cinza de São Paulo]
[sprinkled com flores rosas e amarelas]

sexta-feira, 5 de agosto de 2022

Terra Brasilis : palavras farpadas

De vez em quando a vida me "presenteia" com palavras farpadas. 

Julgamentos e comparações; algumas pertinentes... diversas delas indevidas, outras inadequadas, umas um tanto injustas.. um monte delas dolorosas. 

Palavras farpadas que se enrolam no meu corpo e descem rasgando meus ouvidos. 

Me dói sentir que mesmo mundos tão próximos ao meu contém doses substanciais de frivolidade e descuido, falta de zêlo que nada de maneira honesta e imatura num mar ainda  raso.

Ouço em silêncio e dor, me acolho diante de coisas que nenhuma outra palavra consegue anular... mas abro espaço pra deixar as pessoas alinharem oque dizem com oque fazem: a única forma de mitigarem certas dores que estes nos infligem é dar tempo a elas...e nos dar tempo para poder observar em suas ações aquilo que palavras nunca vão conseguir mascarar quando em desarranjo...  

Me aflijo em imaginar que alguns tomam serenidade e paciência por fraqueza... mas me acalmo em pensar que, se for pra ser incompreendigo, então... só a ação do tempo há de fazer efeito, dizendo quais caminhos devo ou não seguir. 

Olho em volta, sinto que também me iludi em achar que real sou só eu. A ilusão de achar que só eu tenho inconsistências e descompassos. Não, meus leitores queridos: todos as têm. Everybody hurts... everybody is made up of fragments.... kintsugi, firme e forte juntando peças desde mil novecentos e tanto... a música toca ao meu redor... queria que fosse um jazz, mas é um sertanejo... não... não... melhor mudar de rádio e procurar outra coisa pra ouvir... ou você prefere que eu toque algo pra você ouvir?

Terra Brasilis: quando o apito da fábrica toca pela manhã

Esse recomeço nos trópicos tem me ensinado muito.. ou ao menos acho que tenho aprendido muito. A primeira semana, a apreensão de ver tanta coisa nova ao menos tempo, o coração batendo rápido diante de máquinas tão grandes, tantas engrenagens, a vida tranbordando em graxa e números.... Como havia dito numa entrevista: "-sabe quando o Chaplin entra nas engrenagens da máquina? Eu quero sair da zona de comforto justamente fazer aquilo..." (sem ficar louco, claro hee hee :)



Modern Times - Factory scene, Charles Chaplin

Às vezes eu tenho que me lembrar do que eu estava buscando nesse processo. Isso porque a dor vem: é difícil, me sinto incompreendido ou incapaz de entender aqueles que me cercam... me sinto perdido num mar tão mais vasto do que antevia... remo sem entender por um tempo até me recobrar e reequilibrar, percebendo que não vou atravessar esse mar na força. As pessoas que me cercam tem me feito rir tanto, me ajudado de uma maneira tão enorme e sem o véu de desconforto que pro qual o excesso de especialização havia me jogado até eu pisar no Japão. Me pergunto se ter ido foi o passo que precisava para poder dizer tchau pra tanta coisa. "Como se ter ido fosse necessário para voltar"...lembro-me de Gil falando aquilo que, por tanto tempo, nem mesmo considerava e que hoje vejo que talvez sim...

Estranho pra mim ainda é essa mistura de tanta coisa - de carreira, de país, de proximidade com família e amigos, de foco, de rumo, de tempero, de cultura... a colega de trabalho que morou no Japão na decada de 80 conversa comigo em japonês.... fico surpreso em conseguir falar tanto... acho que às vezes subestimo o quanto absorvo do mundo que me cerca... a cidade me surpreende, me atiça, me mantém acordado até altas horas da noite jogado no mel que só algumas coisas nos oferecem. Sigo, me deleito, tento depreender as rachaduras da cidade nas quais não quero cair, observo outras nas quais quero me adentrar, me encanto com a riqueza de olhares e formas, a humildade sem subserviência daqueles que vejo pela cidade, se esforçando pra ganhar a vida num ambiente hostil a muitos, favorável a poucos... 

Me adapto, me ambiento, mas ainda tento entender aonde caibo. Pertenço sem pertencer, acordo sem abrir os olhos, corro sem querer correr, pedalo sem querer sair do lugar. Pareço viver em tantas contradições que, quando o vento bate, voam pelos ares me mostrando que todas fazem sentido. Saio eu atrás delas, tentando pegá-las de volta, agregando-as nos braços, abraçando oque posso em desespero... tudo pra ver que, no fundo, não preciso de nada. Páro e ouço os que estão à minha volta e penso em como diversas barreiras que antes existiam parecem ter sumido.... não sei oque é... só sei que está sendo bem melhor do que imaginava.

Terra Brasilis: zeros e uns

Da redação: a cidade de São Paulo amanheceu com um problema enorme na primeira sexta-feira do mês de Agosto. Suas linhas de fibra ótica estavam todas entupidas de zeros (0s) e uns (1s), que se agregavam em desvario - 1s penetrados em 0s de maneira promíscua, 0s se esfregando em 1s, e 1s tão agarrados que uma única coisa pareciam ser. "-Foi mel demais nas redes... grudou tudo", disse um técnico da companhia telefônica local.