domingo, 25 de outubro de 2020

Minotauro no divã

Por estes dias enquanto lavava roupa divagava sobre os meandros da vida, pelos quais eu e tantos outros, similarmente, passam. Lembrei que, poucos diantes antes, havia me deparado com um goshuin (uma espécie de "selo " que templos no Japão têm) que me parecia um labirinto, e ficara ao mesmo tempo estarrecido e entusiasmado diante da beleza/constatação. Ali mesmo, roupa sambando na máquina enquanto eu sentavesperava, comecei a desenhar um labirinto, que logo veio a me trazer diversas questões algoritmicas e matemáticas à mente.

Difícil separar uma coisa da outra: leis intrínsecas que delineiam formas de pungente beleza, "tão aflitiva aos que estão dentro e um deleite aos que vêem de cima", pensava. Por uns breves minutos minha mente ia de uma idéia à outra desse tabuleiro micro-macro, esse dentro fora, até me vir à lembrança um texto muito curioso e belo do Jorge Luis Borges (la casa de Asterión, no El Aleph) sobre o minotauro: um montro - meio homem, meio touro - que era o bicho de estimação do rei de Minos e que vivia dentro de um labirinto, devorando os homens que ali entravam. 

Oque é bonito na "versão" de Borges é a estória ser contada sob o ponto de vista do minotauro, que descreve os seus dias sem companhia e suas distrações pelos cômodos daquele labirinto, diferenciados uns dos outros pelos corpos dos homens que ali faleceram diante de si. Como um cachorro brincalhão ou um filhote de cabra que se diverte pela casa, o minotauro fala das brincadeiras que faz para passar o tempo: se imaginar recebendo visitas e guiando-as pelos ambientes, rindo com as mesmas das inúmeras possibilidades, sem falar nas suas descrições de breves passeios erráticos e em velocidade pelos salões e corredores do lugar.

Fiquei me perguntando como é curioso a visão dos montros ser tão pouco conhecida: Stálin nunca se abriria para fazer um poema, para dar risadas e se permitir ansioso diante de câmeras ao falar sobre a morte; Golias nunca sentou no divã para dizer como era ser a  maior criança da sala quando estava na escola; Medusa nunca deixou relato sobre como era viver sem nunca ter um cabeleireiro que lhe cortasse as madeixas, e  por aí vai. Monstros nascem monstros, ou viram monstros? Uma outra pergunta talvez pertinente.

Reli o texto de Borges, e fui pego de surpresa por coisas das quais não me lembrava, como a descrição do minotauro de sua casa, com inúmeras portas abertas dia e noite para todos, como se o labirinto fosse não mais não menos que uma parte das vidas das pessoas, onde elas poderiam passar tempo, adentrar-se em exploração, e sair assim que quisessem. O minotauro, ingênuamente ou talvez ignorante da causalidade/letalidade de sua existência, assume que a existência de lugares com portas abertas automaticamente impliquem na liberdade em se decidir quando sair deles; não, não era bem assim, e um único ser dali sairia vivo, Teseu, com a ajuda de Ariadne (da qual falei neste post de muitos anos atrás). 

Já distante em pensamentos me vi rememorando os labirintos pelos quais entrei, dentro dos quais, mesmo com portas abertas e fios de Ariadne amarrados nos meus tornoze-los, levaram um tempo para ser resolvidos, e eu assim deles sair, em busca de casa (ou de uma nova casa). Tive compaixão pelos meus labirintos, por seus minotauros; eu, Tes(eu) sem espadas, perdido em labirintos sem muros, a procurar um caminho que fizesse/faça sentido.  


Tive compaixão por mim mesmo, ao ver que cada um desses labirintos não só têm infinitas portas de entrada, mas também infinitos meios de saída. Nessa hora, vi amarrado em meus tornozelos o fim do texto:

¿Cómo será mi redentor?, me pregunto. ¿Será un toro o un hombre? ¿Será tal vez un toro con cara de hombre? ¿O será como yo?


sexta-feira, 9 de outubro de 2020

Vice-Lord of the flies

 It was on a weekday. Mike was feeling dizzy. Could it be corona virus? Possible... "-The president has got it, so what if...". He shrugged it off. 

He got up, went to the toilet, and by the time he went out his wife was up. 

"Ohh my Jesus! Mike, you became a fly!!", she said.

Immediately, she started crying, saying that it could not be any other thing than a democratic plague. "-Those monsters!! They killed my husband." Mike, struck by the scene, flew to his wife and sat by her nose. 

