Separações ( Antônio Prata - Folha de São Paulo, 17 de Novembro de 2013)
Ele era engenheiro, gostava de filmes de ação e corria na esteira três
vezes por semana. Encarava o sexo como uma necessidade fisiológica, uma
exigência corporal que surgia mais intensa quanto mais descansado
estivesse: ao acordar. À noite, exausto, só queria tomar uma cerveja e
dormir.
Ela era pintora, detestava "filme de carro explodindo" e praticava hatha
yoga. O sexo, para ela, era "cosa mentale": o desejo ia crescendo
durante o dia, a fantasia se desenhando nas cochias do pensamento e só
ao se deitar na cama, antes de dormir, começava o espetáculo.
Quando se conheceram, não atinaram para o problema de fuso horário --no
jet lag da paixão, toda hora era hora--, mas, assim que o fogo abaixou e
o sexo teve de encontrar seu escaninho no armário da rotina, as
diferenças apareceram.
Separaram-se faz um mês. Ironicamente, ele sente mais falta dela à
noite, enquanto toma sua cerveja e espera o sono; ela sofre mais ao
acordar, só, de manhãzinha.
*
Da primeira vez que ela foi à casa dele, viu na cama desarrumada, nos
vinis espalhados pelo chão e na geladeira vazia --meia garrafa de vinho e
três sachês de ketchup (vencidos)-- uma postura rock'n'roll, um
desprendimento libertador, uma superioridade quase beática.
Da primeira vez que ele foi à casa dela, viu nos tupperwares
etiquetados, nas flores da jardineira e no mural do escritório sua
possível salvação: sonhou com um futuro de refeições balanceadas, vinis
em ordem alfabética e contas no débito automático.
Por seis meses, ela resistiu às toalhas molhadas na cama, aos discos
espalhados pela casa e às caixas de pizza no sofá; "A única coisa que eu
pedia era pra ele botar o telefone na base. Se você ama mesmo uma
pessoa, é capaz de fazer esse mínimo esforço, não é?". Separaram-se faz
uma semana. Ontem de madrugada, a caminho do banheiro, ela viu a luzinha
verde da bateria, na base do sem fio, e caiu no choro.
*
Eles gostavam dos mesmos filmes, dos mesmos livros, das mesmas bandas,
dos mesmos pratos nos mesmos restaurantes, riam das mesmas piadas,
queriam conhecer os mesmos países e ter um filho chamado Frederico.
Depois de cinco anos, contudo, se cansaram daquela mesmice. Ela disse
que estava pensando em se separar, ele disse que vinha pensando o mesmo.
Ontem, ao partir, ela o fez prometer que jamais teria um filho chamado
Frederico. Ele prometeu --e pediu o mesmo.
*
Por dez anos, ele foi absolutamente fiel. Não transou, não beijou nem
flertou com nenhuma outra mulher. Nos últimos meses, a retidão começou a
pesar em seus ombros. Anda por aí olhando bundas com a voracidade de um
remador das galés, deu pra implicar com pequenos atrasos da esposa e
pra discordar de seus comentários durante o jornal.
Já ela, nesses dez anos, não foi absolutamente fiel. Transou com um
colega de trabalho e com um ex-namorado de adolescência, que encontrou
por acaso em Salvador. Nada sério, só desejo: ela tem certeza absoluta
de estar ao lado do homem que ama e jamais cogitou trocá-lo por alguém.
Agora, ele chega na sala, senta ao lado dela, olha pra parede e diz que precisam conversar.
Li esse texto do Antônio Prata na folha de São Paulo do último domingo e, dentre as muitas coisas que me lembrei, uma delas foi esse curta.