A meu ver, há algo maior nessas estórias: a cadeia de confiança que estes vigaristas são capazes de construir. Essa linha tênue, tenebrosa, e enevoada entre a verdade e a confiança.
Mas aonde quero chegar com tudo isso? Talvez tudo tenha começado no texto abaixo: nele um médico relata o caso de um paciente soropositivo (Mr B, um morador de rua) que não acredita no HIV. O médico tenta e tenta com que o paciente tome o remédio retroviral mas não, o paciente não toma porque não acredita que o vírus do HIV causa a doença.
"Covid denialism, like AIDS denialism, reveals that many of doctors’ assumptions are incorrect. We overestimate the value of reasoning and facts. We believe in our clinical authority. We expect patients to behave rationally. But we all develop our beliefs through interactions with other people — what you believe depends on whom you trust. "
[Em The Doctor’s Oldest Tool, no New England Journal of Medicine, por Elvin H. Geng]
Calhou de esse artigo "resolver" um desconforto que senti numa outra conversa, ao ouvir que "a ciência é uma fé, assim como a falta dela também o é". Não, não concordei. Na verdade me causou desconforto pensar nisso, apesar de não saber bem oque dizer na hora.
Essa frase me despertou uma memória sobre um post antigo, A estalagem da razão: sobre agulhas, alfinetes, Index theorem e linhas, de 2010, no qual cito:
"A meio caminho entre a fé e a crítica está a estalagem da razão. A razão é a fé no que se pode compreender sem fé; mas é uma fé ainda, porque compreender envolve pressupor que há qualquer coisa compreensível."
Fernando Pessoa - Livro do desassossego
Há alguns anos eu até brincaria com esse tema, concordaria com F.P. até. Sim são todas fés. Mas hoje minha visão sobre o tema mudou: verdades não são idéias que flutuam no ar e adotamos as que nos apetecem.
Mas se já ficamos desconfortáveis com a idéia de toda crença ser uma fé, imagine então a idéia de podermos agir em função de qualquer coisa que acreditemos. Pensemos neste cenário dos dias de hoje: pessoas sem máscara, sem vacina, um perigo de saúde pública. E se esse paciente (Mr. B) fosse um "spreader", um cara que saísse transando com meio mundo passando AIDS pra tudo e todos, dizendo que não era HIV que causa oque ele tem? Trata-se então do direito de não só terem fé, mas de exercê-la da maneira como bem entenderem? Certamente, não ligo que as pessoas acreditem no que queiram: enquanto eles tomam atitudes que impactam a vida deles somente, eu lavo minhas mãos, sigam na direção que quiserem, eles são livres pra tanto. Agora, são livres pra sair espalhando as "verdades" nas quais acreditam? Não, não são.
Uma parte considerável deste embróglio então está nisso, nessa disputa pelo correto ter virado uma disputa de "crenças". As pessoas julgam que tudo, toda visão de mundo contém erros, então são todas iguais. Dessa forma, tudo vira uma religião: futebol, cloroquina, ciência. Cito então algo que li num texto do Asimov:
This particular thesis was addressed to me a quarter of a century ago by John Campbell, who specialized in irritating me. He also told me that all theories are proven wrong in time.
My answer to him was, "John, when people thought the Earth was flat, they were wrong. When people thought the Earth was spherical, they were wrong. But if you think that thinking the Earth is spherical is just as wrong as thinking the Earth is flat, then your view is wronger than both of them put together."
[Isaac Asimov, "the relativity of wrong"]
Sim! Aí está parte da chave pra esta questão. Existe assim gradações de erro, algo que Asimov foi muito sábio em apontar nessa frase. Há uma "relatividade do errado". E isso acaba tangenciando oque o médico relata. Isso porque existe uma "chain of trust" (cadeia de confiança) da qual o médico fala, que talvez preceda oque chamo de "chain of truth" (cadeia de verdades): adotamos, acolhemos a ciência em princípio por confiarmos naqueles que nos levam a ela. Posterior a isso, vê-se que existe sim todo um arcabouço de idéias e sustentáculos que seguram esse edifício em pé. Claro, não sem contradições internas, mas com amarras muito mais firmes e auto-consistentes do que uma "fé" religiosa, por exemplo. Sendo assim, não desmereço ou nego que a fé exista de alguma forma, mas ela é somente um "ticket de entrada" pra essa casa onde a ciência reina. É talvez oque o médico ressalta do texto do NEJM quando diz
"I am part of what anthropologist Heidi Larson calls a “chain of trust” in a social system that has treated me fairly and generously — a chain that did not reach Mr. B. I realized that the chain’s links consist of lived experiences and relationships, not data in scientific journals. I believe what my colleagues say because of my proximity to their experience: I work with people like the scientists who conducted the earliest studies, and I know them to be generally honorable and credible. Mr. B. did not believe — ultimately, not because of quibbles with the scientific method, but because the sum of what society, and “expert” professionals like me, had offered him in life seemed more like lies than the truth. "
[Em The Doctor’s Oldest Tool, no New England Journal of Medicine, por Elvin H. Geng]
Achei incrível ver que, no fim das contas, a atitude do médico foi a de ter empatia, de ver ele mesmo aquilo que o paciente estava professando/fazendo. Ele sacou tudo aí, quando viu que este Mr B, marginalizado, vivendo às franjas da sociedade, nunca participou do que era discutido nessa "grande casa" (aristocrática talvez?) na qual a ciência impera. Sendo assim, ele mudou a abordagem: simplesmente convidou Mr B a ela. O ticket de entrada: simplesmente tomar o anti-viral. Foi uma sacada genial ele perceber que não era uma questão de convencimento por argumentos, mas uma outra coisa.... talvez resultados? Não exatamente...
Aliás, esse "chain of trust" é algo interessante: recentemente o "this american life" fez um episódio sobre um republicano, âncora de televisão, super conservador, se reunindo com pessoas ati-vax pra tentar convencê-las do valor de tomar a vacina (episódio 736: The Elephant in the Zoom). O programa vai por linhas incríveis, até chegar ao convencimento (ou quase) daquelas pessoas.
De alguma forma, depois desses redemoinhos que se sobrepões, pensei em mim mesmo, em algum momento lá em 2010, mais confortável com essa idéia de que a ciência, mesmo a matemática, é sim uma ciência que envolve uma certa fé, ou intuição. Será que o que me movia era a fé? Era a crença de que aquilo que via era a verdade, uma única verdade, ou forma de verdade?
Não sei.. se era fé, acho que a perdi em algum momento. Mas já era tarde: já fazia parte do "clube", me via parte da engrenagem, membro desse grupo "fechado", que não admite outra religiões... em especial, parte de um grupo que muitas vezes não admite outros que nunca foram convidados a ele, pra essa "festa" regada a lógica e leis universais, onde a ciência impera.
E pra terminar esse grande círculo: tudo bem termos compaixão por pessoas negacionistas, mas não acho "producente" confundirmos esse sentimento com o de "liberdade que essas pessoas têm", ou mesmo confundir as crenças deles com "a mesma fé que temos na ciência". Acho que, a alguém que diga isso, ou equalize as duas "crenças", só posso dizer: "your view is wronger than both of them put together".
Acredito, isso sim, que esse artigo indica que a paciência, a escuta, precede a razão em alguns debates onde existe sim um lado que está correto.
Instead of arguing about the veracity of science, perhaps I could simply bear witness, as one human to another.
[Em The Doctor’s Oldest Tool, no New England Journal of Medicine, por Elvin H. Geng]
É isso, pessoal. Crescer para melhor ouvir. Ouvir para mais alto crescer.
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