sábado, 21 de janeiro de 2012

Neste exato momento, do outro lado do mundo...

Eu realmente não ia postar mais nada hoje, mas as circunstâncias me forçaram a isso. Há pouco, me  deitei ao lado do meu abajur que mal me ilumina, mal liga, pra ler um pouco... dou um play



... e abro um livro de onde o havia abandonado. Um grandenorme   31 aparece... como mais um número no meu dia. A cabeça ainda cheia de coisas, Nash- Moser iteration schemes, bukowski que me vem à lembrança, um poema, uma foto, uma pista de dança lotada de gente, o nascer de sol vermelho dessa terra, um copyright infringement notice... olho para o número e ouço os primeiros sinais da música. Lá fora, só-chuva-que-pelo-menos-não-é-neve... me ajeito um pouco melhor, ajeito o travesseiro... olho para o número...começo a ler:

"     O relógio que está lá para trás, na casa deserta, porque todos dormem, deixa cair lentamente o quádruplo som claro das quatro horas de quando é noite. Não dormi ainda, nem espero dormir. Sem que nada me detenha a atenção, e assim não durma, ou me pese no corpo, e por isso não sossegue, jazo na sombra, que o luar vago dos candeeiros da rua torna ainda mais desacompanhada, o silêncio amortecido do meu corpo estranho.
Nem sei pensar, do sono que tenho; nem sei sentir, do sono que não consigo ter.
      Tudo em meu torno é o universo nu, abstrato, feito de negações noturnas. Divido-me em cansado e inquieto, e chego a tocar com a sensação do corpo um conhecimento metafísico do mistério das coisas. Por vezes amolece-se-me a alma, e então os pormenores sem forma da vida quotidiana boiam-se-me à superfície da consciência, e estou fazendo lançamentos à tona de não poder dormir. Outras vezes, acordo de dentro do meio-sono em que estagnei, e imagens vagas, de um colorido poético e involuntário, deixam escorrer pela minha desatenção o seu espetáculo sem ruídos. Não tenho os olhos inteiramente cerrados. Orla-me a vista frouxa uma luz que vem de longe; são os candeeiros públicos acesos lá em baixo, nos confins abandonados da rua.
      Cessar, dormir, substituir esta consciência intervalada por melhores coisas melancólicas ditas em segredo ao que me desconhecesse!… Cessar, passar fluido e ribeirinho, fluxo e refluxo de um mar vasto, em costas visíveis na noite em que verdadeiramente se dormisse!… Cessar, ser incógnito e externo, movimento de ramos em áleas afastadas, tênue cair de folhas, conhecido no som mais que na queda, mar alto fino dos repuxos ao longe, e todo o indefinido dos parques na noite, perdidos entre emaranhamentos contínuos, labirintos naturais da treva!… Cessar, acabar finalmente, mas com uma sobrevivência translata, ser a página de um livro, a madeixa de um cabelo solto, o oscilar da trepadeira ao pé da janela entreaberta, os passos sem importância no cascalho fino da curva, o último fumo alto da aldeia que adormece, o esquecimento do chicote do carroceiro à beira matutina do caminho… O absurdo, a confusão, o apagamento — tudo que não fosse a vida…
     E durmo, a meu modo, sem sono nem repouso, esta vida vegetativa da suposição, e sob as minhas pálpebras sem sossego paira, como a espuma quieta de um mar sujo, o reflexo longínquo dos candeeiros mudos da rua.
      Durmo e desdurmo.
    Do outro lado de mim, lá para trás de onde jazo, o silêncio da casa toca no infinito. Ouço cair o tempo, gota a gota, e nenhuma gota que cai se ouve cair. Oprime-me fisicamente o coração físico a memória, reduzida a nada, de tudo quanto foi ou fui. Sinto a cabeça materialmente colocada na almofada em que a tenho fazendo vale. A pele da fronha tem com a minha pele um contato de gente na sombra. A própria orelha, sobre a qual me encosto, grava-se-me matematicamente contra o cérebro. Pestanejo de cansaço, e as minhas pestanas fazem um som pequeníssimo, inaudível, na brancura sensível da almofada erguida. Respiro, suspirando, e a minha respiração acontece — não é minha. Sofro sem sentir nem pensar. O relógio da casa, lugar certo lá ao fundo das coisas, soa a meia hora seca e nula. Tudo é tanto, tudo é tão fundo, tudo é tão negro e tão frio!
      Passo tempos, passo silêncios, mundos sem forma passam por mim.
     Subitamente, como uma criança do Mistério, um galo canta sem saber da noite. Posso dormir, porque é manhã em mim. E sinto a minha boca sorrir, deslocando levemente as pregas moles da fronha que me prende o rosto.
     Posso deixar-me à vida, posso dormir, posso ignorar-me… E, através do sono novo que me escurece, ou lembro o galo que cantou, ou é ele, de veras, que canta segunda vez. "

 Fernando Pessoa - Livro do desassossego



[A tempo:]
[este post deve ser lido beeem devagar]
[pr'as palavras irem chegando aos poucos ao seu entendimento]
[Sentir seu corpo respirando...]
[...compassado com a música]

2 comentários:

K & Cia. disse...

uma vez ouvi dizer, e não consegui confirmar até hoje, que o momento mais negro da escuridão é às 4:xy
da manhã (seria 27? Não me lembro mais). Momento em que o vazio, a tristeza, escolhe para nos atingir, solares que somos...

Melhor não estar acordado, e nem acordar com asfixia neste horário...

Bj

Rafael disse...

Por sorte não tive que digitar tudo isso

http://ateus.net/artigos/miscelanea/o-livro-do-desassossego/

Parece que o livro, ou boa parte dele, está neste site.