She slapped him... but apologized:

"-I'm sorry, husband... I haven't got used to you ..yet.. My faith will keep our love strong", she said, looking to her own shoes.

He didn't bother: he had been faster than her, and was not hurt. 

"-Bu..but, babe", she said, "I'm worried... how are you going to the debate tonight?"

He pondered... flew around a bit, sat on some disgusting things, but... at night there he went... and indeed, nobody noticed a damn thing.

... except for a few strange things that people in the audience couldn't avoid seeing

All the newspapers the next morning talked about that, amused: 

"- What was that little dandelion stuck on this eyebrow??! It was there for more than 2 minutes and he didn't notice", said a Republican supporter.

-"First, his words were sounding strange and noisy... I couldn't understand him sometimes... ", said a Democrat that was in the debate's audience.

Already in the car with his wife, heading home, he said: "-You see? I told you, nobody noticed a thing... american people can't see beyond their own navels".

Full of happiness, he flew towards his wife's face, inteding to kiss her (or whatever a fly things kissing is). 

He was, however, surprised with another slap.

This time, he flew out of the window.

He fell dead on the highway's floor.

[Lembrei de Kafka ao ouvir sobre o último debate de vice-presidentes nos EUA.]

[Veja Nytimes , ou este video]

[ps: aliás, não custa dizer que Lord of the flies é um livro incrível, recomendadíssimo pelo board of directors do blog Matemáticos Marcovaldos :P]


domingo, 4 de outubro de 2020

Ambiguidades à parte

 Essa semana aconteceu algo estranho: na terça, durante o debate presidencial americano, o atual presidente foi questionado se condenaria white supremacists pela violência que estes têm perpetrado pelo país. Pra resumir, o presidente diz para um determinado grupo (XX) "XX, stand back and stand by".

Stand by pra mim é esperar para que algo aconteça, para que algo possa ser acessado/utilizado adiante.... essa ambiguidade ficou no ar, esse desvio por um (mau) uso da palavra, onde não se sabia se ele se comprometia ou não em condená-los (muitos chegaram à conclusão que não, que até fomentava a proximidade a eles).

Não fosse D. Trump ser divisivo e, acima de tudo, esguio em se deslizar de compromissos e se abster de bandeiras igualitárias, eu teria dito que ele fora, pura e simplesmente, poético: poesia é a mais pura ambiguidade.

Fiquei um pouco perturbado em chegar a essa conclusão, ainda mais diante de uma situação tão horrível e diante de uma pessoa pela qual não nutro o menor respeito. Mais ainda: numa situação abominável e que não poderia ser tolerada! Fiquei me questionando por alguns momentos sobre como essa corda bamba dos sentidos e significados é also difuso, sobre a qual as palavras andam entre um ser e outro. Também quero ser poesia! Mas claro, não ser evasivo e ambiguo para não ter que me compromissar diante do que digo.... mas quão distantes essas duas coisas estão: ser ambiguo e ser descompromissado? 

Lembrei do "Cálice" ou "Cale-se" do Chico, ou de uma que nesse último janeiro foi motivo de muita risada na minha visita ao Brasil

Samba do grande amor, Chico Buarque


Resta-nos a grande dúvida se a mentira era uma mentira ou uma reinterpretação dos fatos. A ambiguidade não está nos fatos em si, mas em tê-los narrados pela voz de uma pessoa que oscila entre dizer a verdade e a mentira. Essa ambiguidades parecem fazer parte de muito que vivemos, seja na forma como as interpretamos ou, de certa forma, na dificuldade que temos em interpretá-las da maneira correta.

Lembrei-me ainda de uma conversa que tive há anos  com uma amiga bióloga. Esta me expressava consternada sua angústia diante da ciência, com o não poder ser subjetiva, poética, num artigo: para ela, eram todos secos e sem vida. Na hora que ouvi suas palavras tive compaixão, mas vi também que não era essa a direção, que em alguns meios não se pode haver ambiguidade, dúvida, ou meias palavras: a poesia tolera, e celebra a ambivalência, enquanto a política e a ciência devem evitar de todas as formas cair em tais recursos. A grande beleza de se fazer as duas últimas (se é que há beleza em fazer política...) está no saber caminhar sobre a corda bamba da clareza, da eloquência, e do discurso. A poesia, a arte, por outro lado, presam por outras qualidades.

Bom... com isso encerro por hoje: queria só dar um oi mesmo, dizer  que estou por aqui, tentando seguir adiante, encarando as muitas ambiguidades que a vida me oferece.